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Spin-off ou nova temporada? Comentários sobre as antenas de celular e a decisão do STF na ADI 3110

A história das antenas de celular e da sua regulação jurídica, no Brasil, está muito mais para uma série em várias temporadas do que para um longo filme.

12/6/2020

Um dos setores que mais se beneficiou do isolamento social imposto pela pandemia de covid-19 foi o do entretenimento em domicílio, especialmente nos provedores de conteúdo em streaming. Para os consumidores confinados, foi o momento de consumir as séries audiovisuais de acordo com a individualidade que caracteriza essa forma de entretenimento: alguns preferem "maratonar" novas séries, outros veem um episódio por vez e há os que prefiram rever séries antigas, cada um no seu próprio ritmo.

A história das antenas de celular e da sua regulação jurídica, no Brasil, está muito mais para uma série em várias temporadas do que para um longo filme. Uma série com idas e voltas no roteiro, e alguns spin-offs que se entrelaçam na série original, personagens que aparecem e desaparecem sem explicação.

Antes de falar do episódio do acórdão do STF, porém, é necessário apresentar um trailer para os que não assistiram a todos os episódios anteriores.

Sem spoilers. Tudo já foi exibido, embora com pouco sucesso de público nas primeiras temporadas.

Apesar de estar presente no Brasil desde 1990, a telefonia celular (a rigor, serviço móvel pessoal – SMP) só se tornou acessível a um universo um pouco maior de usuários em meados de 1993-1995, ainda pelas antigas estatais monopolistas de telefonia fixa, então integrantes do "Sistema Telebrás"1. Posteriormente, tais estatais se cindiram para que passasse a haver, em cada Estado, uma empresa apenas para a telefonia fixa e outra para a móvel. O grande salto, porém, viria a partir de 1997, com a desestatização de todo o sistema, seguida da abertura do mercado a novas empresas e a introdução do modelo de tarifação pré-paga, que fez crescer exponencialmente o número de usuários.

Como consequência natural da expansão exponencial do número de usuários, a rede teve que ser também ampliada na mesma proporção.

Pausa para um episódio explicativo.

Apesar da sensação comum de que o celular está conectado "à nuvem" – e é bom que o usuário tenha esta experiência – a rede é, na verdade, mais física e em terra do que virtual e por ondas. A cada instante de funcionamento, um celular está ligado a uma antena próxima, geralmente a menos de 100 ou 200 metros do usuário. Em estradas e áreas rurais, a antena pode estar a alguns quilômetros. Mas as antenas estão interligadas por cabos de fibra ótica e outros equipamentos que formam uma complexa estrutura física. Então, quando estiver flanando por aí e usando o celular, saiba que a sua voz e seus dados estão transitando, na maior parte do trajeto, por cabos, e só próximo a você que se tornam ondas eletromagnéticas.

Ondas eletromagnéticas? Radiação? Faz mal à saúde? Causa câncer?

Resposta curta: não. A radiação emitida pelas antenas de celular é do tipo não-ionizante, ou seja, não produz íons, assim como a emitida pelas antenas de TV, forno de micro-ondas e outros aparelhos usados há décadas. A radiação ionizante, ou seja, a que produz íons, é a que pode causar danos às células e tecidos humanos, inclusive câncer. Está presente nos raios X, nas usinas nucleares e, não sem uma certa ironia, nos tratamentos oncológicos.

Porém, embora o conhecimento científico consolidado aponte a inofensividade, em regra, da radiação não-ionizante, o princípio da precaução recomenda que sua emissão seja regulada, limitada e fiscalizada. Assim é em todo o Mundo, e há uma entidade específica, a ICNIRP (International Commission on Non-Ionizing Radiation Protection), que estabelece, com base em estudos científicos, os limites seguros para a exposição humana a estes campos de radiação.

Aqui começa a segunda temporada, jurídica.    

Até 2002, a emissão de radiação não-ionizante não teve regulação ou fiscalização ampla no Direito Brasileiro. Somente em 2002 foi editada, pela ANATEL, a Resolução 303, que estabeleceu os limites e formas de fiscalização, especificamente quanto às antenas de celular.

Alerta de spoiler! De 2002 a 2009, a Resolução 303 foi a única norma federal sobre o tema.

Isso não impediu que Estados e Municípios editassem leis que, concorrendo diretamente com a agência reguladora, procuravam estabelecer limites para a emissão de radiação pelas antenas de celular. O Ministério Público, com ou sem leis locais, ajuizou infindáveis ações, em todo o País, requerendo a mudança de localização, exigindo licenças locais ou, simplesmente, a remoção pura e simples de todas as antenas de algumas localidades.

Se os entes locais simplesmente estabelecessem seus próprios limites para a radiação emitida, estaria clara a divergência com a regulação federal, o que, em tese, teria solução fácil, com a invalidade da norma local. Mas mesmo essa versão teoricamente mais "simples" do conflito federativo local-federal, neste Brasil de 26 Estados, um Distrito Federal e mais de 5 mil Municípios, jamais foi simples. Estes entes locais, o Ministério Público e o Judiciário, em maior ou menor medida, simplesmente ignoravam a Resolução 303, seja por menosprezarem o poder normativo das agências reguladoras (lembre-se, esta temporada é da Década de 2000), seja por simplesmente desconhecerem sua existência.

No final dessa temporada, a Lei Federal 11.934/09 tentou acabar com a desconfiança e o desconhecimento quanto às normas regulatórias, apenas positivando em lei formal os limites já estabelecidos pela Resolução2. Repetindo o óbvio – mas que por aqui precisa ser dito – estabeleceu que a competência para fiscalizar a radiação das antenas seria do órgão federal, ou seja, a Anatel3.

Porém, já então dando os sinais do que seria a terceira temporada da série, outra estratégia de conflito era utilizada pelos entes locais, e não seria impactada pela Lei 11.934. Em vez de estabelecerem diretamente um limite para a emissão de radiação (o que não teria efetividade, pois a maioria dos entes locais não têm os equipamentos, pessoal e conhecimento técnico para realizar diretamente as medições), os Estados e Municípios estabeleciam limitações indiretas e, quase sempre, tecnicamente atabalhoadas, como:

- limitação da distância entre a infraestrutura de suporte (torre ou outra base) e a divisa do terreno (limitação horizontal);

- limitação da distância entre a própria antena, e a divisa do terreno (limitação diagonal);  

- distância mínima entre a antena e certos estabelecimentos, como hospitais, creches, escolas, e shopping centers;

- a pura e simples proibição das antenas em "área residencial".

As distâncias estabelecidas em cada lei variavam ao sabor das preferências de cada Assembleia Legislativa ou Câmara Municipal. No caso da Lei paulista objeto do julgamento na ADI 3110, eram de 30 metros (diagonal) e 15 metros (horizontal)4, mas alguns entes locais estabeleceram limites ainda mais absurdos, de até 500 metros, especialmente nos casos de distâncias a praças, hospitais e escolas.

Estas limitações indiretas atendiam a parte do anseio popular, diante de lendas, crendices e suposições (agravadas porque esta temporada coincide com a expansão da internet no Brasil) de que o fato de estar próximo a uma antena de celular poderia causar doenças como o câncer e até teratogenia. A resposta do Legislativo local era rápida, barata (pois não demandava uma fiscalização direta da radiação emitida) e errada: quando há menos antenas, é necessário aumentar sua potência – e a emissão de radiação – e quando há mais antenas, estas podem ser menos potentes. Limitar a localização e a quantidade de antenas, por si só, não protege em nada a população.

O mais incrível é que, ao mesmo tempo em que queriam distância das antenas, as pessoas queriam celulares funcionando cada vez melhor. É paradigmático o caso de uma cidade no Mato Grosso, em que o Ministério Público ajuizou uma ação civil pública para remover as antenas da Cidade (“até que a Ciência atestasse sua inofensividade”) e, quase simultaneamente, outra ação civil pública, contra a mesma operadora, exigindo a melhoria da qualidade dos serviços. O mundo perfeito da ficção: celulares funcionando bem, mas sem as antenas.

Estas leis locais criaram um terrível problema de interpretação jurídica, uma "armadilha lógica". Os Municípios, em especial, passaram a alegar que estavam legislando sobre normas urbanísticas e de licenciamento de construções, ao regular a localização das estruturas de suporte.  À primeira vista, a tese poderia parecer correta, especialmente quando a lei local “disfarçava” seu intento de controle da radiação, nada mencionando a esse respeito. Nem sempre era fácil, para o Judiciário, identificar a invasão da competência legislativa da União, ainda mais quando o próprio magistrado, muitas vezes, partilhava intimamente dos infundados receios quanto aos perigos da radiação.

Tratei desta questão – e outras tantas das três primeiras temporadas – em texto mais acadêmico, focado nas questões federativas5.

A terceira temporada, então, consagrando um padrão das séries de sucesso, termina como a segunda: no último episódio, uma nova Lei Federal que, esperava-se, traria a tão almejada segurança jurídica para a expansão das telecomunicações, melhorando o ambiente de negócios e reduzindo o risco-Brasil.

A Lei Federal 13.116/15 – conhecida como "Lei Geral das Antenas" – procurou sistematizar amplamente o tema6. Além de confirmar o estabelecimento de limites e a competência fiscalizatória federais7, fixou importante distinção, que – de novo, teoricamente – deveria pôr fim às "armadilhas lógicas" das leis locais da terceira temporada. 

A distinção fática é verdadeiramente visual, basta ir à janela agora e observar: a "estação transmissora" é a antena propriamente dita, que emite radiação. A "infraestrutura de suporte" é onde essa antena se apoia8. Na primeira temporada, eram basicamente torres, o que levou à disseminação da inadequada expressão "torres de celular", mas podiam também ser mastros ou edificações. Hoje, as torres são cada vez mais raras, sendo comuns as antenas de pequeno porte no terraço de prédios ("roof tops").

A expressão ERB ("estação rádio-base"), largamente utilizada por engenheiros e pessoal técnico das operadoras, gera o mesmo problema: ora se refere só à antena, ora só à estrutura, ora ao conjunto. Que continue sendo usada pelos técnicos, mas para os advogados é preciso ser mais claro, atentando para a distinção do art. 3º da Lei 13.116/15.

Alerta de spoiler: no 5G, a exemplo do que já ocorre no exterior, as antenas serão quase invisíveis, uma vez que inseridas no mobiliário urbano (pontos de ônibus, marquises etc.) ou em edificações privadas, não necessariamente nos terraços. As infraestruturas de suporte vão desaparecer, e com elas qualquer resquício de competência local (Estados e Municípios) no tema.

A Lei 13.116/15 estabeleceu, então, um capítulo tratando do licenciamento de cada uma destas partes. Quanto à antena – e, portanto, emissão de radiação – o licenciamento é exclusivamente federal. Quanto à infraestrutura de suporte – quando de grande porte – o licenciamento pode demandar atuação do Município (mas jamais do Estado), em temas urbanísticos. Obviamente, essa atuação municipal não pode "disfarçar" a intenção de controle de radiação, pois subverteria todo o intento da Lei e o modelo constitucional de divisão de competências. Para as estruturas de pequeno porte, sequer é necessária a licença9.

Mas o show não podia parar.

A Lei 13.116/15, se aplicada diretamente e sem subterfúgios, não apenas remove entraves ao desenvolvimento econômico e tecnológico: ela remove também uma fonte de receita que alguns Municípios vinham explorando com maior ou menor sucesso, ao exigir o licenciamento, e às vezes aplicar multas milionárias, às "torres de celular" ou "ERB's", já que sempre torceram o nariz para a distinção clara estabelecida pela Lei, preferindo confundir as antenas e o suporte, como se fossem uma coisa só. Não são, nem tecnicamente, nem juridicamente.

Os entes locais, lutando para manter uma fonte de recursos – ou por simples inércia – insistiram em licenciar, fiscalizar e, sobretudo, multar as estações transmissoras.  Começa aí a quarta temporada.

Para que a série não ficasse desinteressante, os roteiristas acrescentaram um novo e emocionante elemento: a fuga para o Direito Ambiental.  Como já estava desgastada a tese da licença urbanística, os Municípios começaram a alegar a competência concorrente para o Direito Ambiental (e trazendo de volta os Estados, personagens que ficaram meio apagados na temporada anterior), para exigirem licença ambiental das antenas. Surpreendentemente, a tese encontrou sucesso no Judiciário de vários Estados.

Um pequeno flashback: antenas emitem radiação não-ionizante. Não produzem fumaça, ruídos ou rejeitos. Não poluem as águas, o solo, o ar e não suprimem vegetação. Qual seria o fundamento fático e lógico para serem fiscalizadas sob o aspecto ambiental? A emissão de radiação, somente. A mesmíssima radiação que já é fiscalizada pela Anatel, nos termos da Lei 11.934/09. O que os Estados e Municípios teriam a licenciar (e fiscalizar e multar)? Nada. Não fosse isso claro o suficiente, a Lei 13.116/15 ainda esclareceu que a estes entes caberá, se constatada alguma irregularidade sob este aspecto, oficiar à Anatel, na saudável ideia de colaboração entre os entes federativos, para que um auxilie o outro, sem invadir sua competência10.

Apesar da fraqueza do roteiro, esta quarta temporada teve inesperado sucesso: Municípios partem da ideia – correta – de que são competentes concorrentemente para fiscalização ambiental, e da afirmação de que as antenas seriam "potencialmente poluidoras" e está pronta a trama: exigem licença e, sem que haja o menor resquício de poluição, efetiva ou potencial, aplicam multas milionárias pela "falta de licença ambiental". E o Judiciário mantém a multa, em muitos casos, com argumentos genéricos e simpáticos sobre o princípio da precaução e a primazia da proteção ao meio ambiente.

Esta temporada, na verdade, se parece mais com um spin-off:  tendo a trama se esgotado na terceira temporada, resgataram alguns personagens, acrescentaram outros, fizeram um upgrade no cenário (o arrebatador discurso ambiental) e, com novos protagonistas, mantiveram acesa uma controvérsia que jamais deveria prosseguir, e continuaram espantando investimentos em infraestrutura e tecnologia.

Em nova crítica à série, digo, em novo artigo acadêmico sobre o tema, abordei esse spin-off ambiental11, procurando demonstrar que a Lei 13.116/15 viera para resolver problemas antigos, não para criar novos, e que a continuidade das dúvidas sobre o assunto era totalmente injustificada.

Mas, afinal, onde nessa programação entra a decisão proferida pelo STF na ADI 3110?

Primeiro, algumas observações pontuais que um aficionado da série deve fazer.

O acórdão faz referência à Resolução 303 da Anatel, que, no entanto, foi revogada em 2018, substituída pela Resolução nº 700.  Nada relevante, dado que a Lei 11.934/09 apenas remete à regulamentação própria.

Há várias referências no acórdão à Lei 11.934/09, mas, surpreendentemente, nenhuma referência à Lei 13.116/15.

Certo, se poderia dizer que a ação foi ajuizada em 2004, contra Lei estadual de 2001 e seria uma impropriedade decidi-la à luz de Lei Federal de 2015. Mas não o seria a referência à Lei de 2009?  Se o STF não tivesse demorado 16 anos para concluir o julgamento, mas 4 anos, decidindo em 2008, a conclusão seria a mesma? Como num episódio de Black Mirror (ou, para um público mais específico, de Love, Death and Robots), o fator tempo parece se perder entre a realidade e a ficção, com a Lei Estadual de 2001 sendo contrastada com a Lei Federal de 2009, mas não com a de 2015.

O acórdão enfrenta este ponto, e funda sua solução no § 4º do art. 24 da Constituição Federal:

Tendo em vista que a Lei 11.934/2009, publicada posteriormente à propositura desta ação, "dispõe sobre limites à exposição humana a campos elétricos, magnéticos e eletromagnéticos", seria preciso concluir que a União, no âmbito da mesma competência concorrente, legislou de forma geral. Como a lei federal fixa limites diversos daqueles impostos pela lei impugnada, nos termos do art. 24, § 4º, da CRFB, "a superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário". (página 20 do acórdão).

Sob o aspecto da sucessão de leis no tempo, portanto, o acórdão busca argumento que, embora correto, é desnecessário. Não creio, com todo respeito, que esta seja a solução mais adequada. É, na verdade, mais simples do que isso. A lei local sobre telecomunicações viola diretamente o art. 22, IV da Constituição Federal12, que estabelece a competência privativa da União no tema. As Leis Federais 9.472/97 (Lei Geral de Telecomunicações – LGT), 11.934/09 e 13.116/15 foram editadas no exercício desta competência privativa, esgotando tema que é essencialmente federal. As competências concorrentes para legislar sobre saúde e meio ambiente, simplesmente, devem ceder diante dessa hipótese de competência privativa, ainda mais quando se tem em conta que o escopo principal de todas estas normas é relativo às telecomunicações.

O acórdão, todavia, parece seguir exatamente esta linha, primeiramente, ao afirmar, já no penúltimo parágrafo:

Em síntese, a União, no exercício de suas competências (art. 21, XI e art. 22, IV da CRFB) editou a Lei 9.472/1997, que, de forma clara, atribui à Anatel a definição de limites para a tolerância da radiação emitida por antenas transmissoras. Além disso, por meio da Lei 11.934, a União fixou limites proporcionalmente adequados, segundo precedente deste Tribunal, à exposição humana a campos elétricos, magnéticos e eletromagnéticos. Tratando-se de tema de competência privativa da União, a disciplina da matéria indica que os efeitos da aplicação da lei federal devem ser suportados pelos entes menores. (não destacado no original)

O que seria uma aparente contradição – fazer todo um desenvolvimento sobre competência concorrente, para depois afirmar que a hipótese seria de competência privativa – é, na verdade, a grande virtude do acórdão, ao conciliar a incidência das duas espécies de competência sobre a mesma base fática que envolve, de um lado, telecomunicações e, de outro, saúde e – vá lá – meio ambiente. Eis a brilhante conclusão:

Fica patente, pois, a inconstitucionalidade da Lei nº 10.995/2001, do Estado de São Paulo, ante a existência de violação do princípio da subsidiariedade, tendo em vista que a norma impugnada, conquanto fundamentada no exercício de competência concorrente, dispôs sobre temas já regulados de forma clara pela União em norma federal editada no âmbito de sua competência privativa. (não destacado no original)

Seria um final formidável, à altura da série, encerrando definitivamente uma controvérsia que trouxe tanto desgaste, atrasos e prejuízos às operadoras de telefonia e, mediatamente, ao próprio desenvolvimento econômico e tecnológico do País.

No entanto, o fator tempo é implacável, no entretenimento ou no Direito.

Um crítico que comente um filme de 15 anos atrás pode produzir um texto excelente, mas que terá pouca relevância.        

No caso deste acórdão, o episódio cairia bem no final da primeira ou segunda temporadas. Responde, embora corretamente, a questões antigas e que, de certa forma, já não representam as principais controvérsias. 

O acórdão, em resumo, não responde a todas as questões. Poderia muito bem fazê-lo, numa época em que o STF não é nada acanhado em dar respostas a todas as perguntas, estejam ou não nos autos, sejam ou não parte do pedido e da causa de pedir. Em uma ação direta de inconstitucionalidade – controle abstrato – essa desinibição não seria nem mesmo questionada, dado que tem justificativa teórica consistente.

Quais seriam as questões não respondidas pelo acórdão, e que evitariam novas temporadas da série?

Em primeiro lugar, o STF poderia ter sido mais claro quanto à impossibilidade de normas de controle da radiação serem "disfarçadas" de normas urbanísticas, nas diversas formas em que aparecem, seja estabelecendo restrições irrazoáveis de zoneamento, seja através de normas edilícias que, de uma forma ou de outra, limitam a localização das antenas.

É questão que, ainda hoje, motiva inúmeros processos nos Juízos e Tribunais dos Estados. O próprio STF tem um ou outro acórdão – oriundo de julgamento virtual ou em lista nas Turmas – que são, no mínimo, ambíguos, ao declarar que os Municípios teriam competência concorrente para estabelecer a localização de antenas, sem que interfiram no controle da radiação. Era de se esperar, pelo menos, que a decisão plenária em ação direta fosse mais clara em corrigir o possível caminho equivocado que essas decisões das Turmas, ainda que de forma não muito clara, poderiam vir a esboçar, evitando sua tresleitura nas instâncias inferiores e a perpetuação da controvérsia.

Em segundo lugar, em pleno sucesso da quarta temporada – a fuga para o Direito Ambiental – o STF perdeu uma grande oportunidade de evitar que, em alguns meses ou anos, esteja novamente julgando um caso de antenas de celular, já sob o fundamento de que o Estado ou Município estaria exercendo uma competência concorrente na matéria. Ainda que o locus constitucional seja o mesmo – o art. 24 – a matéria ambiental sempre é mais aberta a cruzados que querem, em toda e qualquer hipótese, defender o que supõem ser o melhor para a preservação do meio ambiente, sem nem mesmo observar o que está sendo efetivamente julgado. 

A inserção, no acórdão da ADI 3110, de um teaser da próxima temporada ambiental, ainda que como obiter dictum, daria ainda mais segurança jurídica e clareza ao tema, evitando que se prolonguem estes obstáculos à expansão da rede de telefonia e dados móveis no Brasil. Bastaria dizer que, embora a preservação do meio ambiente (também matéria do art. 24 da Constituição Federal) seja de competência concorrente dos entes federativos, a irretocável lógica da decisão – de que o exercício desta competência não pode interferir em matérias de competência privativa – se aplica também nesta hipótese.

Não há spoiler aqui. Não sei como o Judiciário, nos Estados, vai receber a decisão da ADI 3110. Espero que o faça com razoabilidade, compreendendo que a fiscalização da emissão de radiação deve obedecer a critérios uniformes em todo o País, sobretudo em um momento em que a sociedade já clama por novos avanços tecnológicos, como o 5G. O nome disso é segurança jurídica. Sem ela, não há investimento. Mas não me surpreenderei se surgirem argumentos menores, como a restrição da decisão à lei paulista, ou mesmo a insistência no suposto viés ambiental do tema. Ou, quiçá, simplesmente uma incompreensão da decisão, do mesmo modo que a Lei 13.116/15, tendo completado já 5 anos de vigência, continua incompreendida e mesmo desconhecida.

Em suma, depois de maratonar o tema, pode-se dizer que o STF deu um passo correto e importante em direção à segurança jurídica do setor de telecomunicações no Brasil. Mas, conhecendo nossas jabuticabas, bem que a Corte poderia ter ido um pouco mais longe, evitando que, daqui a alguns meses ou anos, tenha que voltar ao tema, esclarecendo o que ficou implícito em alguns episódios, para que não sejam necessários novos spin-offs. 

__________

1 Em termos bastante simplificados, a União era a controladora da Telebrás, que por sua vez tinha subsidiárias federais em cada Estado (TELESP, TELERJ, etc.).  Integravam ainda o mercado as estatais dos Estados, como a CRT (Companhia Riograndense de Telecomunicações) e até uma municipal, a SERCOMTEL, de Londrina-PR.

2 Art. 1o  Esta Lei estabelece limites à exposição humana a campos elétricos, magnéticos e eletromagnéticos, associados ao funcionamento de estações transmissoras de radiocomunicação, de terminais de usuário e de sistemas de energia elétrica nas faixas de frequências até 300 GHz (trezentos gigahertz), visando a garantir a proteção da saúde e do meio ambiente.  

3 Art. 11.  A fiscalização do atendimento aos limites estabelecidos por esta Lei para exposição humana aos campos elétricos, magnéticos e eletromagnéticos gerados por estações transmissoras de radiocomunicação, terminais de usuário e sistemas de energia elétrica será efetuada pelo respectivo órgão regulador federal.

4 Arts. 4º e 5º da Lei Estadual 10.995/2001, de São Paulo.

5 FERRARI, Sérgio; FAJNGOLD, Leonardo.  Leis locais e Antes de Telefonia Celular (ERB's): um caso de conflito federativo. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, Belo Horizonte, ano 13, n. 48, jan./mar. 2015.

6 Art. 1º Esta Lei estabelece normas gerais aplicáveis ao processo de licenciamento, instalação e compartilhamento de infraestrutura de telecomunicações, com o propósito de torná-lo compatível com o desenvolvimento socioeconômico do País.

7 Art. 18. As estações transmissoras de radiocomunicação, incluindo terminais de usuário, deverão atender aos limites de exposição humana aos campos elétricos, magnéticos e eletromagnéticos estabelecidos em lei e na regulamentação específica.

§ 1º A fiscalização do atendimento aos limites legais mencionados no caput é de competência do órgão regulador federal de telecomunicações.

8 Art. 3º Para os fins desta Lei, adotam-se as seguintes definições:

V - estação transmissora de radiocomunicação: conjunto de equipamentos ou aparelhos, dispositivos e demais meios necessários à realização de comunicação, incluindo seus acessórios e periféricos, que emitem radiofrequências, possibilitando a prestação dos serviços de telecomunicações;

VI - infraestrutura de suporte: meios físicos fixos utilizados para dar suporte a redes de telecomunicações, entre os quais postes, torres, mastros, armários, estruturas de superfície e estruturas suspensas;

9 Art. 10. A instalação, em área urbana, de infraestrutura de redes de telecomunicações de pequeno porte, conforme definido em regulamentação específica, prescindirá da emissão das licenças previstas no art. 7º.

10 Art. 18. (...).

§ 2º Os órgãos estaduais, distritais ou municipais deverão oficiar ao órgão regulador federal de telecomunicações no caso de eventuais indícios de irregularidades quanto aos limites legais de exposição humana a campos elétricos, magnéticos e eletromagnéticos.

11 FERRARI, Sério; ARAUJO, Yuri Maciel. O licenciamento Ambiental e as Antenas de Celular (ERB). Revista Internacional de Direito Ambiental, ano VI, n. 18 (set./dez. 2017). Plenum: Caxias do Sul, 2017.

"Assim, em suma:

- para quem entenda que a radiação não ionizante não é uma forma de poluição, por não interferir no meio ambiente, é inexigível o licenciamento ambiental das ERBs, que, por isso, coerentemente, não foi previsto na Resolução 237 do CONAMA;

- para quem entenda que a radiação não ionizante é uma forma de poluição, ou de alguma maneira impacta o meio ambiente, seu licenciamento ambiental está previsto em norma específica, qual seja, a Lei Federal 11.934/09 - a despeito de não utilizar tal denominação -, sendo de competência exclusiva da ANATEL.” (p. 308-309)

12 Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

IV - águas, energia, informática, telecomunicações e radiodifusão;

__________

*Sérgio Ferrari é sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados. Doutor em Direito Público e Professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ.  Advoga desde 2005 em temas ligados às telecomunicações, em especial quanto à infraestrutura de redes. Acredita na Ciência, e por isso sabe que a Terra não é plana, antenas de celular não causam câncer e segue fielmente as recomendações de isolamento social, que lhe permitiram a atualização em séries em que estava atrasado.

 

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