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Deferir ou não deferir liminares em ação de despejo durante a pandemia: Eis a questão

O veto ao art. 9º do PL 1.179/20 atende o interesse público?

17/6/2020

Nos últimos dias de 2019 o mundo começou a assistir, entre estarrecido e surpreso, o surgimento de um vírus que se espalhava, assustadoramente, no território chinês. Logo os casos se multiplicaram e passaram a afetar outros países, a ponto de se tornar uma epidemia de proporções inimagináveis, assolando todos os povos em volta do globo.

No Brasil não foi diferente. Entre a falta de preparo e de desenvolvimento de estratégias sociais, econômicas e políticas, a crise epidêmica causada pelo coronavírus revelou a existência de uma nação mais frágil do que se pensava, causando um profundo impacto nas relações do país, trazendo um caos não apenas sanitário, mas também econômico. As relações humanas existenciais e patrimoniais também foram profundamente afetadas, exigindo, então, a adoção de medidas urgentes.

Uma delas foi a elaboração do PL 1.179/20 por uma comissão de notáveis juristas, associada a parlamentares que, visando o atendimento do interesse público, se propuseram a colocar “as mãos na massa”, instituindo o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de direito privado (RJET) durante a pandemia do coronavírus.

Em seu amplo rol de dispositivos, que buscou regular inúmeras matérias atinentes às relações jurídicas de direito privado, encontra-se o art. 9º, que teve como propósito tratar, especificamente, do contrato de locação de imóvel urbano. Assim previa o dispositivo em exame:

Art. 9° Não se concederá liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo, a que se refere o art. 59, § 1°, incisos I, II, V, VII, VIII e IX, da Lei n° 8.245, de 18 de outubro de 1991, até 30 de outubro de 2020.

Parágrafo único. O disposto no caput deste artigo aplica-se apenas às ações ajuizadas a partir de 20 de março de 2020.

A regra disposta no art. 9º do PL 1.179/20 teve como propósito, como se percebe, criar um obstáculo à concessão de liminares em ação de despejo proposta por locadores em face de locatários por um dos motivos taxativamente previstos no próprio texto, dentre eles o não cumprimento da obrigação de pagar os aluguéis. E isso se deve ao drástico efeito que esta decisão acarreta sobre os contratos de locação de imóvel urbano residencial.

A ação de despejo é uma ação constitutiva negativa, uma vez que objetiva o rompimento do contrato de locação, e cuja ordem de desalijo é dada na própria decisão desconstitutiva do vínculo jurídico, impondo-se o seu automático cumprimento. Assim, ordenado o despejo, rompida estará a relação contratual, impondo-se a imediata saída do locatário do imóvel. Suas consequências, portanto, são extremas.

Por essa razão, o Legislativo procurou, com o referido dispositivo, impedir que durante o período da crise epidêmica fosse o locatário despejado liminarmente do imóvel, rompendo antecipadamente o vínculo a partir de um juízo de cognição sumária, tanto nas hipóteses de locação para fins residenciais, quanto naquela para fins comerciais. E as razões parecem ser óbvias.

Primeiro, e antes de adentrar na análise da mens legis, é preciso destacar que a norma criada pelo projeto de lei 1.179/20 não proíbe o ajuizamento da ação de despejo, preservando, assim, o direito de ação. Segundo que a proibição recai, apenas, sobre a concessão de liminares no período estritamente previsto no parágrafo único do art. 9º do projeto, a demonstrar uma situação excepcionalíssima, que não impede que, ao final da ação, seja determinado o despejo e, tampouco, que após o transcurso do prazo previsto no lei, possa ser examinado eventual pedido liminar. Preserva-se, pois, o direito do locador.

No que tange aos motivos da lei, em se tratando de contrato de locação de imóvel residencial, a manutenção da posse do bem pelo inquilino, durante a epidemia, é uma questão humanitária que atende, inexoravelmente, a dignidade da pessoa humana. Isso porque o locatário dificilmente logrará encontrar outro imóvel para estabelecer sua residência, haja vista que, se não teve condições de pagar os aluguéis em razão da crise, não terá meios de fazer sua mudança e, muito menos, arcar com as despesas de aluguel e demais encargos de outro imóvel. A consequência: muitos serão obrigados a fixar sua moradia em locais de absoluta precariedade. Desse modo, é inequívoco que a proibição do despejo liminar, durante o período de alta da epidemia, tem um evidente e superior interesse social e humano. Cuida-se de autêntica regra emergencial.

Ademais, o despejo, neste momento, também traz enorme risco sanitário, tendo em vista que inúmeras pessoas – algumas delas inseridas no grupo de risco – estão guardando a quarentena, mantendo-se sem contato com outras pessoas. Com efeito, o desalijo ira expô-las a grave risco de contágio, de modo que a proibição da concessão de liminares, neste momento, também é uma questão de saúde pública.

Por outro turno, também nas locações de imóvel para fins comerciais as consequências são drásticas. O despejo levará, inexoravelmente, a uma situação de crise irreversível para o exercente da atividade econômica que, por certo, se tornará insolvente (sendo empresário, falido), causando impactos ainda mais graves sobre o mercado e a economia. A não concessão da liminar, portanto, também tem como fundamento a preservação da empresa e da atividade econômica em sentido amplo, interesses esses igualmente amparados pela Constituição pelos princípios da função social da empresa e da livre iniciativa.

Além de tudo o que se disse, há que se ter em mente, neste instante, que o não pagamento dos aluguéis, na grande maioria dos casos, não é motivado por razões fúteis, desleais ou maliciosas. Em verdade, o inadimplemento tem como fundamento a grave crise que recai sobre todos. Então, o atraso e o não pagamento não são culposos, decorrendo, nessas hipóteses excepcionais, de um caso fortuito ou de força maior.

É certo, contudo, que não se desconhece a necessidade de tutela dos interesses dos locadores, sendo que muitos deles dependem da renda do aluguel do imóvel para a sua subsistência e de sua família. Essa, inclusive, é a razão exposta no veto presidencial, senão vejamos: “A propositura legislativa, ao vedar a concessão de liminar nas ações de despejo, contraria o interesse público por suspender um dos instrumentos de coerção ao pagamento das obrigações pactuadas na avença de locação (o despejo), por um prazo substancialmente longo, dando-se, portanto, proteção excessiva ao devedor em detrimento do credor, além de promover o incentivo ao inadimplemento e em desconsideração da realidade de diversos locadores que dependem do recebimento de alugueis como forma complementar ou, até mesmo, exclusiva de renda para o sustento próprio”.

Vê-se, portanto, que o veto se fundamenta no interesse público, mais propriamente o “interesse público” (?) do credor. No entanto, como demonstrado anteriormente, a proibição da liminar é que atende, com maior adequação, o interesse público, mais particularmente a dignidade da pessoa humana, o direito de moradia e a preservação da atividade econômica. Há, assim, a presença do interesse coletivo e do interesse social/econômico a justificar a edição da regra emergencial e transitória.

Nada obstante, a referida mensagem do veto também é falaciosa e dissonante da realidade do mercado imobiliário. Ora, no presente momento, a retomada do imóvel não trará nenhum interesse prático para o locador. Primeiro porque dificilmente ele conseguirá obter um novo locatário para ocupar o imóvel, dada a inequívoca situação de crise. Esta dificuldade já existia antes da pandemia, e agora se agravará ainda mais. Segundo que, permanecendo com o imóvel desocupado, terá ele que arcar com todas as despesas ordinárias inerentes ao bem, sem poder depois exigir do locatário os referidos valores, caso este estivesse ocupando o imóvel e não estivesse fazendo os respectivos pagamentos. E terceiro que, mantendo o imóvel ocupado há uma expectativa de que o locatário consiga, posteriormente, retomar o adimplemento, o que não ocorrerá se houver o despejo e o locador estiver buscando um novo locatário.

Por essas razões, crê-se que andou mal o Poder Executivo, na figura do presidente da República, em vetar o art. 9º do PL 1.179/20, uma vez que nenhum dos interesses supostamente amparados no veto serão atendidos.

Cumpre destacar, por fim, que não há dúvidas de que a regra estabelecida no projeto pode não agradar a todos, e isso é natural em qualquer coletividade, particularmente no ambiente de uma sociedade plural. No entanto, o propósito de uma lei, ainda que não atenda os interesses da unanimidade, é pacificar os conflitos, evitando-se que eles se eternizem no ambiente também desgastante de um processo judicial.

Portanto, o trabalho não se encerrou: concita-se o Congresso Nacional a promover a rejeição do veto presidencial, de modo a permitir a promulgação do projetado art. 9° Somente assim haverá, de fato, concretização do interesse público na edição de norma jurídica que permita a estabilidade das relações jurídicas no âmbito contratual, notadamente no período emergencial e transitório relativo às consequências da pandemia da covid-19.

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*Guilherme Calmon Nogueira da Gama é desembargador do Tribunal Regional Federal da 2ª região (RJ-ES). Professor titular de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professor permanente do PPGD da Universidade Estácio de Sá. Professor titular de Direito Civil do IBMEC. Mestre e Doutor em Direito Civil pela UERJ.



*Thiago Ferreira Cardoso Neves é advogado mestre e doutorando em Direito Civil pela UERJ. Professor dos cursos de pós-graduação da EMERJ, da PUC/Rio e do CERS. Visiting researcher no Max Planck Institute for Comparative and International Private Law - ALE. Vice-presidente Administrativo da Academia Brasileira de Direito Civil – ABDC. Sócio do escritório Almeida Neves Advogados.

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