A prisão é exceção; a liberdade, regra. Há duas espécies de prisão: cautelar (ou provisória) e pena. Esta advém de condenação criminal com trânsito em julgado e não é objeto deste breve trabalho. A prisão cautelar pode originar-se do flagrante delito ou de ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente (art. 5o, LXI, CF). A prisão em flagrante pode ser concretizada por qualquer pessoa (art. 301, CPP), por autorização constitucional, como se fosse uma autêntica legítima defesa da sociedade, pois seria indevido supor que alguém, surpreendido em pleno cometimento de um crime, fosse mantido em liberdade somente porque não existe um juiz, no ato, para decretar a prisão cautelar. Em face disso, a medida de cautela pode ser tomada por qualquer pessoa do povo e deve ser realizada por agentes policiais.
Não há como negar que a prisão em flagrante é uma providência cautelar (precaução, cuidado, prudência, proteção). Desse modo, vale voltar no tempo para verificar como essa prisão era fiscalizada e mantida, ou não, antes da reforma trazida pela lei 12.403/11. Ilustrando, dada voz de prisão em flagrante pelo policial na via pública, o sujeito detido era levado à presença da autoridade policial; esta, então, verificava a legalidade da prisão (art. 302, CPP) e, após, lavrava o auto de prisão em flagrante. Este auto era enviado ao juiz competente para verificar a sua legalidade, em seus requisitos intrínsecos (art. 302, CPP) e extrínsecos (art. 304, CPP). Entendendo ilegal, o juiz relaxava a prisão e determinava a soltura do indiciado. Convencendo-se ser legal a prisão, o magistrado proferia a seguinte decisão, como regra: “flagrante formalmente em ordem; aguarde-se a vinda dos autos principais”. Com esse simples despacho (de decisão não tinha praticamente nada), muitos réus, após a denúncia, ficavam presos durante toda a instrução, até o trânsito em julgado. Nunca essa prisão em flagrante se tornava, formalmente, uma prisão preventiva. A doutrina, no entanto, majoritariamente, indicava que o juiz não deveria manter o flagrante sem justificar o motivo de manter preso o indiciado, indicando os requisitos da prisão preventiva (art. 312, CPP). Pois bem. Durante décadas, o Judiciário manteve-se nesse prumo: manter o flagrante como prisão cautelar, sem qualquer fundamentação concreta.
O advento da lei 12.403/11 alterou a redação do art. 310 do CPP, conferindo a ideal situação jurídica à prisão em flagrante (medida cautelar, cujo fundamento advém da CF), pois obrigou o magistrado a fundamentá-la, com base nos requisitos da prisão preventiva. Nada melhor do que apontar o óbvio: converter a prisão em flagrante (prisão cautelar) em prisão preventiva (prisão cautelar). É preciso deixar claro que, desde a edição desta lei, vedou-se ao magistrado decretar a prisão preventiva de ofício, durante a fase investigatória; foi a mesmíssima lei que determinou ao magistrado converter a prisão em flagrante em preventiva, caso fosse necessário mantê-lo segregado. Assim sendo, recebido o auto de prisão em flagrante, segundo o disposto pelo art. 310 do CPP, o juiz pode relaxar a prisão em flagrante, considerada ilegal; converter essa prisão em preventiva, presentes os requisitos do art. 312 do CPP (se não forem cabíveis medidas cautelares alternativas); conceder liberdade provisória com ou sem fiança. Pode-se, por óbvio, dizer que a Lei 12.403/2011 foi contraditória ao vedar a decretação da prisão preventiva de ofício, durante a fase investigatória (mas mantida essa possibilidade durante a instrução) e, ao mesmo tempo, determinar que o magistrado converta a prisão em flagrante em preventiva (seria uma decretação de prisão cautelar de ofício). Mas não. O indiciado está preso legalmente, porque a CF autoriza, em face do flagrante; o magistrado analisa essa medida cautelar (ou pré-cautelar, como alguns preferem, o que tanto faz para esse fim) e conclui ser indispensável manter a segregação cautelar (note-se: manter o que já existe e não inovar, retirando o sujeito da liberdade e colocando-o na prisão de ofício), porque presentes os seus requisitos (toda prisão-cautela, hoje, precisa ser baseada nos requisitos do art. 312 do CPP). Em suma, o magistrado nada mais faz do que manter a prisão em flagrante convertendo-a em preventiva (comutar, permutar, trocar uma coisa por outra), mas não significa inovar (realizar algo novo ou inédito).
É muito importante ressaltar o seguinte aspecto: se – e somente se – algum magistrado considerar que converter a prisão em flagrante em preventiva (a partir de 2011) configura decretação de prisão de ofício (vedada desde 2011), parece natural que esse juiz deva ter mantido a coerência e tomado a seguinte medida: a) se juiz de primeiro grau, ao receber o auto de prisão em flagrante, deveria abrir vista do Ministério Público para que este requeira a conversão; se isto não se der, o magistrado deveria conceder a liberdade provisória incondicionalmente; jamais se poderia esperar que o juiz convertesse a prisão em flagrante em preventiva, pois seria contraditório ao seu entendimento; b) se magistrado de tribunal de segundo grau ou superior, tomando conhecimento de qualquer processo, onde o réu esteja preso em virtude da conversão da prisão em flagrante em preventiva, deveria determinar a imediata cessação do constrangimento ilegal (juiz teria decretado a prisão cautelar de ofício), por meio da concessão de habeas corpus de ofício (agora, sim, perfeitamente viável). Ao que parece, o Judiciário não encampou esse entendimento, vale dizer, que a conversão da prisão em flagrante em preventiva representava decretação da prisão cautelar de ofício, o que se pode constatar verificando as decisões judiciais de tribunais tomadas de 2011 até a presente data.
Soa-me justo apontar o seguinte aspecto: após a reforma processual introduzida pela lei 13.964/19, que vedou a decretação da prisão preventiva de ofício pelo juiz durante a instrução (o que não tinha sido abrangido pela reforma de 2011), alguns operadores do Direito ressuscitaram aquela questão da conversão da prisão em flagrante em preventiva. Entretanto, a referida lei 13.964/19 não alterou em absolutamente nada o cenário da conversão do flagrante em preventiva. Essa lei simplesmente vedou a decretação da preventiva, sem requerimento da parte interessada, durante a instrução. Nada mais. Creio nem ser preciso lembrar que a conversão do flagrante em preventiva ocorre durante a fase pré-processual.
Concluindo, em nosso entendimento, a prisão em flagrante encontra sustentáculo constitucional, além de ser igualmente apoiada pelo CPP. É uma prisão cautelar legal e legítima. Chegando a juízo o auto de prisão em flagrante, independentemente de qualquer requerimento, deve o magistrado manter ou relaxar a prisão cautelar, ou conceder ao preso a liberdade provisória. Tal medida não significa nenhuma inovação, ou seja, não representa decretação de prisão de ofício. O indiciado não está solto e teria sido preso sem pedido da parte ou representação da autoridade policial. Ele está preso, após regular formalização do auto de prisão em flagrante pelo delegado, por autorização constitucional e legal; o juiz mantém essa prisão, se houver o preenchimento dos requisitos da prisão preventiva. Por isso, desde 2011, atuando como magistrado no Tribunal de Justiça, nunca me pareceu ilegal a referida conversão da prisão em flagrante em preventiva e, por isso, jamais concedi habeas corpus de ofício (e não me recordo de pedido expresso de nenhum defensor nesse sentido). Atualmente, com a reforma da lei 13.964/10, nesse campo, nada mudou. Logo, ressurgir a questão não traz nada de novo; ao contrário, pode simplesmente demonstrar que o conteúdo da lei 12.403/11 foi mal compreendido pelo operador do Direito que atualmente faz renascer esse debate.
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*Guilherme de Souza Nucci é desembargador na seção criminal do TJ/SP. Livre-docente em Direito Penal, doutor e mestre em Direito Processual Penal pela PUC-SP. Professor da PUC-SP nos cursos de graduação e pós-graduação.