O famigerado direito ao silêncio, positivado no artigo 5º, LXIII da Carta Maior1, apresenta-se como uma das decorrências do princípio nemo tenetur se detegere. Nas palavras de Maria Elizabeth Queijo2, o aludido princípio “tem sido considerado direito fundamental do cidadão e, mais especificamente, do acusado. Cuida-se do direito à não auto-incriminação, que assegura esfera de liberdade ao indivíduo, oponível ao Estado, que não se resume ao direito ao silêncio.”
Superada a breve elucidação contextual do princípio preconizado pelo artigo 8º, 2, "g", da Convenção Americana de Direitos Humanos3, surge o seguinte questionamento: a conduta do réu de opor-se fornecer ao juízo seus dados bancários existentes no exterior, constitui crime de desobediência?
Aury Lopes Jr., diga-se, de maneira pontualíssima, leciona que o "direito de silêncio é apenas uma manifestação de uma garantia muito maior, esculpida no princípio nemo tenetur se detegere, segundo a qual o sujeito passivo não pode sofrer nenhum prejuízo jurídico por omitir-se de colaborar em uma atividade probatória da acusação ou por exercer seu direito de silêncio quando interrogado".4 (Grifei)
Na mesma esteira, Alberto Zacharias Toron5, de modo clínico, realça que a guarita contra a autoincriminação significa, num todo, "a afirmação de que a pessoa não está obrigada a produzir prova contra si mesma."
Em suma, o direito à não autoincriminação é um direito individual, humano e fundamental, de observância inescusável no processo penal. Não é exequível compelir o ser humano a agir contra sua própria vontade, o que, caso acontecesse na prática, violaria por completo a integridade mental e moral do réu.
Na hipótese, a negativa do réu em fornecer ao juízo seus dados bancários estabelecidos no exterior, não constitui a conduta típica insculpida no artigo 330 do Código Penal, haja vista que, se assim fosse, estar-se-ia transgredindo a natureza humana e, portanto, a dignidade do acusado, transferindo-o o ônus que compete integralmente ao Estado-acusação, subvertendo a lógica do processo penal acusatório.
Ora, forçar o acusado a propiciar ao juízo seus dados sigilosos, abre indiscutível margem para que se origine múltiplas consequências negativas, haja vista que, nesta etapa, o polo passivo da ação penal pode optar por manter-se em silêncio, confessar, se autoincriminar ou não e, por fim, até mesmo mentir, com fundamento no princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais.
Simplificando, ao preferir permanecer em silêncio e não se autoincriminar, o réu estará agindo no exercício regular de um cristalino direito constitucional, logo, não poderá o magistrado imputar ao acusado a prática do delito de desobediência, com fundamento no artigo 23, inciso III, do Código Penal.6
Ademais, a Lei Processual também efetiva o direito ao silêncio em seu artigo 1867, tonificando que este não será manipulado juridicamente em desfavor do réu. No mesmo sentido é a jurisprudência do e. Supremo Tribunal Federal, a exemplo dos seguintes precedentes: HC 79.589/DF;8 HC 73.035/DF;9 HC 79.244/DF;10 HC 101.909/MG;11 HC 79.812/SP.12
Sem mais delongas, é cristalino que o direito ao silêncio denota-se elemento inexorável que compõe a autodefesa do réu, decorrente do supracitado princípio nemo tenetur se detegere, que possui esteio legal tanto na Convenção Americana de Direitos Humanos (OEA) como no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (ONU).
Por derradeiro, é cediço que atribuir ao réu a prática do delito capitulado no artigo 330 do Código Penal, na hipótese de opor-se apresentar seus dados bancários estabelecidos no exterior, o magistrado estaria barganhando sua competência de autoridade no procedimento criminal, trocando-a, lamentavelmente, pela conveniência cinzelada no ranço inculcado por aquilo que mais se teme no cenário processual penal contemporâneo, isto é, o autoritarismo.
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1 LXIII – o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado; Disponível clicando aqui
2 QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo (o princípio nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal). São Paulo: Saraiva, 2003.
3 2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: g. direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada; Disponível clicando aqui
4 LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 446.
5 TORON, Alberto Zacharias. Habeas Corpus e o Controle do Devido Processo Legal: Questões Controvertidas e de Processamento do Writ. 2ª ed., revista atualizada e ampliada. Revista dos Tribunais, 2018, p. 64.
6 Art. 23 - Não há crime quando o agente pratica o fato: III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. (Grifei). Disponível clicando aqui
7 Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas. Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa. Disponível clicando aqui
8 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 79.589/DF. Relator: MIN. OCTAVIO GALLOTTI. Disponível clicando aqui
9 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 73.035/DF. Relator: MIN. CARLOS VELLOSO. Disponível clicando aqui
10 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 79.244/DF. Relator: MIN. SEPÚLVEDA PERTENCE. Disponível clicando aqui
11 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 101.909/MG. Relator: MIN. AYRES BRITTO. Disponível clicando aqui
12 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 79.812/SP. Relator: MIN. CELSO DE MELLO. Disponível clicando aqui
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*Anderson Rodrigues de Almeida é advogado criminalista.