Migalhas de Peso

A 'sábia ignorância' de quem defende uma 'intervenção militar constitucional'

A defesa de uma ruptura institucional nada tem a ver com a Constituição.

9/6/2020

"Nós queremos fazer cumprir o artigo 142 da Constituição.
Todo mundo quer fazer cumprir o artigo 142 da Constituição.
E, havendo necessidade, qualquer dos Poderes pode, né?
Pedir às Forças Armadas que intervenham para restabelecer a ordem no Brasil".
- Jair Bolsonaro, Palácio do Planalto, 22 de abril de 2020.

O vídeo da fatídica reunião ministerial de 22 de abril revelou a interpretação do Presidente da República a respeito do artigo 142 da Constituição Federal. Sob a ótica de Jair Bolsonaro, seria possível que as Forças Armadas fossem convocadas por um Poder da República para "restabelecer a ordem no Brasil". O alcance e o sentido da interpretação podem ser extraídos do contexto em que se deu a fala: na reunião de 22 de abril, uma quarta-feira, o Presidente queixava-se das críticas que recebera por ter participado de atos em celebração ao Dia do Exército, no domingo anterior.

Disse o Presidente:

"Quando se fala em possível impeachment, ação no Supremo, baseado em filigranas, eu vou em qualquer lugar do território nacional e ponto final! O dia que for proibido de ir... pra qualquer lugar do Brasil, pelo Supremo, acabou o mandato. E, espero que eles não decidam, ou ele, né? Monocraticamente, querer tomar certas medidas porque daí nós vamos ter um… uma crise política de verdade. E eu não vou meter o rabo no meio das pernas. Isso daí... zero, zero."

Uma leitura possível de tais palavras seria a de que as Forças Armadas poderiam intervir no Poder Judiciário a pedido do Poder Executivo. A intervenção verde-oliva serviria para acalmar os ânimos entre o governo Federal e a Suprema Corte.

Em termos práticos, só se pode imaginar como se daria essa intervenção militar "pontual", como defenderam alguns. O Exército entraria no Palácio do Supremo Tribunal Federal e prenderia todos os ministros? Ou afastaria apenas o ministro cuja decisão monocrática teria irritado o Presidente? Bastariam "um cabo e um soldado" para fechar a Corte ou seria necessária a convocação de uma tropa para rasgar as onze togas?

No centro do debate está a redação do artigo 142 da Constituição Federal, cujo caput jamais foi alterado desde a promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988:

"As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem".

A interpretação dos que defendem a intervenção militar é a seguinte: o Presidente, sob cuja autoridade estão organizadas as Forças Armadas ("Eu sou o chefe supremo das Forças Armadas. Ponto final"), poderia tomar a iniciativa para garantir a lei e ordem ("restabelecer a ordem no Brasil"), ainda que o foco da instabilidade se originasse do Poder Judiciário, especialmente de seu órgão máximo, o Supremo Tribunal Federal. Haveria, assim, uma "intervenção militar constitucional", amparada no artigo 142 da Constituição.

A leitura é equivocada.

Diga-se sem rodeios: o artigo 142 da Constituição Federal não autoriza, de maneira alguma, que as Forças Armadas intervenham em qualquer Poder da República, Executivo, Legislativo ou Judiciário.

Os fundamentos para essa interpretação são vários:

1. O artigo 142 limita-se a descrever as Forças Armadas e a sua finalidade na democracia constitucional. Em termos estritamente literais, o artigo 142 não comporta a extensão pretendida pelos adeptos da intervenção militar. Ao falar em "garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem", o dispositivo em nenhum momento diz que, por iniciativa de qualquer Poder, poderá haver intervenção em outro Poder.

2. O artigo 142 deve ser lido junto ao artigo 2º ("São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário"). Nada fere mais a independência e a harmonia entre os Poderes do que uma interferência das Forças Armadas a pedido de um Poder contra outro. Uma Carta Magna que, logo em seu segundo artigo, insere uma cláusula inequívoca sobre a tripartição das funções republicanas jamais esconderia, 140 artigos abaixo, um dispositivo para autorizar a autofagia da própria República.

3. O parágrafo primeiro do artigo 142 prevê: "Lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas". Essa lei complementar existe: é a de 97, de 9 de junho de 1999. Nela, não se prevê a tal "intervenção militar constitucional", mas apenas o emprego das Forças Armadas em ações como, por exemplo, operações de paz, patrulhamento de fronteiras e segurança pessoal de autoridades nacionais e estrangeiras em missões oficiais. De forma eloquente, o artigo 1º, caput, da LC 97 replica, ipsis litteris, o artigo 142, caput, da Constituição.

4. Historicamente, não se pode crer que o constituinte – após o encerramento de uma ditadura militar mediante uma abertura "lenta, gradual e segura", nas palavras de Ernesto Geisel – teria inserido um dispositivo que autorizaria a intervenção expedita das Forças Armadas contra o próprio Estado Democrático de Direito (artigo 1º, caput), erigido a duras penas e com muito derramamento de sangue. Na estrutura orgânica da Constituição Federal, o artigo 142 encontra-se sob o Título V, "Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas". O constituinte teria sido esquizofrênico?

5. Não existe Poder Moderador no Estado Democrático de Direito. No período imperial, a Constituição de 1824, de fato, previa: "O Poder Moderador é a chave de toda organização Política, e é delegado privativamente ao imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobra a manutenção da independência, equilíbrio, e harmonia dos demais Poderes Políticos" (artigo 98). Na República, a Constituição de 1988 previu que "todo o poder emana do povo" (art. 1º, parágrafo único), destacou que os Poderes da União são "independentes e harmônicos entre si" (art. 2º) e atribuiu ao Supremo Tribunal Federal, órgão máximo do Poder Judiciário, "a guarda da Constituição" (artigo 102, caput).

6. Por fim, apenas para afastar a tese de que "o povo" poderia clamar por uma intervenção militar – tal como sugeriu o Presidente Bolsonaro na reunião de 22 abril ("Todo mundo quer fazer cumprir o artigo 142 da Constituição") –, diga-se: a Constituição estabeleceu que o exercício do poder popular se daria "nos termos desta Constituição" (art. 1º, parágrafo único). Ou seja, o próprio poder popular encontra-se limitado pelo texto da lei fundamental da República.

A ideia de que as Forças Armadas poderiam intervir contra o STF, o guardião da Constituição, não passa de uma manobra inconstitucional.

Apenas por amor ao debate, pergunta-se: poderia o STF invocar o artigo 142 para intervir na Presidência da República? Imaginemos que o Presidente descumprisse uma decisão judicial, como chegou a considerar em 28 de maio – "Ordens absurdas não se cumprem, temos de botar limites".

Por exemplo: digamos que a Suprema Corte determinasse a entrega do celular do Presidente e este se recusasse a cumprir a ordem. Poderia algum ministro do STF chamar o Exército para invadir o Palácio do Planalto com vistas à "garantia dos poderes constitucionais"?

Óbvio que não. O remédio para o descumprimento da ordem se encontraria na própria Constituição: o impeachment do Presidente da República. Afinal, é crime de responsabilidade o ato presidencial que atente contra "o cumprimento das leis e das decisões judiciais" (artigo 85, VII).

Como se percebe, a defesa de uma ruptura institucional nada tem a ver com a Constituição. Falar em "intervenção militar constitucional" não passa de um oximoro, uma sábia ignorância.

 _________

*Paulo Sergio Coelho é bacharel em Ética, Política e Economia pela Yale University (EUA) e em Direito pelo Largo de São Francisco – USP, é advogado criminalista e integra o escritório Toron, Torihara e Cunha Advogados.

*Gustavo Favero Vaughn é bacharel em Direito pela PUC-SP e mestrando em Direito Processual Civil pelo Largo de São Francisco – USP, é advogado cível com foco em contencioso estratégico e arbitragem comercial, do escritório Cesar Asfor Rocha Advogados.

 

                       

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