O Direito é uma construção cultural, ciência que sempre correrá atrás dos fatos. Em outras palavras, o Direito é como um reflexo da sociedade e dos tempos que vivemos. Ao passo que a humanidade evolui, seja com a criação de novas tecnologias, seja com situações de crise, o Direito é obrigado a caminhar junto. Isto vem com a criação de novas leis, novos entendimentos doutrinários e jurisprudência que vai se moldando aos tempos e desafios.
O Poder Judiciário, as leis e os players deste mercado (em especial, os advogados) são vistos habitualmente com desconfiança e descrédito, fruto de suas práticas arcaicas e uma notável dificuldade enraizada de se modernizar e se adaptar ao mundo 4.0.
Com a pandemia da Covid-19, muito mais atenção foi dada ao mundo jurídico, tendo em vista os inúmeros reflexos que a questão sanitária trouxe. Em poucos dias, dezenas de novas normas alteravam temporariamente direitos trabalhistas de forma bastante relevante, outras alteravam os direitos consumeristas, como tentativas de criar um melhor balanço nas relações desestabilizadas pela crise. Tivemos flexibilização de regras tributárias e alteração de dezenas de regramentos administrativos. Ainda, órgãos emitiram portarias com planos emergenciais de ação, tal como o INPI (Instituto Nacional da Propriedade Industrial) que passou a priorizar análises de pedidos de patentes relativos a inovações que possam ser usadas no combate à pandemia do novo coronavírus.
Tudo sob o holofote da mídia e do grande público, o mundo jurídico acabou sendo colocado em uma posição de protagonista nestes novos tempos, e não poderia ser diferente. Todavia, de nada adianta todas as áreas do Direito correrem para prover soluções aos tempos de crise, se os profissionais envolvidos na prática jurídica não perceberem a necessidade de não mais se apegarem apenas aos seus hard skills técnicos. De nada mais adianta usar uma gravata e um discurso com linguagem rebuscada como um escudo contra o mundo, pois o Direito agora inevitavelmente entrou no dia-a-dia da população.
A prática jurídica em tempos de crise não é fácil, mas a pandemia serve para acelerar o processo dos operadores do Direito, de sua visão de propósito e de impacto que estes querem gerar no mundo, com ou sem crise. O "mais do mesmo" não tem mais vez, o mundo 4.0 está aí, e o tsunami chamado Covid-19 vai afogar todos que não enxergarem isto.
A partir de agora, conhecimentos e habilidades não-jurídicas, como as de gestão e administração, marketing, financeiras e tecnológicas são tão importantes quanto o conhecimento das leis. Os profissionais do Direito carecem das soft skills que não lhes foram dadas em sua formação técnica engessada e tradicional. Já estão em clara posição de vantagem atual os que já enxergavam isto antes da crise e neste sentido já caminhavam.
O trabalho do operador do Direito agora deve mesclar a técnica jurídica (que nunca será indispensável) com conceitos de UX, Agile e Design Thinking, por exemplo. As respostas mais modernas e adequadas aos desafios atuais serão imensamente facilitadas com a adoção destas e de outras soft skills. E se você, operador do Direito, nunca ouviu falar destes conceitos, comece a estudar urgentemente.
A boa notícia é que isto tudo já saiu do abstrato, e a pandemia já é o combustível necessário para diversas mudanças na prática jurídica: escritórios foram forçados a se preparar tecnologicamente para permitir o trabalho remoto de seus advogados, e as reuniões virtuais vieram para ficar, uma vez que representam grande otimização de tempo e recursos. Ainda, diante de impossibilidade de se assinar presencialmente um contrato, as assinaturas eletrônicas finalmente têm sido adotadas em larga escala por empresas.
A disrupção provocada pela crise também é positiva ao passo que os smart legal contracts finalmente passam a ter sua utilidade compreendida. Geridos online, estes possuem algumas regras pré-determinadas, e de acordo com a coleta de informações do mundo exterior (como por exemplo, a decretação de pandemia mundial), automaticamente alguns gatilhos são disparados, com a alteração de algumas das condições estabelecidas, de acordo com a capacidade de cada parte de performar o contrato. Os smart contracts são o futuro, e ouviremos cada vez mais deles.
Por fim, já tivemos sessões plenárias virtuais do STF, e o Judiciário claramente acelerou seu processo de mudança de paradigma, deixando de ser um “local” e caminhando para o ideal de “justice as a service” há anos debatido, tornando-o mais ágil, moderno e online, com audiências por videoconferência, processos digitalizados e remodelação de procedimentos. A crise, aqui, é a oportunidade para que o Judiciário saia de modo irreversível do mundo offline e evite inclusive um possível colapso futuro, com dezenas de milhares de ações que possam surgir de discussões de revisões contratuais, reclamações trabalhistas, ações contra planos de saúde e inúmeras outras questões decorrentes dos tempos de pandemia.
Temos assim, uma grande esperança de que as mudanças trazidas pelos desafios decorrentes da pandemia sejam efetivamente internalizadas nos operadores do Direito, com adoção de soft skills e desenvolvimento de maior sensibilidade às necessidades dos usuários de seus serviços, evitando também a judicialização de temas em um sistema já completamente sobrecarregado e, de modo geral, passando a atuar de um modo, finalmente, sustentável.
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*Cassio Mosse é advogado sócio do MOSSE IP, Fashion & Social Media Law (São Paulo, Brasil). Mestre em Propriedade Intelectual e Direito da Moda pela Queen Mary, University of London. Professor do curso de mestrado em Direito do Entretenimento, Publicidade e Esporte da Universidad Austral (Argentina). Professor convidado do curso de mestrado em gestão internacional da moda da Antwerp Management School (Bélgica). Professor do curso de pós-graduação em Fashion Law da Faculdade Santa Marcelina.