Migalhas de Peso

Ensaio sobre a Cegueira...da Secretaria de Estado de Saúde do RJ

Como disse José Saramago, a pior cegueira é a mental, que faz que com que não reconheçamos o que temos a frente.

10/6/2020

O mundo atravessa um momento deveras delicado por causa da pandemia do coronavírus que, por sua vez, dispensa apresentações. Como consequência, nos últimos dias tem sido divulgado, no Rio de Janeiro, que a Secretaria de Estado de Saúde - SES, em parceria com diversas instituições médicas, está a elaborar um protocolo com o fito de orientar o médico a tomar a decisão na escolha de qual paciente terá prioridade em caso de falta de leitos e/ou respiradores.

De acordo com a reportagem, tal protocolo criará uma avaliação de pacientes, que somarão notas de 0 a 24 pontos. Para definir a soma desses pontos, os médicos deverão considerar, (1) funcionamento de órgãos (como pulmões, rins e coração); (2) doenças preexistentes (diabetes, hipertensão e obesidade); (3) idade (os mais novos têm prioridade); e (4) ordem de solicitação da vaga. Na prática, a pessoa que obtiver um maior número de pontos irá para o final da fila de atendimento.

Até a conclusão do presente artigo, o secretário da pasta está a avaliar a validação ou não do procedimento, Entretanto, tal medida não é unanimidade sequer entre os médicos. Na mesma reportagem acima destacada, um membro da Sociedade de Bioética afirma que não se pode entender como dogma que a idade seja o critério determinante. No mesmo sentido, o presidente do Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro entende que a proposta fere o princípio do Sistema Único de Saúde (SUS), de que todos devem receber o mesmo tratamento.

Em resposta às críticas então recebidas, a SES emitiu, em sua página na internet, um comunicado esclarecendo que o documento ainda não foi assinado, tampouco publicado, bem como estão analisando protocolos usados na Espanha e nos Estados Unidos da América-EUA.

Pois bem. Com base no problema ora apresentado, cabe nesta oportunidade apresentar as impossibilidades de levar adiante tal medida; seja em razão empírica, seja por absoluta falta de segurança jurídica.

A razão empírica se dá pelo fato de um dos países paradigmas já demonstrar falhas na aplicabilidade do protocolo. Os EUA começaram a praticar a (im)popular Sophie`s Choice. O Estado do Alabama proferiu as Diretrizes de Padrões de Cuidados de Crise, tendo um dos seus capítulos denominado “Criteria for Mechanical Ventilator Triage Following Proclamation of Mass-Casualty Respiratory Emergency”, onde os hospitais são instruídos a “não oferecer suporte ao ventilador mecânico para pacientes” com “grave ou retardo mental profundo”, “demência moderada a grave” e “cérebro traumático grave ferimentos”. Esta política também se aplica a crianças.

Após a divulgação de tal medida, a mesma foi alvo de reclamações de Organizações Não Governamentais – ONGs e escritórios de advocacia. Em resposta a uma reclamação endereçada ao Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA para Direitos Civis (Department of Health and Human Services Office for Civil Rights [OCR]), o estado do Alabama retirou sua política discriminatória de racionamento de ventiladores e instruiu hospitais em todo o estado que eles não podem discriminar pessoas com deficiência no acesso ao tratamento. Ainda, em nota, o  diretor da OCR, Roger Severino, afirmou que "pessoas com deficiência, com habilidades limitadas em inglês e idosos não devem ser colocados no final da fila para atendimento médico durante emergências." (sic)

Desta forma, quanto à razão empírica, há de se concluir que o país utilizado como referência para aplicar tal medida no Rio de Janeiro já demonstrou insucesso e diversas violações às leis locais.

Já com relação à razão da falta de segurança jurídica, importante destacar que tal situação vai de encontro à Teoria dos Motivos Determinantes, a qual apregoa que a validade do ato administrativo - o possível protocolo - depende da correspondência entre os motivos neles expostos e a existência concreta dos fatos que ensejaram a sua edição. De acordo com Rafael Oliveira1, “a motivação representa um instrumento fundamental para a ampliação e a efetividade do controle externo do ato”.

In Casu, o motivo determinante para a regulação da Escolha de Sophia em terras brasilis se encontra – flagrantemente – equivocado. Ademais, até por uma questão de dedução, não é de bom grado buscar referências exatamente no país que, início do problema, desobedeceu as recomendações básicas sugeridas pela Organização Mundial da Saúde – OMS, ajudando a liderar, a passos largos, o número de casos confirmados e de óbitos oriundos do Coronavírus e, como medida desesperada, procura a “meritocracia nosocômia”.

No Brasil, se ocorrer tal política segregacionista, em desfavor da pessoa com deficiência, como ocorrera no Alabama, fatalmente violará a lei 13.146, de 6 de julho de 2015, também conhecida como Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência).

Na referida lei, o art. 10, parágrafo único, é nítido ao garantir que, em casos calamidade pública, a pessoa com deficiência será considerada vulnerável, sob o cuidado do poder público. No que tange ao capítulo do Direito à Saúde, é constatado ser assegurada atenção integral à saúde, garantido acesso universal e igualitário. Ainda sobre tal tema, também é previsto que em caso de suspeita ou confirmação de violência praticada contra a pessoa com deficiência, será objeto de notificação compulsória às autoridades competentes.

No âmbito internacional, a Organização das Nações Unidas – ONU, proferiu a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, cujo texto em seu artigo 25º (saúde) proíbe qualquer discriminação contra as pessoas com deficiência. Aliás, em janeiro de 2013, a Secretaria Estadual de Assistência Social e Direitos Humanos do Rio de Janeiro publicou a Cartilha dos Direitos das Pessoas com Deficiências, onde informa a adesão do Estado ao Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência – Viver Sem Limite, bem como cita – com base no artigo 25º supracitado – uma série de medidas a serem adotadas em prol da pessoa com deficiência.

Por fim – e acima de tudo –, a Constituição da República, no caput do art. 5º, é deveras objetiva ao afirmar que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”, assim como o art. 6º é contundente no sentido de garantir a saúde como um dos direitos sociais.

Assim sendo, conclui-se que qualquer medida discriminatória para critério de escolha de paciente, inclusive se considerar como critério de desempate a pessoa ser deficiente, não terá segurança jurídica para ser levada adiante, inclusive por violar a letra fria da Constituição da República.

A subordinação da Administração Pública ao vértice da pirâmide de Kelsen é, inclusive, lembrada pelo professor doutor Canotilho2, ao entender que o princípio da constitucionalidade da administração deve ser respeitado em todos os atos do Estado, principalmente, no âmbito administrativo.

Curiosamente, a nota enviada pela SES, citada no início, insiste na alegação de que em nada ajuda a discussão de tema tão importante à população, em momento tão delicado da nossa história e do mundo (sic). Com todo respeito à pasta responsável, o Autor deste artigo não concorda com tal ponto de vista, uma vez que, exatamente por ser um momento sui generis na humanidade, qualquer medida deverá ser seriamente debatida.

Ou seja, deixar a sociedade inaudível fomenta a erosão da democracia representativa e, consequentemente, o distanciamento da relação eleitor x eleito. Acerca deste tema, o professor doutor Carlos Blanco de Morais3 afirma que o reducionismo eleitoral é um dos fatores preocupantes discutidos sobre a necessidade de um reforço da qualidade da democracia.

Por sua vez, Kelsen4 entende que os princípios da tolerância e da discussão ampla são importantes para um procedimento democrático deveras relevante para que possibilitem o exercício da liberdade pelo maior número de indivíduos.

Logo, ao considerar a falta de suporte legal da proposta combatida e, por outro lado, as graves notícias veiculadas sobre possíveis compras irregulares de aparelhos respiratórios, como também os leitos ociosos nos hospitais, seria de melhor interesse público resolver – primeiro - tais problemas do que cogitar a “Escolha de Sofia” no Rio de Janeiro. A análise de impacto ex ante do protocolo indica que o vencedor da “competição” ficará sem “troféu”.

Tal como na obra que empresta o título deste artigo, vivemos em um momento de epidemia, de quarentena, como nunca se imaginou viver. Em um cenário, guardadas as devidas proporções entre liberdade poética e realidade, que nos obriga a fazermos escolhas trágicas e a refletirmos sobre ética, justiça, cidadania etc. Como disse José Saramago, a pior cegueira é a mental, que faz que com que não reconheçamos o que temos a frente.

A situação nos exige, portanto, a lucidez em contraposição à cegueira, a fim de que sejamos capazes de ultrapassar este momento para que, no futuro, voltemos a “enxergar”, porém sem carregarmos conosco memórias de escolhas infelizes, injustas e ilegais.

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1 OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. 3. ed. São Paulo: Método, 2015. p. 282.

2 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição da República Portuguesa anotada. 3. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1993. p. 922

3 MORAIS, Carlos Blanco – O Sistema Político ¬Almedina – Coimbra – 2018 – p. 94

4 KELSEN, Hans. A Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 178-182.

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*Sandro Parente é advogado no Brasil e em Portugal. Mestrando em Ciências Jurídico-Políticas na Universidade de Lisboa.

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