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Aspectos cíveis e penais da fraude à partilha de bens no divórcio

Muito embora a fraude à partilha seja um tema recorrente nas dissoluções de sociedades conjugais, a existência da imunidade penal para o cônjuge que pratica delito patrimonial (na constância da sociedade) não elimina as possibilidades de sua responsabilização.

6/7/2020

Em divórcios litigiosos, quando há comunhão e necessária partilha dos bens, muitas vezes um dos cônjuges tenta reduzir o “prejuízo” e de forma ilícita não economiza esforços para frustrar a meação do outro consorte.

São situações em que, na véspera da dissolução do casamento, ou até mesmo durante o matrimônio, aquele que detém a gestão do patrimônio adota expedientes para desviar ou ocultar bens, direitos e valores pertencentes à sociedade conjugal, buscando fraudar ou frustrar a futura partilha.  

Alguns exemplos dessa prática: a cessão de quotas ou ações, a realização de manobras contábeis a celebração de contratos de empréstimos fictícios, alterações societárias envolvendo empresas offshore, fundos e fundações em paraísos fiscais, ou um substancial aumento do endividamento da empresa na véspera da dissolução do casamento do sócio, a contratação de seguros de vida ou de previdência privada, investimentos em criptomoedas, entre outras formas de deslocar os bens comuns para fora da esfera conjugal.

Isso decorre do fato de não existir no Brasil a cultura de pactuar e de planejar as questões econômicas do casamento. É constrangedor, mas, ao evitar um mínimo desconforto inicial na troca de ideias sobre o tema, os cônjuges criam problemas finais muito mais dramáticos.

Atualmente, na esfera cível, a sanção específica contra essa prática é pouco utilizada e enfrenta resistência, mas quando resta caracterizado o dolo no desvio patrimônio, a punição é necessária. Essa penalização, ao contrário do que muitos pensam, é legalmente permitida nas divisões patrimoniais decorrentes do divórcio e das uniões estáveis, bastando perceber que o processo de inventário e partilha de bens é único. Ou seja, são aplicáveis todas as regras materiais e procedimentais em qualquer espécie de partilha de bens – divórcio, dissolução de união estável ou causa mortis –, inclusive a pena de sonegados (perda do direito ao bem omitido), pois outra não pode ser a conclusão após a imprescindível interpretação lógica, sistemática e finalística da norma.

Muito embora a pena de sonegados - prevista no art. 1.992 do Código Civil - esteja topograficamente situada no Livro do Direito Sucessório, é plenamente aplicável ao Direito de Família, pois, sendo a norma jurídica produto social e cultural, é imprescindível a busca do seu real significado, sentido e finalidade para servir à sociedade. No mesmo raciocínio lógico, se a finalidade do legislador é a garantia de uma partilha justa e equilibrada, independentemente de sua origem, todas as regras de direito material e de direito processual do inventário e partilha são aplicáveis ao Direito de Família, somente não tendo sido expressamente previstas no capítulo familiarista porque o Código de Processo Civil, no parágrafo único do art. 731, fez uma norma de remissão, isto é, remeteu ao Direito das Sucessões, apenas para não ter que repetir ipsis litteris toda a regulamentação e os princípios que regem o processo de divisão de bens.

A pena de sonegados, além de punir o fraudador, tem um caráter pedagógico e social, ou seja, desestimula aquele que tem intenção de fraudar pelo risco da perda do patrimônio omitido.

Exatamente nesse sentido, recentemente, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, no julgamento do Agravo de Instrumento de 4014280-06.2016.8.24.0000, determinou a apresentação dos bens sob pena de aplicação da sanção de sonegados, em partilha decorrente de divórcio.

De se notar que, em outros países, além de perder o direito sobre o bem escondido, o fraudador ainda tem que restituir o montante equivalente dobrado (por exemplo, art. 1.768 do Código Civil Chileno).

Em razão dessa resistência de alguns juízes na aplicação da pena de sonegados, foi proposto pela Senadora Soraya Thronicke (PSL/MS) o PL 2452/19, que acrescenta §§ 2º e 3º ao art. 1.575 do Código Civil, para dispor sobre a fraude na partilha de bens por ocasião da dissolução do casamento.

De acordo com a justificativa do referido projeto de lei, a alteração é inspirada na previsão do mencionado art. 1.992, também do Código Civil, o qual pune o coerdeiro que sonegar bens da herança, omiti-los na colação à qual os deva levar ou deixar de restituí-los, com a perda do direito que sobre eles lhe caiba, ou seja, acaba com a falsa ideia de que a pena de sonegados é exclusiva do Direito Sucessório.

Contudo, como a ideia não é a aplicação analógica, mas uma interpretação lógica e finalística da norma, melhor seria que o texto da proposta fosse na mesma direção, ou seja, remeter por completo - sem margem para dúvida - todo o contexto normativo, inclusive a pena de sonegados nas partilhas de bens decorrentes dos desenlaces conjugais, de forma que sugerimos apenas a inclusão de um novo parágrafo no art. 1.575 do Código Civil, para constar: “§2º Aplica-se nas partilhas decorrentes do divórcio, no que couber, as regras existentes no Livro V, Título IV, deste Código, inclusive dos sonegados, previstas nos arts. 1.992 a 1.996, sem prejuízo das sanções criminais”.

Na esfera criminal, a conduta pode ser classificada como a prática de estelionato (art. 171, Código Penal), pois, valendo-se de artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento, o agente obtém vantagem ilícita para si, induzindo ou mantendo em erro o cônjuge prejudicado.

É certo que, embora a fraude à partilha formalmente caracterize um estelionato, sua punição tende a esbarrar na escusa absolutória prevista pelo art. 181, inciso I, do Código Penal, que isenta de pena aquele que comete crime patrimonial contra o cônjuge na constância da sociedade conjugal, salvo nos casos de roubo ou de extorsão, ou, em geral, quando ocorre o emprego de grave ameaça ou de violência à pessoa (art. 183, I, Código Penal).

Trata-se de uma imunidade penal absoluta concedida pelo legislador, o qual, por razões de política criminal, mesmo quando a conduta é típica, antijurídica e praticada por agente culpável, entende que a proteção à unidade familiar prevalece sobre o interesse social na punição de delitos patrimoniais, salvo, como mencionado, nos casos em que há o emprego de grave ameaça ou violência à pessoa.

Por outro lado, quando a sociedade conjugal já tiver sido dissolvida, inexistirá a referida imunidade, de modo que o agente poderá responder pelo delito, bastando que a vítima ofereça representação contra o cônjuge que tenha praticado a fraude à partilha (art. 182, I, Código Penal).

De se notar que a referida imunidade também beneficia o agente que pratica o delito patrimonial no âmbito da união estável, pois, a partir da conjugação do art. 226, § 3º, da Constituição da República, com o entendimento manifestado pelo STF acerca da inconstitucionalidade na distinção de regime sucessório entre cônjuges e companheiros (RE 878.694/MG), não se pode discriminar as entidades familiares resultantes do casamento ou da união estável. O mesmo vale para a entidade familiar resultante de relação homoafetiva (ADIn 4277/DF). Considerando que a finalidade da norma penal (estabelecendo a imunidade absoluta) é proteger a unidade familiar, não pode o intérprete estabelecer (em desfavor do réu) uma discriminação inexistente na lei civil.

Como consequência, no mais das vezes, tanto na esfera cível quanto criminal, a fraude praticada para reduzir os quinhões da partilha ou mesmo impedi-la – isto é, zerando o acervo patrimonial – tendia a não receber punição.

Contudo, desde a edição da Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha), o tema pode assumir uma nova abordagem na esfera criminal, especificamente no que diz respeito à possibilidade de afastar a imunidade quando a conduta envolver o emprego de alguma modalidade de violência à pessoa. Isto porque, de acordo com os diversos incisos do art. 7º da referida Lei, o conceito de violência foi bastante ampliado nos casos em que ela é cometida no ambiente doméstico e familiar contra a mulher.

Apenas a título de ilustração, o legislador classificou como violência psicológica (inciso II, do art. 7º) a conduta que causar dano emocional e diminuição da autoestima, ou que prejudicar e perturbar o pleno desenvolvimento, ou que visa degradar ou controlar as ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir, ou qualquer outro meio que causar prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação da mulher.

Nesse sentido, quando a prática de crime patrimonial contra a mulher também envolver o emprego de violência psicológica, é possível que o cônjuge não seja beneficiado pela imunidade prevista pelo art. 181, inciso I, do Código Penal. Ou seja, o estelionato, ainda que tenha sido praticado no âmbito da sociedade conjugal – aquilo que se convencionou chamar de fraude à partilha –, pode ensejar a punição do agente quando houver o emprego de alguma das modalidades de violência à pessoa previstas pelo art. 7º, da Lei Maria da Penha.

Vale notar que, embora uma dessas hipóteses seja justamente a violência patrimonial (art. 7º, IV), nota-se pelo teor do dispositivo que não se trata de uma espécie do gênero violência à pessoa, mas sim uma violência contra o patrimônio, logo, em virtude do Princípio da Legalidade Penal, não entendemos viável o afastamento da imunidade absoluta nessa hipótese, que, vale frisar, somente afasta a escusa absolutória quando houver emprego de grave ameaça ou violência à pessoa.1 De todo modo, na prática, algumas das condutas tipificadas como violência patrimonial acabam integrando o próprio núcleo de crimes patrimoniais previstos pelo Código Penal.

Não bastasse o afastamento da imunidade penal – possibilitando a punição do cônjuge que pratica delito patrimonial na constância da sociedade conjugal –, outra consequência (do emprego de violência contra a mulher no contexto da fraude à partilha) é tornar prescindível a representação, nos casos em que o delito é praticado quando já inexiste a entidade conjugal, como prevê o caput do art. 183, do Código Penal. De acordo com o dispositivo, não se aplica o disposto nos arts. 181 e 182 quando há emprego de grave ameaça ou violência à pessoa, logo, caso a fraude à partilha envolva a prática de alguma das modalidades de violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 7º, incisos I, II, III e V, da Lei Maria da Penha), afasta-se a necessidade de representação mesmo quando praticada fora da constância da sociedade conjugal.

Por fim, merecem destaque outros dois aspectos penais relacionados à prática de fraude à partilha.

O primeiro deles é que, por expressa disposição legal, a imunidade penal não vale para terceiro que tenha contribuído para a fraude (art. 183, II, CP) nem pode ser aplicada quando o cônjuge for pessoa idosa (art. 183, III, CP). Isso significa que, por exemplo, o sócio do cônjuge que consente com uma alteração societária da empresa apenas para auxiliá-lo na ocultação (da propriedade) de quotas na partilha, eventualmente pode ser responsabilizado criminalmente, caso reste demonstrado que tinha consciência de que a conduta visava a esse fim.

O segundo é que, caso a fraude tenha sido praticada após a instauração do processo cível, sua potencialidade lesiva não se esgota na lesão aos direitos patrimoniais do cônjuge prejudicado, podendo atingir também a Administração da Justiça, motivo pelo qual a conduta pode caracterizar o crime de fraude processual (art. 347, CP).

Em síntese, muito embora a fraude à partilha seja um tema recorrente nas dissoluções de sociedades conjugais, a existência da imunidade penal para o cônjuge que pratica delito patrimonial (na constância da sociedade) não elimina as possibilidades de sua responsabilização, pois, a partir da edição da Lei Maria da Penha, alargou-se o conceito de violência doméstica e familiar contra a mulher, que, nesse caso específico, abre margem para o afastamento do benefício, nos termos do art. 183, inciso I, parte final, do Código Penal. Na esfera cível, em que pese já ser viável aplicar a pena de sonegados nos casos de omissão dolosa de bens pelo cônjuge, a aprovação do PL 2.452/19 tende a dissipar quaisquer resistências na aplicação da sanção.

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1 Na jurisprudência, há precedente com o entendimento de que o conceito de “violência patrimonial” previsto pelo art. 7º, IV, da Lei nº 11.340/06, permite afastar a imunidade penal do art. 181, I, do Código Penal: À época da edição do Código Penal, há mais de 70 anos, o escopo da norma era o de proteger a harmonia familiar em relação ao plano material, considerando, principalmente, que a previsão era de que a sociedade conjugal perdurava e qualquer produto de crime patrimonial cometido por um dos cônjuges permaneceria na família (...) é fato que naquela época a condenação de um dos cônjuges afetava diretamente o casamento, bem protegido pela imunidade penal. Noutro vértice, menos verdade não é que a literalidade da lei não mais corresponde aos anseios sociais, especialmente quando uma das partes tem a administração exclusiva do patrimônio e, com o divórcio em mente, pretende prejudicar o quinhão devido à outra, acabando com o respeito e por ferir a dignidade de seu cônjuge” (TJ/SP, 6ª C. Dir. Priv., HC 2133912-40.2015.8.26.0000, Des. José Percival Albano Nogueira Júnior) (fonte: Cônjuge que esvazia conta antes de divórcio comete crime contra o patrimônio, acesso em 15/05/20, às 18h40min).    

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*Anderson Lopes é advogado, mestre em Processo Penal pela USP, pós-graduado em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra em parceria com IBCCRIM, membro do IAB - Instituto dos Advogados Brasileiros.

*Marina Cardoso Dinamarco é advogada, pós-graduada em Direito de Família pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sócia fundadora do AIJUDEFA (Asociación Internacional de Juristas de Derecho de Familia) e sócia efetiva do IASP. 

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