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A busca do equilíbrio entre credores e empresas em recuperação judicial na pandemia do covid-19 - (PL 1.397/20)

Ressaltamos a importância de se dirigir um olhar à figura dos credores, também impactados pela crise, independentemente da posição que figure na cadeia produtiva do país.

3/7/2020

É fato notório que o mundo vem sofrendo com a pandemia global da covid-19 e consequentemente isso está trazendo inúmeros prejuízos de ordem econômica e financeira, seja para entes públicos, privados e principalmente para população em geral.

O país enfrenta uma calamidade pública de grandes proporções, reconhecida como tal pelo decreto legislativo 6/20, expedido em meio a pandemia resultante da disseminação da covid-19. A rápida expansão dessa doença motivou a promulgação da lei 13.979/20, que prevê a adoção de medidas excepcionais e de emergência, no campo sanitário e saúde pública, para combatê-la. A singularidade da situação de emergência vivida pelo Brasil e por outras nações mostra-se indiscutível.

Por sua vez, no âmbito doméstico, percebemos diversos setores da economia em dificuldades financeiras. Empresas de diversos portes vem suplicando por medidas urgentes e emergenciais para não falirem.

Segundo reportagem veiculada no site UOL1, em 15/5/20, existem  diversos relatos de empresas e setores em dificuldades financeiras em meio à pandemia da covid-19, permeando quase todos os setores da economia. Por sua vez, o número de pedidos de falências e recuperações judiciais ainda não refletem essa situação. Segundo especialistas, o “fenômeno pode ser calmaria da maré que precede tsunami”.

A grande expectativa, nesse cenário nebuloso é o Projeto de Lei 1.397/20, de autoria do deputado Federal Hugo Leal – PSD/RJ, que foi aprovado pelo sistema de votação virtual do Plenário da Câmara dos Deputados em 21 de maio de 2020, criando algumas regras diferenciadas e excepcionais para beneficiar diversas empresas em crise, facilitando a recuperação judicial e minimizando o impacto de eventuais falências.

O referido projeto de lei, visa a colaborar com o enfrentamento da crise originada pela pandemia de covid-19, por meio de alterações de natureza emergencial e transitória no regime jurídico regulado pela lei 1.101, de 9 de fevereiro de 2005, que regula a recuperação judicial, extrajudicial e falência do empresário e da sociedade empresária. Embora a proposta esteja dirigida aos devedores, é importante resguardar os interesses de credores igualmente impactados pela crise.

A Proposta Original do Projeto de Lei 1.397 de 2020, que já passou pela Câmara dos Deputados, sofreu diversas alterações até chegar ao Senado. Já no Senado, o Projeto possui, até o final desta redação, 14 (quatorze) emendas, apresentadas por 06 (seis) Senadores.  

Na mesma senda das propostas de Emendas já apresentadas ao Senado Federal, fizemos uma sugestão de emenda a proposição, que também foi encaminhada ao Senado, afim de equilibrar as relações jurídicas previstas no Projeto de Lei 1.397/20, ou seja, entre o Agente Econômico e seu Credor.

Para tanto, a proposta de emenda visa garantir um maior equilíbrio e isonomia entre as partes envolvidas, evitando-se, assim, um efeito cascata na cadeia de insolvência, principalmente aos credores, muitas vezes parte mais frágil e impactada nesse ralação.

Dentro da filosofia esculpida no sistema de prevenção à insolvência, previsto no Capítulo II, quando trata na sessão III da possibilidade negociações preventivas entre Agente Econômico e Credor, necessário que o inciso II do art. 6º, caiba uma prorrogação mínima de mais trinta dias, estendendo o prazo inicial de 90 (noventa) dias para 120 (cento e vinte) dias. Isso porque, ainda existe uma grande possibilidade de renovação do decreto legislativo 6/20, prorrogando-se o prazo de calamidade pública.

O que estamos observando, em tempo real, pelas análises gráficas da pandemia no Brasil2, é que a curva ainda encontra-se ascendente, mesmo após quase 04 (quatro) meses da declaração de Calamidade Pública. Aparentemente, o país apresenta dados que não se igualam a nenhuma outra nação do mundo, levando-se a presumir que as restrições impostas à sociedade e ao comércio em geral, vão perdurar por mais tempo que inicialmente previsto. Não raro, encontramos casos de municípios que flexibilizaram o comércio e em curto espaço de tempo voltaram atrás, em razão do aumento dos contágios. Todo esse fenômeno, faz crer que qualquer prazo previsto para negociações poderão ser insuficientes.  

Por sua vez, quando tratamos de obrigações previstas em Planos de Recuperações Judiciais ou Extrajudiciais já homologados e deliberados em Assembleia Gerais de Credores, entendemos que o prazo de suspensão de sua exigibilidade e cumprimento poderão ser prorrogados de 120 (cento e vinte) dias para um prazo de 150 (cento e cinquenta) dias, contando-se esse prazo da data de 20.03.20, ou seja, do Decreto Legislativo 06/20 que estabeleceu o marco inicial do estado de Calamidade Pública no país. Ficando, durante este período, suspensos os efeitos do art. 73, IV, da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, que prevê a decretação da falência do agente econômico no caso de descumprimento de qualquer obrigação assumida no Plano de Recuperação Judicial.

A tônica da prorrogação e da contagem de prazo retroativa a data da vigência do decreto de calamidade pública, visa assegurar aos credores o mínimo de prejuízo quanto ao recebimento dos seus créditos, já que muitos Planos de Recuperação Judiciais estão sendo descumpridos em razão da pandemia, ou até mesmo antes dela, por motivos alheios ao tema. É muito importante que esse Projeto de Lei vise trazer equilíbrio na relação entre Agente Econômico e Credor, e parafraseando o Dr. Oreste Nestor de Souza Laspro, Administrador Judicial com atuação no Estado de São Paulo, em comentário proferido na Webnar Extraordinária OAB/SP & EPM – Recuperação Judicial e a Pandemia de COVID-19, que: “O credor de hoje pode ser a recuperanda de amanhã”.

Como já dito, não obstante a proposta estar dirigida à figura do agente econômico/devedor, a partir dos impactos econômicos por esse sofrido em decorrência da crise da COVID-19, ressaltamos a importância de se dirigir um olhar à figura dos credores, também impactados pela crise, independentemente da posição que figure na cadeia produtiva do país.

A preocupação com os impactos do texto do Projeto 1397/20, na forma que se encontra hoje no Senado, já possui manifestações de importantes membros do Poder Judiciário, como foi o caso do Artigo Publicado pelo Juiz Dr. Paulo Furtado Oliveira Filho, da 2º Vara de Falência e Recuperação Judicial de São Paulo, no jornal Folha de São Paulo3, onde preleciona que: “não é adequado à solução da crise empresarial e será o grande responsável pelo aumento da curva de demandas no Poder Judiciário”. 

Por sua vez, em justificativa dada a Emenda nº 4, do Projeto de Lei 1.397/20, apresentada pelo Senador Rodrigo Cunha do PSDB/AL, o início da suspensão do prazo da exigência do cumprimento do Plano de Recuperação Judicial, será contado da data do decreto de calamidade pública, até 120 (cento) e vinte dias após a vigência da lei 1.397/20, isso porque:

“A presente emenda tem dois propósitos: (i) deixar claro que a suspensão da exigibilidade das obrigações constantes em Planos de Recuperação Judicial ou Extrajudicial já aprovados deve ser contada desde 20/03/2020, e (ii) definir a duração da suspensão de modo diverso para cada situação específica." A primeira questão é importante, inclusive para se por no plano legal a mesma ideia que contém na Recomendação nº 63 do Conselho SF Nacional de Justiça, para encerrar insegurança jurídica quanto ao início da suspensão das obrigações dos Planos aprovados.

Há notícias de que alguns Juízos e/ou Tribunais, mesmo reconhecendo a situação de força maior, têm rejeitado a suspensão das obrigações, apesar da Recomendação do CNJ, ao argumento da ausência de Lei ou de deliberação das Assembleias Gerais de Credores neste sentido.

Ora, neste período da pandemia, as reuniões das Assembleias Gerais de Credores estão proibidas de ocorrer por provocar aglomerações de pessoas. E a realidade da quase totalidade dos casos no país é que também ainda é inviável a realização de Assembleias de Credores virtualmente. Isto, portanto, implica que os agentes econômicos em recuperação judicial ou extrajudicial não têm, por ora, como negociar com seus credores a suspensão das obrigações.

Daí, então, a necessidade de estabelecer esta suspensão por Lei.

E é importante que se diga que o início da suspensão é desde 20/3/20, data de início das medidas de enfrentamento da pandemia, inclusive marco adotado neste projeto de lei, para se afastar em definitivo o risco de convolação em falência por eventual descumprimento dos Planos.

É certo que o art. 13, III, do projeto dispõe que “durante a vigência das disposições constantes desta Lei... III - não será aplicável o art. 73, IV, da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005”, porém ficará um zona cinzenta entre o período desde o início da pandemia e a aprovação deste projeto.

Ou seja, salvo se tiver havido decisão judicial em contrário suspendendo a exigibilidade das obrigações, e há casos em que isto não foi acolhido, tem-se que obrigações de Planos de Recuperação vencidas entre 20/03/2020 até hoje podem ter sido descumpridas em razão da crise que se instalou no país, notadamente por empresas que ficaram impedidas de funcionar por medidas de quarentena e isolamento social determinadas. E isto pode sujeitar estas empresas a pedidos de convolação da recuperação em falência, gerando inegável instabilidade e insegurança jurídica, neste momento já conturbado.

Portanto, o propósito desta emenda é complementar a ideia do projeto, deixando claro que durante este período de crise, desde o seu início e pelos prazos marcados, não pode haver convolações de recuperações em falências, pondo-se isto para todos os atores dos processos recuperacionais com a força normativa necessária. (...)

Lado outro, quando o Projeto de Lei trata em seu art. 12 da possibilidade de apresentação de um novo Plano de Recuperação Judicial ou Extrajudicial pelo Agente Econômico (empresa recuperanda), ainda que já exista um homologado em juízo, trazemos à baila a necessidade de que esse novo plano, quando for incluir novos credores surgidos após a distribuição da Recuperação Judicial, o faça de forma separada, criando-se um procedimento exclusivo para os novos credores, inclusive novas Assembleias Gerais, evitando-se assim eventual conflito de interesses entre os credores antigos e os novos. Aqui teremos uma ficção jurídica, ou seja, duas Recuperações Judiciais em tramite no mesmo processo judicial, facilitando o trabalho dos magistrados, advogados e demais operadores do direito, sem ferir prazos já cumpridos, direito adquirido ou coisa julgada.   

Portanto, entendemos ser perfeitamente possível o Agente Econômico apresentar um novo Plano de Recuperação Judicial, voltado exclusivamente aos novos credores, sem que haja vinculação obrigatória desses credores ao Plano de Recuperação Judicial anterior.

Por fim, após leitura percuciente da inteligência exposta no inciso III do art. 13 do Projeto de Lei, recomendamos que a suspensão dos prazos previsto no inciso IV do caput do art. 73 da Lei n.º 11.101, de 09 de fevereiro de 2005, que prevê a decretação da falência do agente econômico no caso de descumprimento de qualquer obrigação assumida no Plano de Recuperação Judicial, estejam adstritos ao período de 150 (cento e cinquenta) dias sugeridos no § 1º do art. 11 do Projeto.

Por derradeiro, face a necessidade premente da votação das medidas emergenciais e transitórias propostas, esperamos contribuir na melhora da aplicação do Projeto de Lei 1397/20, trazendo maiores benefícios aos agentes econômicos e a cadeia de credores. 

Referências

Ayoub, Luiz Roberto; Cavalli, Cássio. A construção jurisprudencial da recuperação judicial de empresas – 3º Ed. Ver., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2017.

Salomão, Luis Felipe; Santos, Paulo Penalva. Recuperação judicial, extrajudicial e falência; teoria e prática. – 3º Ed. Ver. Atual. e ampl. – (2. Reimpr.) – Rio de Janeiro: Forense, 2017.

Oliveira Filho, Paulo Furtado. Os impactos do projeto de lei 1.397/2020. Folha de São Paulo, em 21 de maio de 2020.

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/portaria/DLG6-2020.htm

https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-13.979-de-6-de-fevereiro-de-2020-242078735

https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/05/isolamento-social-represa-pedidos-de falencia-e-recuperacao-judicial.shtml

https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/142143

https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2020/06/04/interna-brasil,861191/brasil-completa-100-dias-de-covid-19-com-maior-curva-ascendente-no-mun.shtml

https://www.youtube.com/watch?v=a3Ie-WUL84c

https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8116589&disposition=inline

_____________

1 Isolamento social represa pedidos de falência e recuperação judicial.

Brasil completa 100 dias de covid-19 com maior curva ascendente no mundo.

3 OLIVEIRA FILHO, Paulo Furtado. ‘Os impactos do projeto de lei 1.397/2020’. Folha de São Paulo, em 21/5/20

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*Leandro Figueiredo Pinheiro é mestrando em Gestão Empresarial pela Universidade Lusófona, especialista em Direito Empresarial pela IEC/MG e graduado em Direito pela PUC/MG. Lecionou Direito Internacional Público/Privado em curso preparatório para a Carreira Diplomática do Itamaraty. É consultor técnico legislativo externo da Câmara e Senado. Sócio fundador do escritório LFP Consultoria Empresarial. 

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