Há algumas décadas, o Direito Penal deixou de tutelar apenas e tão somente os bens jurídicos clássicos, como a vida, o patrimônio e a integridade física. Desde então, aquele que era para ser a ultima ratio passou a ser utilizado também para proteção de estruturas criadas conforme a evolução das sociedades, como o sistema financeiro, a ordem tributária, a economia popular, as relações de consumo, o ambiente digital, entre tantos outros.
Com essas mudanças, alguns conceitos igualmente clássicos da tutela penal que costumavam ser facilmente identificáveis nos crimes tradicionais acabaram remodelados para que os novos interesses, por vezes legítimos, da sociedade pudessem ser protegidos.
Ocorre que, nesse processo histórico de evolução, que não necessariamente significa uma melhoria do Direito Penal, mas apenas um inevitável navegar por novos mares, alguns elementos fundantes e que dão embasamento à possibilidade punitiva estatal restaram esquecidos em algum porto qualquer, situação que ainda hoje faz muitas acusações naufragarem.
Um desses princípios clássicos, muitas vezes esquecido, mas que é absolutamente indisponível sob pena da ruína de todo o sistema de garantias individuais, é o da anterioridade da lei penal, ou seja, aquele que prevê que ninguém pode ser punido senão por uma conduta que esteja prevista numa norma já em vigor ao tempo dos fatos.
Esse princípio traz consigo a importante restrição punitiva para que num estado de direito não sejam admitidas acusações de ocasião, nem que se mudem as regras do jogo durante o seu curso. A principal consequência disso é permitir que os cidadãos tenham uma previsibilidade das potenciais consequências de suas ações ou omissões e, assim, possam livremente optar pela sua prática ou não conforme seu livre arbítrio.
Um dos exemplos atuais de abandono de tal princípio – lastreado, aliás, no princípio da legalidade – e que, por essa razão, tem grande potencial de gerar a absolvição em diversos processos criminais de repercussão é a aplicação equivocada da lei de crimes contra o sistema financeiro nacional (lei 7.492/86) aos casos envolvendo a administração das entidades de previdência complementar, mais popularmente conhecidas como fundos de pensão.
Nos últimos anos, os fundos de pensão provavelmente se revelaram como um dos símbolos mais claros das enormes mudanças de correlação de forças nas economias das sociedades contemporâneas. Em termos amplos, referidas entidades reúnem os recursos de uma grande coletividade de trabalhadores de setores importantes da economia, com o fim primordial de garantir uma aposentadoria complementar a esses trabalhadores, quando do encerramento da jornada de vida de trabalho destes.
A criação dos fundos de pensão anteviu os problemas pelos quais praticamente todas as estruturas de seguridade social do mundo passariam, pois, com as alterações nas relações sociais e até mesmo com a inversão nas pirâmides de crescimento das populações, os Estados já há algum tempo têm encontrado dificuldades em assegurar uma remuneração compatível com o que se espera como qualidade de vida aos aposentados. Por essa razão, os trabalhadores, quando possível, acabam se socorrendo dos sistemas privados para a complementação de renda.
Os recursos administrados pelos fundos de pensão originam-se na contribuição advinda de parte dos recebíveis dos trabalhadores durante todo o ciclo de atividade laboral, podendo esses valores serem ainda complementados pelas empresas empregadoras. Com a reunião desses valores durante um certo período bem como diante de um enorme contingente de indivíduos, os fundos de pensão têm sob seu domínio muitas vezes em carteira de recursos capazes de quitar as dívidas de um país.
A responsabilidade dos administradores dos fundos de pensão não pode ser desconsiderada, pois cabe a eles a gestão dos recursos visando à manutenção da plena saúde financeira da entidade ao mesmo tempo em que devem buscar investimentos que proporcionem resultados que sejam suficientes para o pagamento das complementações das aposentadorias atuais e futuras daqueles que contribuíram durante toda a vida.
Esse acúmulo de capital decorrente da união de recursos de grande contingente de trabalhadores possibilitou a formação de grandes entidades. Por essa razão, não raros são os casos de fundos de pensão que hoje são proprietários diretos ou indiretos de conglomerados de empresas e detentores de grandes propriedades.
Com tamanha importância e quantidade de recursos, não é difícil imaginar a possibilidade de que no seio dos fundos de pensão também possam ser praticadas condutas graves que visem ao desvio não só das finalidades das entidades de pensão, mas principalmente dos seus ativos, em prejuízo de toda uma coletividade.
Algumas das recentes e rumorosas operações da Polícia Federal como Greenfield, Cui Bono, Rizoma e Pausare ganharam notoriedade exatamente porque tinham como objeto a apuração de supostos desvios nos maiores fundos de pensão do país como a Petros (ligado aos empregados da PETROBRAS), FUNCEF (Caixa Econômica Federal), PREVI (Banco do Brasil) e POSTALIS (Correios).
Apesar de ser absolutamente compreensível e até justo que se busque a proteção de entidades que deveriam gerir o patrimônio coletivo de uma grande quantidade de colaboradores, em quase a totalidade dos casos mencionados têm se afirmado que os fundos de pensão seriam instituições financeiras por equiparação para, dessa forma, incorretamente imputar aos acusados os delitos previstos na lei de crimes contra o sistema financeiro nacional acima referida.
A bem da verdade, diante da importância dos fundos e das potenciais consequências que eventuais desvios podem ocasionar, como a insolvência do fundo e o prejuízo de uma quantidade enorme de trabalhadores, não é de todo absurdo projetar que, no futuro, com as devidas correções e alterações, os fundos podem vir a ser remodelados para figurarem no rol de instituições cujos administradores devem se submeter às penalidades previstas na lei 7.492/86. Contudo, na atual configuração, essa não é a natureza jurídica dos fundos de pensão nem existe lei que autorize essa equiparação, portanto a aplicação das penalidades da lei de crimes contra o sistema financeiro nacional aos gestores de fundos encontra impedimento exatamente no princípio da anterioridade da lei penal.
A própria Constituição Federal de 1988, em seu artigo 202, ao tratar justamente das entidades de previdência complementar, deixou claro que, por se tratar de um subsistema específico e que carece de uma regulamentação própria, se faria necessária a edição de uma lei complementar que organizasse e regulasse o mercado de previdência complementar.
No passado, com a edição da lei 8.177/91, houve uma tentativa de se equiparar, por meio do artigo 29, de forma forçada e sem as devidas adequações administrativas necessárias, as entidades de previdência a instituições financeiras. Por esse motivo, a Associação Brasileira das Entidades Fechadas de Previdência Complementar (ABRAPP) solicitou ao procurador Geral da República o ingresso de uma ação direta de inconstitucionalidade sobre essa questão no Supremo Tribunal Federal. Ao julgar o pedido liminar na ADIN 504-9/DF, o eminente ministro Paulo Brosssard suspendeu liminarmente a aplicação do referido artigo.
O julgamento final da referida ADIN se deu apenas depois do advento da lei complementar 109/01, essa sim que efetivamente complementou o artigo 202 da Constituição Federal e regulamentou os fundos de pensão. Portanto, considerando a entrada em vigor da referida lei, em decisão terminativa sobre a questão, o eminente ministro relator Maurício Correa acatou1 os argumentos apresentados pelo Parquet Federal e entendeu que a LC 109/01, por ser mais específica, revogou todos os diplomas jurídicos anteriores que equiparavam os fundos de pensão às instituições financeiras, no que se inclui a lei 7.492/86.
Ou seja, se um dia existiram leis que previram a equiparação dos fundos de pensão a instituições financeiras ou a aplicação da lei de crimes contra o sistema financeiro nacional às entidades de previdência complementar, não há dúvidas de que estas deixaram de existir com as decisões judiciais da ADIN 504/9-DF e a edição da LC 109/01 o que, por conseguinte, deixou um vácuo legislativo que impede por completo o manuseio da lei 7.492/86 para tais casos.
Mas se não fosse por esse ponto, ainda assim o fato é que toda instituição financeira, por sua própria natureza, submete-se à regulamentação, supervisão e fiscalização do Banco Central ou da CVM. Diferentemente desses, as entidades fechadasde previdência complementar são, segundo a legislação específica, reguladas e fiscalizadas pelo Conselho Nacional de Previdência Complementar (CNPC) e pela PREVIC. Já as entidades de previdência abertas são reguladas e fiscalizadas pelo Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP) e pela SUSEP.
Tanto a SUSEP quanto a PREVIC são autarquias absolutamente independentes do Banco Central e da CVM. Portanto, se as entidades que regulam o sistema financeiro e as instituições integrantes do sistema financeiro não têm atribuição fiscalizadora sobre os fundos de pensão, resta sem sentido, no enquadramento atual, qualquer afirmação de que os fundos de pensão teriam a mesma natureza de uma instituição bancária ou de uma corretora de valores, por exemplo.
Em verdade, tão ou mais importante do que a verificação da posição dos fundos no organograma estatal, sem dúvida alguma o argumento mais evidente da inaplicabilidade da lei 7.492/86 aos gestores de fundos de pensão está na constatação, em consulta na página virtual das casas legislativas federais, de que estão em tramitação no Congresso Nacional pelo menos 3 projetos de lei que pretendem equiparar os fundos de pensão a instituições financeiras e com isso torná-los passíveis de aplicação da lei 7.492/86. Dentre esses projetos, o mais avançado é aquele que atualmente tem o número PL 5.546/192, de autoria do ex-senador José Aníbal, sendo que tal projeto se encontra em discussão na Câmara dos Deputados, após sua aprovação no Senado.
Por um lado, a existência de um projeto de lei que visa exatamente à aplicação da lei de crimes contra o sistema financeiro nacional no âmbito dos fundos de pensão é, por si só, prova cabal de que a normativa atualmente existente não permite essa imputação, caso contrário, referidos projetos seriam totalmente desnecessários. Por outro, no mérito, parece acertada a modificação legislativa proposta para que futuramente este importante segmento da economia e da vida social de milhares de famílias esteja sob a supervisão do Banco Central, uma instituição de Estado menos sujeita aos ventos da política de plantão e que pode atender a uma melhor supervisão do subsistema de previdência complementar.
Assim, as regras tanto para os gestores das entidades quanto para os participantes ficam mais claras e trazem uma maior segurança ao setor, com uma regulação mais rígida e técnica e sem que seja necessária a utilização de estratagemas ilegais para a punição dos eventuais malfeitores. Afinal de contas, não é porque algo é importante que é dado ao Sistema de Justiça o direito de se substituir ao legislador, único politicamente autorizado a criar normas, ainda mais quando estas podem levar à perda de liberdade de um indivíduo.
Por esses motivos, por mais que pareça justo e razoável que a gestão dos fundos de pensão tenham uma atenção especial da lei na perspectiva do Sistema Financeiro Nacional, sem que uma norma nesse sentido seja aprovada pelo Congresso Nacional, a tentativa de sua imposição no atual cenário em que não existe lei para tanto só contribui para o descrédito das instituições, pois os processos criminais estarão fadados ao fracasso como consequência natural da falta de técnica acusatória e o ímpeto penalizador, que muito se aproxima de um exercício arbitrário das próprias razões daqueles que não reconhecem suas responsabilidades no que diz respeito à famigerada “impunidade”.
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1 Ocorre que, recentemente, foi editada a Lei Complementar 109, de 29 de maio de 2001, a qual, obedecendo ao comando do artigo 202 da Carta Federal, com a nova redação introduzida pela Emenda Constitucional 20/98, tornou-se a nova Lei da Previdência Privada. Por isso, além de ter revogado expressamente a Lei ordinária 6.435/77, que cuidava da matéria, tendo disposto inteiramente sobre o regime de previdência complementar, revogou tacitamente tudo quanto sobre o tema pudesse estar disciplinado em outras leis anteriores (Lei de Introdução do Código Civil, artigo 2º, § 1º, in fine). 16. Observe-se que o requerente, ao irrogar vício de inconstitucionalidade formal à norma atacada, sustenta que a lei ordinária não poderia dispor sobre fiscalização, normatização, coordenação, supervisão e controle das atividades das entidades de previdência privada. Ocorre, todavia, que toda a preocupação do requerente perdeu o sentido diante da edição da referida Lei Complementar 109/01, que, conforme ficou explicitado, revogou a norma atacada na parte referente à previdência privada. Todas as questões atinentes à fiscalização das referidas entidades pelo Banco Central e outros órgãos controladores estão disciplinados na nova Lei da Previdência Privada (LC 109/01), principalmente em seus artigos 5º; 9º; 13, § 2º; 38; 41 a 43; e 64, em que se estabelecem regras de subordinação das referidas entidades ao órgão fiscalizador.17. Com a superveniência da nova lei que alterou substancialmente a norma impugnada no que se refere à previdência privada, impossível se torna seu controle abstrato, conforme jurisprudência tranqüila desta Corte (ADI nº 539-DF, Moreira Alves, DJ de 22.10.93, e os seguintes precedentes em decisões monocráticas: ADIs 2.004-DF, Néri da Silveira, DJ de 01.07.99; 1 90-DF, Carlos Velloso, DJ de 15.04.99; 3 -SP e 1.974-DF, Maurício Corrêa, DJ de 19.11.98 e 23.08.99.
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