Em todo Brasil, as empresas concessionárias de serviço público municipal de transporte coletivo de passageiros - direito social e serviço público de caráter essencial nos termos da Constituição Federal de 19881 - sempre enfrentaram grande dificuldade econômica para o seu funcionamento.
Como é comumente verificado na maioria dos municípios, os gestores públicos optam por impor às concessionárias de transporte coletivo a fixação da chamada “tarifa social”, muito aquém do que as planilhas técnico-tarifárias impõem como valor necessário para cobrir os custos com o sistema.
Esse déficit tarifário implica na percepção de que os valores percebidos pela concessionária são insuficientes para cobrir os custos necessários para a manutenção do próprio serviço de transporte, o que, aliado à inexistência de subsídio tarifário para recomposição da diferença, revela gravoso desequilíbrio financeiro para as empresas.
A situação das concessionárias de serviço público de transporte coletivo de passageiros foi ainda mais agravada diante das medidas restritivas de circulação da população determinada pelos entes federativos, tendo em vista a “quarentena” (isolamento social) imposta para combate à disseminação do coronavírus – covid-19.
Segundo estudo produzido pela Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU)2, a pandemia do coronavírus – covid-19 teve grave repercussão na demanda de passageiros, tendo em vista que “a redução média identificada foi da ordem de 80% na quantidade de passageiros transportados”.
Em razão do possível colapso em seu sistema de transporte coletivo, alguns municípios vêm adotando diversas medidas administrativas visando o auxílio emergencial às concessionárias, tais quais, v.g., a subvenção, redução/isenção de impostos, suspensão de gratuidades, compra de créditos de passagens, aporte financeiro para compra de combustível, dentre outras.
Quando as negociações administrativas se mostram infrutíferas, não resta outra opção senão a provocação do Poder Judiciário para garantir a própria sobrevivência da empresa e a manutenção do serviço público prestado.
Recentemente, em decisão paradigmática, o Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo deferiu, nos autos do processo de 5001126-06.2020.8.08.0000, pedido de antecipação de tutela formulado pela empresa concessionária do serviço de transporte público coletivo de Guarapari/ES.
Em sua decisão monocrática, o desembargador relator Fabio Clem de Oliveira considerou que no cenário atual da pandemia do covid-19, os entes federativos adotaram diversas medidas para conter a proliferação da pandemia, dentre elas a restrição da circulação de pessoas, fato que inequivocamente repercute no equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão do serviço de transporte público municipal firmado entre as partes.
Também deixou evidente que a expressiva queda do número de passageiros no período de vigência das medidas restritivas, é circunstância apta a admitir a adoção de providências para restabelecer o equilíbrio contratual, ainda que temporariamente, enquanto perdurar a situação de emergência, evitando que haja interrupção na prestação do serviço.
Em razão de tais considerações, concluiu pela necessidade de deferimento da tutela antecipada pleiteada, para determinar que “o Município de Guarapari/ES instaure procedimento administrativo destinado a apurar eventual desequilíbrio econômico-financeiro no contrato de concessão de serviço público de transporte coletivo firmado com a agravante, decorrente das medidas de restrição à circulação de pessoas adotadas para conter a proliferação da pandemia de COVID-19, o qual deverá ser concluído no prazo de 15 (quinze) dias a partir da intimação desta decisão e, observado o princípio da reserva do possível, se for o caso, indicar medidas administrativas possíveis de serem executadas para compensar as perdas sofridas e garantir a continuidade do serviço, sem comprometer o necessário para garantir a prestação do serviço público de saúde”.
Trata-se de decisão de extrema relevância, com repercussão direta não apenas para a empresa concessionária, mas sobretudo para os munícipes que delas se utilizam, cuja continuidade do serviço encontrava-se ameaçada de paralisação.
Medidas judiciais semelhantes vêm sendo observadas em outros municípios, como no caso da decisão liminar proferida pelo Juízo da Comarca de Goiânia, nos autos de 5183984.19.2020.8.09.0051, ou pelo juízo da 3ª Vara Cível da Comarca de Pindamonhangaba/SP, nos autos do processo 1001408-37.2020.8.26.0445.
Tratam-se de decisões judiciais pontuais e particulares, mas que possibilitam a continuidade da prestação do serviço público essencial.
Em tais casos, deve o magistrado julgador, ao se deparar com a situação de penúria das empresas concessionárias de serviço público de transporte coletivo, cuja situação agravou-se em decorrência da pandemia do coronavírus (covid-19), fundamentar seu entendimento em vistas da continuidade da prestação do serviço essencial e da manutenção do necessário equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão
Ademais, deve atentar-se para as consequências práticas que eventual indeferimento do pleito da concessionária poderá acarretar para a população local, diante dos sérios riscos de paralisação total do serviço e do dever de consideração das consequências práticas da decisão previsto no art. 203, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.
Trata-se de comando normativo que imputa ao Julgador o ônus de, previamente à tomada de decisão, averiguar as consequências práticas da medida a ser determinada, adotando-se aquela que a um só tempo possa tutelar o direito do autor, sem ferir as garantias do demandado, e possibilite o êxito social na satisfação da pretensão deduzida.
No caso em comento, entendeu o Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo que a medida mais eficaz para tutela de todos os direitos envolvidos seria a determinação para que o Município instaurasse procedimento administrativo para apurar o desequilíbrio econômico-financeiro no contrato, permitindo, via de consequência, a sobrevivência econômica da empresa.
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1 Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Art. 30. Compete aos Municípios:
[...]
V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;
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3 Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.
Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.
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*Álvaro Augusto Lauff Machado é sócio advogado responsável pela área de Direito Administrativo e Tributário do escritório de advocacia Alcure, Pereira & Puppim. Doutorando e mestre em Direito. Vice-presidente da Comissão de Direito Tributário da OAB/ES.