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Da teoria da imprevisão e a possibilidade de revisão de contratos em decorrência da pandemia de covid-19 (coronavírus)

A pandemia do coronavírus pode ser considerada como fato imprevisível, em matéria de contratos, e dar aplicabilidade à teoria da imprevisão para resolver o contrato ou apenas operar a sua revisão, nos termos dos artigos 478, 479 e 480, todos do Código Civil.

16/6/2020

Tedros Adhanom, diretor geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), declarou no dia 11 de março deste ano que a OMS elevou o estado da contaminação à pandemia de covid-19, doença causada pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2)1. A pandemia espanta e gera pavor, seja por sua abrangência, seja pela rapidez com que o vírus e as severas medidas de contenção e isolamento avançam pelo mundo, seja pela gravidade de suas consequências.

O mundo está ameaçado e paralisado, literalmente, assevera-se, de forma unânime, que nunca aconteceu algo desta magnitude antes na história da humanidade. A doença, que surgiu no final de dezembro, na China, está presente em todos os continentes e tem causado impactos nos mercados globais.

Através das políticas públicas para contenção da disseminação do vírus vislumbramos a paralisação das cidades brasileiras com a promulgação de decretos que restringem a circulação de pessoas, bem como estabelecem o fechamento ou a restrição do funcionamento de estabelecimentos considerados não essenciais, causando a paralisação em massa da atividade de vários profissionais intimamente ligados ao comércio e serviços em geral.

Em virtude da redução da produção de bens, da comercialização e do consumo reduzido, a situação financeira das empresas brasileiras e dos profissionais autônomos está sendo drasticamente afetada pela disseminação do vírus, consequentemente, os inúmeros contratos celebrados em uma realidade econômica (antes da pandemia), estão sendo executados em um cenário de crise pandêmica, trazendo impactos sobre a base econômica ou a execução do contrato.

Portanto, dentro deste contexto, surgem questionamentos a respeito da possibilidade de revisão ou até mesmo resolução contratual com base na pandemia; é o caso de contratos de locação, contratos de prestação de serviços, contratos de cessão de quotas sociais, contratos de compromisso de compra e venda, contratos de empreitada, contratos de empréstimos e financiamentos em geral, ocasião em que, o aplicador do direito analisando casuisticamente o caso, poderá exarar seu parecer a respeito da viabilidade ou não da proposta de revisão ou resolução contratual.

DO DIREITO APLICÁVEL À ESPÉCIE – DA FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA QUE PERMITE A REVISÃO OU A RESOLUÇÃO CONTRATUAL EM CASO DE ACONTECIMENTO EXTRAORDINÁRIO E IMPREVISÍVEL.

"A pandemia equivale a guerra e pode gerar postergação de pagamentos", afirma o desembargador Cesar Ciampolini, da 1ª Câmara de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo, processo 2061905-74.2020.8.26.0000.

A teoria da imprevisão, adotada pelo Código Civil2, estabelece a possibilidade de rescisão ou de revisão contratual em hipóteses de ocorrência de situações excepcionais, que não poderiam ser previstas ou reguladas pelas partes.

Diante do arcabouço jurídico estampado pelo Código Civil (arts. 478, 479 e 480 todos do Código Civil), é evidente que a situação gerada pela pandemia do coronavírus pode ser enquadrada como "acontecimento extraordinário e imprevisível", na dicção do art. 478 do Código Civil, autorizando a revisão contratual.

CÓDIGO DE HAMURÁBI: Khammu-rabi, rei da Babilônia no 18º século A.C., estendeu grandemente o seu império e governou uma confederação de cidades-estado. Erigiu, no final do seu reinado, uma enorme "estela" em diorito, na qual ele é retratado recebendo a insígnia do reinado e da justiça do rei Marduk. Abaixo mandou escreverem 21 colunas, 282 cláusulas que ficaram conhecidas como Código de Hamurábi (embora abrangesse também antigas leis). Dentro deste código antigo já se abordava a Teoria da Imprevisão.3

A primeira notícia que se tem sobre a teoria da imprevisão  foi na lei 48 do Código de Hammurabi que assim dispunha: "Se alguém tem um débito a juros, e uma tempestade devasta o campo ou destrói a colheita, ou por falta de água não cresce o trigo no campo, ele não deverá nesse ano dar trigo ao credor, deverá modificar sua tábua de contrato e não pagar juros por esse ano"4

Conforme preleciona BITTAR5 6, em Contornos atuais da teoria dos contratos: Santo Agostinho, na Idade Média, afirmava que não haveria descumprimento de uma promessa acaso ocorresse algo que impedisse o seu fiel cumprimento. Posteriormente, Santo Tomás de Aquino dizia que para cumprir integralmente a promessa seria necessário estarem presente todas as circunstâncias de outrora. Em verdade, foram os canonistas que definiram a cláusula rebus sic stantibus (Teoria da Imprevisão), como sendo uma cláusula implícita nos contratos, em que os contratantes eram obrigados a cumprir o avençado desde que as condições econômicas no momento da contratação permanecessem imutáveis.

A teoria da imprevisão é cabível nos contratos desde que seja um contrato de execução diferida, continuada ou periódica, e nunca de execução imediata, conforme expressa previsão do art. 478 do Código Civil. Outrossim, faz-se necessário a existência de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis -  como é o caso da pandemia do covid-19 - levando a um desequilíbrio acentuado entre as prestações, superior ao que pudesse ser devido à alínea normal do contrato.

De outra banda, a aplicação da teoria da imprevisão não leva somente à resolução do contrato, mas também enseja a modificação equitativa para que esse se convalesça, de modo a permitir o cumprimento do pactuado em harmonia com a ordem econômica e social vigente, conforme previsão do art. 479 do Código Civil.

Em resumo, a pandemia do coronavírus pode ser considerada como fato imprevisível, em matéria de contratos, e dar ensejo a teoria da imprevisão para resolver o contrato (art. 478 do CC) ou apenas operar a sua revisão com a modificação equitativa (art. 479 do CC).

Sobre a teoria da imprevisão, a corte responsável por uniformizar a interpretação da lei federal em todo o Brasil (Superior Tribunal de Justiça) fixou os limites da aplicação desta teoria, e, mesmo não tendo tido tempo suficiente para que as demandas relativas aos contratos subjugados pela Pandemia chegassem à esta Instância máxima, faz-se necessário demonstrar as circunstâncias aptas a aplicabilidade da revisão ou resolução contratual, senão vejamos:

"A jurisprudência desta Corte Superior possui entendimento segundo o qual a Teoria da Imprevisão somente se aplica quando for demonstrada a ocorrência, após a vigência do contrato, de evento imprevisível e extraordinário que onere excessivamente uma das partes contratantes, não se inserindo, nesse contexto, as intempéries climáticas. Incidência da súmula [...].7

O desembargador Cesar Ciampolini, da 1ª Câmara de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo, no processo 2061905-74.2020.8.26.0000, ao analisar o agravo de instrumento nos autos de ação revisional de contrato de cessão de quotas, ajuizada por C.C.O. contra A.A.L, utilizou-se da Teoria da Imprevisão para deferir a antecipação de tutela.

Conforme consta na íntegra da decisão, que pode ser disponibilizada no site do TJSP8, a pandemia do vírus SARS-CoV-2 ("coronavírus") deu ensejo ao enquadramento da situação como "acontecimento extraordinário e imprevisível", nos termos do art. 478 do Código Civil, e desta forma, ensejadora da revisão contratual de cessão de quotas.

O desembargador deferiu a antecipação de tutela concedendo à agravante o direito de rever o contrato para pagar o valor total das três parcelas (de abril, maio e junho deste ano), que perfazem, juntas, o montante de R$ 15.000,00, a serem parceladas em dez prestações mensais.

Portanto, trata-se do caso prático tipificado na norma do art. 479 do Código Civil concernente à revisão equitativamente das condições do contrato, em que se utilizou a pandemia para justificar a aplicabilidade da teoria da imprevisibilidade.

"O problema é que esses engenhos – à semelhança dos remédios usuais ministrados para as crises usuais – foram concebidos para guerras convencionais, em que se assume que uma das partes está "pior" ou "melhor" do que a outra, ou em que uma delas "ganha muito" com a desgraça da outra, ou que "se aproveita" da situação da outra. - André Esteves, em entrevista ao site Migalhas"9

Do ponto de vista econômico, todos nós fomos, estamos sendo ou seremos afetados pela pandemia, caberão, contudo, aos juristas e intérpretes do Direito utilizarem com sabedoria as teorias incutidas dentro do arcabouço jurídico tais como a teoria da imprevisão ou mesmo as teorias da quebra da base do negócio, fato do príncipe, onerosidade excessiva, entre outras tantas teses que poderão auxiliar na estruturação lógica de um pedido de revisão ou resolução de contratos.

Essas condutas são absolutamente legítimas e bastante previsíveis, dadas as atuais circunstâncias.  As partes, tendo como alvo os seus interesses, estão utilizando todo o arsenal disponibilizado pelo Direito para lidar com as anormalidades que podem advir durante o curso de um contrato pactuado antes da pandemia e que será cumprido nestas circunstâncias excepcionais.

Entretanto, cabe aqui uma ressalva importante, todos os negócios jurídicos, dos mais singelos aos mais sofisticados, de direito público e de direito privado estão sendo afetados, pelas mais diversas razões e nas mais diversas circunstâncias, o prejuízo deverá ser arcado por todos; realmente, sobrou para todo mundo a "onerosidade excessiva", ressalvadas exceções, é plausível supor que será tarefa árdua indicar, com precisão e certeza, qual dos contratantes é a parte mais afetada pelo que está ocorrendo.

Com efeito, os prejuízos ameaçam ser para todos, e, nesse cenário, como fazer com a possibilidade de uma revisão contratual que, embora requerida e objetivamente adequada sob a perspectiva tradicional, pode produzir uma onerosidade excessiva para ambas as partes? Talvez a resposta mais adequada seja estampada no velho brocardo latino "Dormientibus Non Sucurrit Ius (o Direito não socorre aos que dormem).

Em verdade, somos todos companheiros da presente desventura, estamos todos em pé de aparente igualdade nesta situação que se mostrou como uma verdadeira vulgarização da "onerosidade excessiva global".

Ora, aos tribunais pátrios caberão a árdua tarefa de separar o joio do trigo, e analisar os contratos em que efetivamente ocorreu a extrema vantagem para uma parte em detrimento da outra, devendo-se, contudo, evitar arbítrios a fim de não gerar o alastramento de um sentimento generalizado de calote inescrupuloso.

___________

2 "Código Civil – LEI 10.406, DE 10 DE JANEIRO DE 2002

Art. 478 do Código Civil: Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação."

"Art. 479 do Código Civil:. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato."

"Art. 480 do Código Civil: Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva".

3 CÓDIGO DE HAMURÁBI. – Pesquisado em 8.4.2020.

4 (BITTAR, Carlos Alberto (Coordenador). Contornos atuais da teoria dos contratos. Revista dos Tribunais: São Paulo, 1993).

5 (BITTAR, Carlos Alberto (Coordenador). Op. Cit.,

7 (AgInt no AREsp 1309282/PR, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 12/8/2019, DJe 15/8/2019)

8 TJ/SP – Pesquisado em 9.4.2020

9 Crise do coronavírus: André Esteves aborda riscos e desafios..

___________

*Braulio Aragão Coimbra é pós graduado em Processo Civil. Pós graduando em Direito Tributário. Advogado do Escritório Januário Advocacia

 

 

 

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