Diversos estudos apontam o isolamento social e a testagem em massa da população como os meios mais eficazes de mitigar a disseminação do coronavírus.1 Mesmo assim, por aqui, o isolamento é muito pouco respeitado e bem menos estimulado do que deveria pelo Poder Público. Além disso, o Brasil é o país que menos testa no mundo2, já registra quase 50 mil mortos por covid-193 e caminha a passos largos para superar os Estados Unidos como recordista mundial em número de mortes.4
Como se nada disso estivesse acontecendo, noticia-se amplamente um movimento nacional de flexibilização das regras de isolamento social.5 6 O “relaxamento” é explicado pelos governantes com base em uma suposta necessidade emergencial de reaquecimento do comércio.7 Isso mesmo, abre-se mão de medidas que salvam vidas por razões comerciais. E isso não é sequer escondido, é discurso oficial mesmo.
A irresponsável “volta do comércio”, traz consigo a óbvia reflexão sobre as prioridades de nossos representantes e da própria sociedade. Que não ligam para a vida alheia, já ficou claro. Que não escondem isso, também. Mas, ao menos, sejam coerentes.
Como justificar a flexibilização de medidas sanitárias para que o “comércio volte a produzir” e continuar super rigoroso no que diz respeito a não realização de audiências e atos processuais presenciais durante a pandemia?
Os Tribunais de Justiça de todo o país elaboraram portarias, decretos e resoluções suspendendo as audiências de custódia, Tribunais do Júri e vários outros atos que dependem da presença física do réu, seu defensor, promotor de justiça e juiz, baseando a decisão em orientações da Organização Mundial da Saúde.8
Contudo, diante da abertura de shoppings centers, salões de beleza e restaurantes (atividades obviamente não essenciais) fica difícil justificar a manutenção da suspensão dos atos processuais. As regras sanitárias só devem ser seguidas por atores processuais e réus? De que adianta não ter audiências, que reúnem, diga-se de passagem, ente quatro e cinco pessoas no mesmo ambiente, e ter aglomerações em restaurantes, bares e centros comerciais? É isso mesmo que o caro leitor está pensando: de nada, não vale absolutamente de nada. É totalmente ilógico e só deixa escancarada a existência de uma sociedade doente.
Lembrando que o adiamento destes procedimentos leva a um processo com maior grau de aflição ao réu, pois mais demorado, ou, até mesmo, é sinônimo da manutenção de prisões provisórias, fazendo crescer o número já absurdo de presos aguardando julgamento no Brasil.9 Ao contrário da abertura de shoppings, no caso de pessoas presas, há urgência na realização do ato, e a atividade judiciária deve, sim, quase que por obviedade, vez que lida com a liberdade das pessoas, ser considerada uma atividade essencial.
Estamos mesmo naturalizando o fato de que produtos e o consumismo valem mais do que seres humanos? Normalizou-se de tal forma a objetificação da pessoa processada criminalmente ou presa que não conseguimos mais percebê-las como seres humanos? A sociedade é tão consumista e capitalista a ponto de crer ser mais essencial comprar do que tutelar a liberdade de uma pessoa?
Estas perguntas parecem se inclinar para uma resposta positiva. A coisificação dos homens e mulheres encarcerados chegou ao ponto de valer menos do que um robô-aspirador ou uma fritadeira elétrica, sonhos de consumo de uma burguesia cega para os problemas sociais ao seu redor. Cega a tal ponto de sair para o shopping, mesmo sabendo que pode ser um disseminador do vírus e que quase meio milhão de pessoas perderam sua vida para esta doença.10
O poeta, compositor e cantor Cazuza já dizia, 31 anos atrás, em uma de suas músicas mais vanguardistas:
“A burguesia quer ser sócia do Country.
A burguesia quer ir a New York fazer compras. São caboclos querendo ser ingleses.
A burguesia só olha pra si, a burguesia só olha pra si [...] A burguesia fede, a burguesia quer ficar rica”.
Triste, preocupante, agoniante. Parece mesmo que a humanidade não deu certo. Tomara que a espécie que nos suceda neste farto planeta seja mais, ou menos, já nem sei mais, humanos.
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*Cauê Bouzon Machado Freire Ribeiro é defensor Público do Estado do Paraná. Graduado em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Pós-graduado em Direito Processual Civil. Pós-graduando em Direitos Humanos no Ciclo de Estudos Pela Internet (Curso CEI).