Migalhas de Peso

Exposed – Sexo, cultura e Direito

Mudam-se os costumes, as normas, as leis a partir de novos entendimentos e arranjos do que é tolerável. Daí a relevância de fenômenos como o Exposed – que, claramente, sinalizam o sentido do basta e o valor do não.

15/6/2020

Fenômenos como o Exposed tentam reverter a lógica sociocultural da dominação masculina. Caracterizam-se por perfis em redes sociais, em especial o Twitter, para exposição pública de casos de assédio sexual, disseminação de imagens íntimas, pornografia infantojuvenil, importunação sexual, estupro e violência de gênero1 em geral, e se destinam à formação de rede de sororidade em suporte às vítimas, independentemente da existência de investigação, ação penal ou ação cível de reparação por danos morais ou materiais em curso.

Por gênero, no conceito da Recomendação Geral 28, do Comitê de Monitoramento da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW/Sistema ONU), entenda-se como as identidades, funções e atributos construídos socialmente e também o significado cultural que se atribui às diferenças biológicas entre homens e mulheres, que resultam em relações hierárquicas e na distribuição de faculdades e direitos a favor do homem e em detrimento da mulher.

Alguns desses movimentos sociais necessitam, por vezes, melhor orientação jurídica acerca do risco de menção a nomes de agressores e não apenas relatos de fatos. Pode resultar, por exemplo, em registro de ocorrência ou interposição de queixa-crime por calúnia da parte de homens que, com os nomes expostos, buscam antecipar teses defensivas e, sobretudo, desacreditar a palavra da mulher, reposicionando-a como algoz de perseguição. Isso em especial naquelas situações em que, ao final, não se deseja persecução cível ou penal, apenas o desabafo e a validação do status de vítima - etapa instransponível do processo de cura e libertação.

Todavia, em que pesem eventuais revezes que devem ser sopesados individualmente, o fato é que tais movimentos se caracterizam como paradigmáticos em diversos aspectos. Primeiro, sob a perspectiva da solidariedade que, por si, tem imenso valor, já que crimes com contornos sexuais, para além de sofrimento e vergonha, são capazes de suscitar defesas psíquicas de autoculpabilização, minimização e negação. Daí, a enorme importância da constituição de espaços de expressão da dor em que se possam encontrar identificação e ressonância.

Segundo, colocam em debate, mesmo em tempos de pandemia e de flagrante ascensão de perfis sociopolíticos e estéticas culturais extremamente conservadoras, a temática da autonomia da sexualidade da mulher. E no centro da controvérsia o verdadeiro significado do não.

O não à abordagem insistente que escala para assédio por parte de qualquer figura hierarquicamente superior; o não à disseminação de nudes, sim, muitas vezes compartilhados espontaneamente como fetiche ou preliminar do sexo, mas apenas no âmbito da relação íntima; o não à lascividade criminosa que gera óbice à livre e segura circulação em transportes públicos; o não à apropriação do corpo por ameaça, violência ou qualquer hipótese de ausência de clara aceitação ao toque – incapacidade, vulnerabilidade, doença, álcool, substância entorpecente ou simples desistência voluntária, diga-se, bem antes, logo antes ou mesmo durante o ato sexual.

É preciso falar em consentimento – como elemento essencial constitutivo das relações erótico-afetivas das pessoas. Não o sim que o homem força, mas o sim que a mulher afirma.

Nos quase dez anos em que trabalhei à frente da promotoria de violência doméstica e familiar contra a mulher (Lei Maria da Penha) foram raríssimos os processos em que atuei de estupros praticados por parceiros íntimos. E por quê? São raros? Definitivamente não. Os relatos são inúmeros, os registros oficiais poucos. Isso porque na totalidade das violências sofridas em relacionamentos abusivos, as mulheres não têm clareza – apesar de eu ter ouvido incontáveis manifestações de nojo, repulsa e autodepreciação – de que sua falta de desejo, sua mera negativa deveria bastar ao impedimento do contato, da penetração. No cômputo da vida conjugal, a essas mulheres se impõe débito a ser pago ao preço da profanação.

Nas relações contemporâneas de tecnossexualidade, em que o celular é praticamente extensão das nossas mãos, compreende-se bem sua utilização para todos os aspectos da existência – finanças, educação, trabalho, lazer, comércio, etc. Em contrassenso, espera-se recorte no que tange à vida sexual – particularmente da mulher, eis que os cliques digitais fálicos, de bom ou mau gosto, são amplamente aceitos.

Da presença feminina no sexo, todavia, ainda se aspira contenção, heteronormatividade, subordinação e práticas convencionais. No imaginário popular, a ‘boa moça’, de trajes adequados, gestos contidos, parceiros limitados, experiências restritas é o padrão socialmente construído e estabilizado no inconsciente coletivo. Em total paradoxo, dessa tal boa moça, em especial quando ainda muito jovem – às vezes criança sem discernimento algum – almeja-se a primeira sexualização. E parece surreal, mas a objetificação da ‘novinha’ impera em paralelo à ampla dessexualização da mulher adulta, a partir de determinada faixa etária em que se considera não atender o standard de beleza ou jovialidade estabelecido. O mesmo não acontece com a experiência sexual da maioria esmagadora dos homens que permanecem socialmente aptos a essas vivências mesmo com idade avançada.

Quanto à mulher, em geral aquela que foge ao modelo de sexualidade feminina idealizada, está em risco permanente – sujeita à marginalização, à execração, à violação. E mesmo aquela que se esforça para preencher todos os estereótipos da dita ‘mulher honesta’, está em perigo simplesmente representar alguma espécie tentação. O universo do sexo não é lugar seguro para mulher alguma, sujeitas a agressões que perpassam violências psicológicas e físicas, disseminação de imagens íntimas, atos libidinosos diversos sem anuência, estupro, tráfico para exploração sexual. É a soma da recusa ao não e da punição pelo exercício da liberdade.

Os crimes com contornos sexuais são evidentes atentados à dignidade das vítimas e deveriam causar comoção, sobretudo, porque representam, mesmo no século XXI, completa distorção no exercício da sexualidade masculina. Ao invés de interpelar mulheres por suas roupas, posturas ou vontades, a essa altura da marcha civilizatória da humanidade o conjunto social já deveria estar apto a questionar os porquês dos homens cujos apetites se satisfazem na dor ou apesar dela. Os porquês do gosto no sexo humilhação; do desprezo ao corpo já que deu ou poderia dar prazer consensual; da excitação com o ultraje, a aflição, a dormência ou qualquer estado de indefensibilidade. Gozo que parece resultar bem mais da dominação em si – com todo seu peso histórico-cultural – do que do próprio ato sexual.

Terceiro, movimentos como o Exposed, também sob a óptica das desigualdades nas relações de poder entre homens e mulheres, permitem a reflexão quanto ao descrédito dado à palavra da vítima em quaisquer crimes de interseção com a sexualidade. Apesar de altamente numerosos, imediatamente após a divulgação de um caso, o primeiro ímpeto da sociedade – e, também, de muitos atores da rota crítica institucional de segurança pública, justiça, saúde, educação, assistência social – é duvidar da narrativa da vítima e colocar em xeque sua respeitabilidade.

Não que mulheres sejam incapazes de falsear, cometer delitos, praticar atos de violência. Claro que são capazes, pois, humanas – como os homens – com todas as limitações e imperfeições que a humanidade comporta. Todavia, crimes que impactam sobremaneira as mulheres transbordam os noticiários e o cotidiano. São crimes gendrados, e devem ser investigados e processados como tais, justamente pela absurda desproporção na conformidade homem/mulher nas posições de autor/vítima.

O lugar mais violento para a mulher é sua própria casa, conforme sempre reiteram as estatísticas. Nas ruas, somados à vitimização decorrente da violência urbana, acrescem-se descomunalmente o assédio, a importunação e o estupro apenas por existir como mulher. E nem comporta no objeto reduzido deste texto a ampla questão do feminicídio.  Ainda assim, a maioria esmagadora das vozes – de homens e mulheres – volta-se em favor dos acusados, escusando-lhes, providenciando-lhes argumentos e, mais grave, buscando justificativas para a violência no comportamento das vítimas. E por quê?

O sociólogo sueco Göran Therborn afirma que sexo e poder são moedas conversíveis entre si. Sexo pode levar ao poder e vice-versa. Um é forma de obtenção do outro. No intercâmbio entre essas duas forças há mecanismos complexos de controle, porém, pode-se dizer que há três eixos principais que fundamentam as estruturas de dominação versus subordinação na engrenagem social: classe, raça/etnia e gênero.

A sexualidade, no dizer do historiador galês Jeffrey Weeks, é construção social, no sentido de que nossas relações, emoções e desejos são moldados pela sociedade em que vivemos. Nessa linha de pensamento, o sistema de jurídico de formação das famílias e as regras de sucessão; as forças econômicas, o mercado de trabalho, a urbanização, a industrialização e a migração; o nível de interferência e regulação estatal; a significância das religiões e o consenso moral local – tudo isso tem direta correlação com a forma como exercermos a sexualidade.

Então, para além do instinto primitivo da biologia ou da pulsão sexual da psicanálise, a sociopolítica atua no controle dos corpos. Assim, formas aceitáveis ou reprováveis de cortejo, sedução e prazer; gestão da natalidade, da interrupção da gravidez, da legitimidade da prole e das infecções sexualmente transmissíveis (IST); divisão das obrigações parentais, das tarefas domésticas e dos ganhos do trabalho remunerado; diferentes graus de tolerância à violência ou sua justificação – são interseções do sexo que variam conforme a cultura prevalente em determinada comunidade, o seu patamar civilizatório e as suas marcas históricas de guerras e revoluções civis, ditaduras, colonização, patriarcado, escravidão.

No que tange a gênero, não se pode esquecer que o Brasil tem raízes profundas no patriarcado, assim entendido como ‘a lei paterna’, referente aos poderes familiares do pai, dos maridos, dos irmãos e dos tios. Incluem-se no conceito a deferência e a obediência filiais em geral, e a submissão das filhas, inclusive às regras de casamento e sucessão que lhe eram impostas. O patriarcado também contempla a hierarquia do poder marital (transferido do sogro) e a sujeição da mulher ao domínio do marido (heteronomia). E em suas manifestações ainda estão inseridas as delegações desse poder paterno autoritário exercidas por mães e sogras. Por falocracia, prima-irmã do patriarcado, entende-se o poder masculino sem significado parental ou de afinidade.

Sociedade e política, e não apenas combinações cromossômicas, desencadeiam afetações na atividade sexual. Repercutem diretamente na extensão da liberdade ou da interdição; na ampliação da autonomia ou da sujeição. E valores como liberdade e autonomia variam grandemente conforme quem seja detentor do poder. A autossoberania, inclusive para sexo, decorre da posição da pessoa nas estruturas de classe, raça/etnia e gênero. E enquanto se sustentarem as desigualdades haverá desequilíbrio nas licenças sociais concedidas à vida erótica de homens e mulheres.

Assim é que quaisquer análises acerca de crimes com contornos sexuais precisam contemplar os fatores sociopolíticos que desencadeiam essas desigualdades, inclusive para se entender o porquê de não apenas homens, mas também mulheres perpetuarem tanto preconceito e machismo. Somos todos seres sociais e nossa forma de perceber o mundo se dá por meio dos filtros da cultura. Porém, a cultura é viva. Moldável. Mudam-se os costumes, as normas, as leis a partir de novos entendimentos e arranjos do que é tolerável. Daí a relevância de fenômenos como o Exposed – que, claramente, sinalizam o sentido do basta e o valor do não.  

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*Ana Lara Camargo de Castro é promotora de Justiça do Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul desde 1997. Assessora Especial do Procurador-Geral de Justiça. Membro Auxiliar do Conselho Nacional do Ministério Público. Master of Laws, com honras, em Criminal Law, pela State University of New York – SUNY/Buffalo. Especialista em Inteligência de Estado e Segurança Pública, com Direitos Humanos, pela Fundação Escola do Ministério Público de Minas Gerais.  

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