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A cédula de produto rural na Nova Lei do Agro (ordinária Federal 1.3986/20)

A Cédula de Produto Rural foi introduzida no ordenamento jurídico pela lei 8.929/94, visando à tomada de recursos financeiros de forma mais célere e econômica ao produtor rural.

30/6/2020

A Cédula de Produto Rural foi introduzida no ordenamento jurídico pela lei 8.929/94, visando à tomada de recursos financeiros de forma mais célere e econômica ao produtor rural. Trata-se de título de crédito por endosso (completo), que com o advento da lei 10.200/01, passou a ser de duas espécies: a de produto, que instrumentaliza um contrato de compra e venda sendo pactuado pagamento a vista, e a financeira, que materializa, por sua vez, um contrato de mútuo. Ambas as modalidades podem ser emitidas com ou sem garantia. Em 2019, esse arcabouço jurídico fora modificado pela promulgação da MP 897/19, convertida na lei 13.986/20. Argumentou-se que o setor precisava ampliar o fluxo de crédito não bancário e que o governo, por sua vez, estaria alargando as possibilidades dos produtores gerirem seus próprios negócios com cada vez menos interferência do estado.

A primeira das modificações é a ampliação do rol dos legitimados a sua emissão (novel art. 2 da lei 8.929/94), que agora, além do produtor rural, suas associações e cooperativas, conta com todo aquele que explora floresta nativa ou plantada, e ainda que, beneficie ou promova a primeira industrialização de produtos rurais. Outra modificação importante é que passa a se permitir ser objeto da cédula, (art. 1º, §2º, inciso I e II da citada lei), a produção agrícola, a pecuária, a de floresta plantada, a de pesca, a de aquicultura e seus derivados, subprodutos e resíduos de valor econômico, inclusive quando submetidos a beneficiamento ou primeira industrialização. Outra alteração importante: foram ampliadas as espécies de garantias admitidas, além das conhecidas: aval, penhor, garantias imobiliárias e fiduciárias (fungíveis e infungíveis), passam a serem possíveis os novíssimos: Fundo Garantidor Solidário (FGS) e o Patrimônio Rural em Afetação (PRA), sendo ambos os objetos de artigo próprio. Como se pode perceber, com tais alterações, o legislador tentou ampliar o espectro de circulação do título, fomentando a participação de outros agentes econômicos (sejam dos outros entes que compunham a cadeia produtiva como o caso dos que realizam o primeiro processo de beneficiamento, sejam por atrair mais financiadores), outorgando aos credores garantias jamais vistas sob o pálio de assim, diminuir os custos da operação.

No que tange ao conteúdo importante perceber que agora, obrigatoriamente as cédulas terão que pontuar as condições de avaliação, classificação e liquidação do título, entrave que tornava ainda mais conflituosa a relação no campo. Como cediço, ao entregar o produto que se obrigou o agente do campo, muitas vezes, terminava por ficar a mercê do financiador que classificava o produto como bem quisesse, gerando uma infinidade de conflitos a serem resolvidos no Poder Judiciário.

Também passa a ser obrigatória a inscrição na CPR acerca da essencialidade do bem dado em garantia, o que traz transparência aos negociadores. O fomentador passa, a saber, de antemão que aquela garantia poderá sofrer limitações no decurso de um processo de recuperação judicial.

Agora, no título também será previsto a localização do produto, o que certamente facilitará a operação para o fomentador que além de saber onde buscar o produto em caso de inadimplemento, ao que tudo indica, poderá inclusive fiscalizar o gerenciamento deste.

Nos termos do novo art. 3º-A da lei 8.929/94, a forma e conteúdo das cédulas também foram alterados, admitindo-se, agora, a forma escritural (digitais) bem como cartular, ambas reconhecidas como ativos financeiros. Todas as cédulas devem ser necessariamente, registradas em entidades a serem autorizadas pelo Banco Central do Brasil, findando-se, assim, as “CPRs de gaveta”, opção consagrada principalmente por aqueles que não poderiam arcar com os custos cartorários. Além deste novo registro obrigatório, querendo que a garantia ofertada tenha validade e eficácia contra terceiros, as partes podem continuar a registrá-las nos cartórios, a depender da espécie (Registro de Imóveis ou Títulos e Documentos). Uma vez registrada ou depositada, o produto rural objeto da garantia se tornará inalienável.

Mudança ainda importante é a possibilidade de a CPR ser, agora, atrelada à moeda estrangeira, o que facilita a operação para aqueles quem têm despesas em outra moeda, o que não ocorria. Antes, os agentes que pretendessem fazer operação em outra moeda terminavam por realizar um segundo contrato junto ao principal.

Como vimos, trata se de uma tentativa de fomentar o financiamento privado do agronegócio, tornando-o mais competitivo no mercado internacional. Modificações tópicas e pontuais bem vindas, que se representam um grande passo, ainda não atende o caminho de pleitos do setor. Além das realizadas, seria importante oferecer também uma solução estratégica concertada e coordenada para os grandes gargalos do setor: logística e infraestrutura de transporte; infraestrutura de armazenamento e o complexo sistema tributário. Se salutar o elastecimento do rol de legitimados e das espécies de garantia, temos que a insegurança gerada pela possibilidade de descrição dos bens vinculados em garantia em documento à parte, continua sendo um ponto de insegurança que poderia ter sido removido. Como a proposta era reduzir os custos nas operações e assim “empoderar” o produtor rural, parece-nos que tal desiderato, por si só, não será alcançado.

O obrigatório procedimento de “registro/depósito” torna o negócio jurídico ainda mais burocrático e muito provavelmente caro, pois a lei termina por criar mais um agente na cadeia já que mantida a necessidade de registro das próprias garantias nos cartórios. Aliás, em tempos digitais, nada mais justifica procedimentos morosos como estes. Interessante notar que nem mesmo o regime jurídico daqueles que serão autorizados a registrar os títulos pelo BACEN fora previsto pelo Poder Executivo, o que traz insegurança inclusive sobre os preços a serem praticados. Como as regras não são claras e sabemos que não há um sistema integrado de informações dos cartórios, certamente, o custo da burocracia, que no Brasil, não guarda racionalidade econômica com o serviço prestado, poderá gerar entrave imediato. Ao invés de ajudar o produtor, nos parece que o tiro saiu pela culatra.

Parece-nos também que um ponto fulcral foi sonegado: aqueles que como nós atuam na área, sabem que um dos grandes problemas das CPRs é a divergência de valores atribuídos as garantias, sobretudo as da alienação fiduciária, subavaliadas, em média, em meros 50% do valor de mercado do bem ofertado em garantia. A solução justa desse impasse: empoderaria o produtor e certamente, se perdeu a oportunidade de fazê-lo.

Por fim, ninguém duvida que seja preciso construir e robustecer a ponte entre o mercado financeiro de capitais e o agronegócio chegando até este, recursos necessários a gerar funcionamento ainda mais eficiente e sustentável. Não é novidade para ninguém o alto grau de profissionalização do setor que faz uso de novas tecnologias, a super capacitação dos seus administradores e o constante aprimoramento da gestão corporativa, inclusive com a sistemática aplicação de práticas de governança. Esta, porém, é a realidade dos grandes players, que na maioria das vezes, tem nível de endividamento baixo (em comparação com seu faturamento), e já emitem dívidas de curto (os commercial papers) ou longo prazo (como é o caso das debêntures) e até mesmo ações. Esses sim podem discutir cláusulas com bancos e tradings. Para os pequenos, que diante do alto risco de seus créditos (em virtude do alto endividamento), fazem uso de operações estruturada com títulos como a CPR e muitas vezes, não tem sequer assessoria jurídica especializada, nos parece que a conta pode sair cara.

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*Samantha Rondon Gahyva é sócia do escritório Gahyva e Maldonado Sociedade de Advogados.

*Doralice da Silva Pereira é consultora em Direito Registral e Notarial.

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