A decretação da pandemia pela nociva ação do coronavírus acarretou sérias consequências não só na área da saúde, com a infecção de pessoas de inúmeros países, levando grande parte a óbito, mas também em seu desdobramento social e econômico de cada pessoa. Na realidade, a população mundial e muito menos os gestores públicos estavam preparados para uma situação emergencial de tamanha gravidade. Muitos países, como é o caso do Brasil, tiveram que se ajustar e até mesmo instalar hospitais improvisados para atender um número cada vez mais crescente dos infectados e, na parte econômica, aprumar-se apressadamente para garantir a renda mínima para a população considerada vulnerável.
O governo brasileiro, em razão da legislação de enfrentamento ao combate à covid-19, retratada pela lei 13.979/20, estabeleceu regras de isolamento social e também de fechamento temporário de atividades comerciais, industriais e atividades profissionais, fazendo com que grande parte da população perdesse o seu emprego ou suas atividades autônomas, ficando, desta forma, sem renda para o sustento próprio e familiar.
Diante disso, e com o clamor popular fazendo coro a respeito de providências para amainar a insuportável condição, o presidente da República sancionou a lei 13.982/20, que criou o Auxílio Emergencial, como medida de proteção social após a decretação do regime de calamidade pública. Tal programa nada mais é do que um benefício financeiro temporário a ser concedido a trabalhadores informais, microempreendedores individuais, autônomos, desempregados e à família cuja renda mensal seja até R$ 3.135,00. Consiste no pagamento de 3 parcelas de R$ 600,00 ou 3 parcelas de R$ 1,200,00 às mulheres consideradas chefes de família.
Para tanto, quem não for inscrito no CadÚnico, deverá se cadastrar no aplicativo ou no site do programa. Se forem preenchidos os requisitos, receberá os valores parcelados.
Ocorre que o Tribunal de Contas da União calcula que cerca de 8 milhões de pessoas podem ter recebido indevidamente o auxílio. Algumas, sem terem feito qualquer solicitação, receberam irregularmente os depósitos em suas contas. Neste caso, o beneficiário deverá providenciar a devolução pois, caso contrário, sabedor que é do depósito indevido, responderá pela prática do ilícito penal de apropriação indébita.
Mas há os casos das pessoas com condições financeiras estáveis, que se inscreveram para receber o benefício social, ofertando dados não verdadeiros e que foram suficientes para ludibriar o sistema e possibilitar o recebimento pretendido.
Há, ainda, os casos típicos de estelionatários que conseguem informações de dados pessoais e bancários de correntistas pela internet ou outros meios e promovem o recebimento do dinheiro, muitas vezes contando até mesmo com eventuais falhas de cruzamentos de dados nas informações do sistema. Neste caso, o beneficiário é vítima da ação e, como tal, deve fazer a comunicação da ocorrência em delegacia da Polícia Federal, exigência inclusive para solicitar o reembolso do benefício.
É de se observar que o delito de estelionato sofreu alterações com a vigência da recente lei 13.964/19, que conferiu a modalidade de ação penal pública condicionada à representação ao crime base, quer dizer, há necessidade que a vítima demonstre, de forma inequívoca, que pretende acionar judicialmente o agente que empregou a fraude para obter a vantagem ilícita. Porém, com a mudança agora introduzida, em sendo o crime praticado contra administração pública direta ou indireta, a ação penal passa a ser pública incondicionada, independentemente de qualquer autorização da vítima, ex VI do disposto no artigo 171 § 5º, I, da novatio legis.
Percebe-se, em decorrência de várias ações delituosas ocorridas recentemente, que o delito de estelionato vem sofrendo alterações em sua estrutura original. Deixa de ser um crime praticado na presença da vítima que era envolvida em uma mise-en-scène representativa de uma trama ardilosa, às vezes inicialmente rejeitada, porém com a arte de convencimento do agente, acabava por aceitar a proposta fraudulenta. Dizia-se que o estelionatário tinha que ser dotado de uma inteligência invulgar, além de saber representar seu personagem com perfeição. É o caso, por exemplo do conto do bilhete premiado, que reiteradamente ainda é aplicado e as pessoas dão crédito às falaciosas promessas.
A artimanha, o engodo, a mentira, o logro, o relato minucioso de um fato com manobras técnicas e falsas de convencimento são facetas da própria humanidade que, a cada tempo, de acordo com sua cultura e tradições, vem acentuando a habilidade de pessoas para trapacear e, consequentemente, auferir vantagens em prejuízo da incauta vítima. Quanto mais o homem se comunica, quanto mais desenvolve suas capacidades de montar tramas ardilosas, mais se aprimora na arte de aplicar golpes visando unicamente ao seu próprio benefício. E não é só. Quanto maior a tecnologia e a introdução de sistema de dados cada vez mais complexos, a bandidagem consegue se introduzir nas teias virtuais e obter ilícitas vantagens, em detrimento da vítima, a quem não conhece e muito menos teve qualquer trabalho para convencê-la.
É uma modalidade de crime que, ao que tudo indica, jamais será excluída do Código Penal.
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