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Das audiências públicas virtuais e expedientes remotos nos processos de licenciamento ambiental diante da pandemia da covid-19

Os meios alternativos para continuidade da prestação do serviço público ambiental e o princípio constitucional da eficiência administrativa

12/6/2020

Dentre os efeitos da pandemia da covid-19, temos a alteração nas rotinas de trabalho e a incerteza temporal deste que, para muitos, configuraria o “novo normal”. Tais aspectos não afetam apenas as atividades privadas, com seus nefastos impactos na economia nacional e mundial, mas também o serviço público, neste incluído o exercício regular do poder de polícia e gestão ambiental, onde dentre os múltiplos procedimentos administrativos afetados, destacam-se os processos de licenciamentos ambientais de empreendimentos e atividades que demandam expedientes que terminam, em sua via ordinária e habitual, por expor os agentes públicos, técnicos, prepostos dos titulares dos empreendimentos e até mesmo a população de modo geral.

Com o atual cenário, a vida, de modo geral, precisou ser reestruturada e readaptada à realidade. As garantias constitucionais da livre iniciativa econômica, do direito ao meio ambiente equilibrado, a continuidade do serviço público e a eficiência da prestação do serviço público, sem prejuízo de outras garantias, precisaram e precisam ser modulados para se adequarem.

O licenciamento ambiental é atividade diretamente atrelada ao exercício da livre iniciativa econômica, constituindo objetivo da Política Nacional do Meio ambiente o desenvolvimento econômico sustentável, não existindo dúvidas de que as atividades e empreendimentos, tanto para garantia da produção de bens de consumo, possuem protagonismo fundamental na sustentação da economia – segunda vertente fundamental dos efeitos da pandemia – e eventual procrastinação ou letargia na adoção de regimes jurídicos e administrativos alternativos para o cenário atual, apenas agravarão, a um só tempo, o (I) “nó górdio” que se tornou o licenciamento ambiental no Brasil, notadamente com sua morosidade excessiva e burocracia inegável, que tanto atrapalha a própria Administração Pública Ambiental; e (II) a crise econômica advinda da pandemia.

Assim, inobstante a crise atual enfrentada, os empreendimentos e atividades afetos ao licenciamento, não podem ser lançados à contingência do fim da pandemia, para retornarem suas atividades, ante a potencialidade de agravar ainda mais os nefastos prejuízos econômicos já experimentados e ainda pela incerteza do desenvolvimento desta. De igual forma, o exercício do poder de polícia e gestão ambiental geral, em outros expedientes, inclusive de fiscalização, igualmente não podem ser paralisados, vez que se constituem incontroversamente como essenciais.

A realização das audiências públicas, quando exigida no processo de licenciamento, objetiva inteirar a população acerca da implantação de determinado empreendimento, de modo a permitir aos cidadãos e entidades interessadas, através da participação democrática, influindo na tomada de decisão do órgão quanto às condicionantes que compõem a licença ambiental eventualmente concedida.

Sua exigibilidade e fundamento normativo é variável, vinculados ao rito do processo de licenciamento previsto nas normas regulamentadoras de acordo com o órgão e ente federado competente, tendo por fundamento jurídico principiológico o princípio da publicidade, conjugado com o princípio da participação popular.

Ocorre que, ordinariamente, é inerente às audiências públicas a aglomeração de pessoas, o que apresenta desafios, conforme a declaração de emergência de saúde pública internacional feita pela Organização Mundial da Saúde em 30.01.20, ratificada internamente pelo Brasil através da portaria do Ministério da Saúde 188, de 03.02.20, declarando também emergência em saúde pública de importância nacional.

Considerando que o que se objetiva com a realização da audiência pública é a participação popular no processo de licenciamento ambiental de um empreendimento, de forma a contribuir para manutenção da qualidade ambiental, não se pode afastar tal procedimento, inclusive com importantes ganhos qualitativos, da ferramenta principal utilizada neste momento: a tecnologia. Isto porque, a sociedade evoluiu para a era digital, onde múltiplos expedientes, (inclusive de atendimento médico, com a telemedicina autorizada neste período para o seu uso no mais amplo espectro), passaram a ser realizados remota e digitalmente.

Certamente vozes se erguem para cogitar eventuais prejuízos de acesso, especialmente de comunidades menos favorecidas com o universo digital, porém não prevalecem tais argumentos diante da possibilidade de ampliação da participação popular pela realização de audiências virtuais, que podem se ampliar com prazos para envio de manifestações fora do prazo de realização das audiências, o que melhora a qualidade da participação, assimilação e inteligência das informações apresentadas, sem a perda da publicidade (que pode ser promovida de forma ainda mais clara do que uma simples ata de audiência pública presencial).

Também é possível a realização de mapeamento de comunidades desassistidas de acesso digital, franqueando a viabilidade de expedientes, ou mesmo se analisando a efetiva existência de tal cenário, que não pode ser simples e uniformemente cogitado como argumento de afastamento de meios alternativos para realização das audiências públicas virtuais.

Com isso, prestigia-se o princípio da continuidade dos serviços públicos administrativos dotados de natureza relevante e essencial à toda coletividade, ipso facto, não podem ser interrompidos. A prestação do serviço administrativo ambiental, notadamente, reveste-se de caráter essencial, vez que pressuposto para o exercício de outros direitos constitucionais assegurados, com relevo para o da livre iniciativa econômica.

Os meios alternativos aplicáveis ao processo de licenciamento objetivando a sua continuidade, constituem forma de efetivar o princípio da eficiência da prestação do serviço público, sem prejuízo da preservação da incolumidade da saúde humana. Eficiente é a atuação que escolhe os meios a serem empregados para a obtenção do fim de modo minimamente intenso, sem burocracia.

Segundo os ensinamentos do ministro Alexandre de Moraes1, acerca do princípio da eficiência administrativa é aquele que, in verbis: “Impõe à Administração Pública direta ou indireta e a seus agentes a persecução do bem comum, por meio do exercício de suas competências de forma imparcial, neutra, transparente, participativa, eficaz, sem burocracia e sempre em busca da qualidade, primando pela adoção dos critérios legais e morais necessários para a melhor utilização possível dos recursos públicos, de maneira a evitar-se desperdícios e garantir-se uma maior rentabilidade social”.

A preclara lição aplica-se perfeitamente no atual momento de pandemia, no qual é necessário buscar meios alternativos legais para otimizar a prestação do serviço administrativo, sem perder de vista a preservação da dignidade da pessoa humana.

A realização da audiência pública remota no processo de licenciamento ambiental, em nada prejudica o regular procedimento e a ampla publicidade do ato administrativo. Segundo dados da Teleco2, Portal de Inteligência em Comunicações, existe cerca de 227 milhões de telefones celulares em uso no Brasil, ensejando em uma densidade de 107,39 celulares a cada cem habitantes. 

Evidentemente, pode-se inferir que a população brasileira, de modo geral, possui acesso aos aparelhos eletrônicos, o que habilita a participação nas audiências públicas virtuais por tais meios, sem que haja prejuízo à publicidade, ao acesso à informação à intervenção popular.

Por isso, alguns estados da federação já estão adotando a forma virtual para realizar audiências públicas no processo de licenciamento ambiental, como forma de dar continuidade a prestação do serviço ambiental e, por via de consequência, contribuindo para o desenvolvimento da atividade econômica do país em meio a crise humanitária.

O Instituto do Meio Ambiente do Estado de Alagoas, a exemplo, editou a instrução normativa 01/20, instituindo a audiência pública virtual nos processos de licenciamento ambiental, prevendo:

Art. 1º - Aprovar a realização de Audiências Públicas Virtuais, nos processos de licenciamento ambiental em tramitação no IMA/AL, excepcionalmente enquanto perdurar a situação anormal caracterizada como Estado de Calamidade Pública em todo o Estado de Alagoas declarada pelo Decreto nº 69.691, publicado no Diário Oficial do Estado nº 1309, de 16 de abril de 2020.

De igual modo, procedeu o Conselho Estadual do Rio de Janeiro, através da resolução 89/20, permitindo a realização de audiência pública remota no bojo do processo de licenciamento ambiental para dar mais do que celeridade, mas efetividade ao licenciamento ambiental, não o lançando a um futuro incerto, diante da pandemia da covid-19.

Releva destacar que até mesmo a alta cúpula do Poder Judiciário, o Ínclito Supremo Tribunal Federal, adotou o sistema virtual para realizar as sessões de julgamentos através de videoconferência3, a fim de prevenir o contágio do novo coronavírus e garantir, concomitantemente, a efetiva prestação jurisdicional pela Suprema Corte do país.

Em outras palavras, o órgão máximo da justiça brasileira, dá claros sinais da pertinência da utilização de meios virtuais para dar publicidade dos seus atos oficiais, o que, demonstra a legitimidade e efetividade para a possibilidade de utilização do referido meio, sobretudo quando se trata da proteção ao bem maior, que é a vida humana.

Vale ainda destacar, que outros expedientes, além das audiências públicas, também devem ser promovidos neste período, não se limitando, mas, sobretudo, com o emprego de ferramentas tecnológicas seguras e efetivas, como por exemplo as inspeções de campo para fiscalização e processos administrativos de licenciamento e autorização, principalmente, através do uso de imagens de satélite e áreas, que cada vez mais apresentam segurança e qualidade, além de otimizar tempo de deslocamento e risco aos próprios técnicos dos órgãos.

Soma-se a este cenário a inexistência de impedimentos jurídicos para a adoção de meios alternativos para o bom funcionamento da Administração Pública Ambiental, sendo que em múltiplas vertentes tais meios podem redundar em soluções mais efetivas, rápidas e seguras à efetiva finalidade dos expedientes, em especial a salvaguarda da sadia qualidade de vida, através do meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações, assegurando-se a inexistência de desvio de finalidade dos atos administrativos, bem como a higidez técnica.

Portanto, em nome dos múltiplos princípios que assistem à necessidade de que a Administração Pública Ambiental não tenha sua atuação paralisada pelos efeitos da covid-19, ao que se adiciona a incerteza quanto ao fim da pandemia, urgente e constitucionalmente compulsório que sejam adotados meios alternativos para realização dos expedientes ambientais, notadamente cercados da devida regulamentação e adoção da tecnologia no melhor que ela possa oferecer.

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1 MORAES, A. de. Direito Constitucional. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2004.

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*Leandro Henrique Mosello Lima é advogado do escritório MoselloLima Advocacia.

*Mariana Moreira é advogada do escritório MoselloLima Advocacia.

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