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Dever de informar e ônus de se informar: A boa-fé objetiva como via de mão dupla

A consolidação da relevância da boa-fé objetiva para o estudo do fenômeno obrigacional foi acompanhada pelo amplo reconhecimento das suas três funções essenciais – interpretação, limitação do exercício de situações jurídicas subjetivas e criação de deveres laterais de conduta.

9/6/2020

A superação do individualismo e do voluntarismo, característicos do paradigma contratual clássico, fez-se acompanhar, especificamente na seara obrigacional, pela benfazeja consolidação da boa-fé objetiva como regra de conduta destinada a reger a generalidade das relações patrimoniais. Já referida como a “regra áurea da relação obrigacional”1 e comumente apontada como decorrência do princípio da solidariedade social,2 a boa-fé objetiva irradia efeitos sobre todas as fases da relação obrigacional e sobre as mais variadas situações jurídicas subjetivas que lhe são correlatas.

A consolidação da relevância da boa-fé objetiva para o estudo do fenômeno obrigacional foi acompanhada pelo amplo reconhecimento das suas três funções essenciais – interpretação, limitação do exercício de situações jurídicas subjetivas e criação de deveres laterais de conduta.3 No âmbito dessa tripartição funcional, assumem particular relevo para o presente estudo os deveres impostos pela cláusula geral de boa-fé objetiva, deveres esses convergentes em torno do propósito de promoção da cooperação e da lealdade entre os contratantes.4 Destaque-se, desde logo: tais deveres se dirigem, ainda que em distintos graus, a ambos os contratantes.

Embora sutil, tal percepção se revela da maior importância para a compreensão do alerta que motiva este ensaio: não raramente, a práxis revela um enviesamento na análise de um dos mais basilares deveres decorrentes da boa-fé objetiva – o dever de informar.5 De fato, multiplicam-se as ocasiões em que o debate acerca do cumprimento do dever de informar se pauta única e exclusivamente na análise da conduta de um dos contratantes: o vendedor informou ao comprador, suficientemente, todos os atributos da coisa alienada? O locador prestou ao locatário todas as informações relacionadas ao imóvel? O sócio retirante (cedente de cotas, por exemplo) compartilhou com o ingressante (cessionário das cotas) todos os elementos pertinentes à situação financeira da sociedade?

Tais questionamentos definitivamente não se afiguram equivocados ou despropositados per se. De fato, o risco na matéria não reside na mera formulação das referidas perguntas, mas sim no seu caráter unidirecional – voltado apenas à situação do devedor da informação. A análise, contudo, que se paute exclusivamente no devedor e não leve em consideração a posição do credor da informação dificilmente atingirá o escopo efetivamente almejado pela boa-fé objetiva. Afinal de contas, sequer seria possível enunciar por completo o conteúdo do dever de informar a cargo de uma parte sem se definirem concomitantemente, entre outros aspectos, as informações mais pertinentes e relevantes à formação do consentimento da contraparte, as informações a ela já disponíveis e, acima de tudo, a sua concreta possibilidade de ter (ou de solicitar) acesso às informações que se lhe afigurem mais decisivas.

Vista a questão por outro ângulo, há de se reconhecer, em singela metáfora, que o dever de informar, tal como a própria boa-fé objetiva em si considerada, consiste em via de mão dupla. Com efeito, o caráter eminentemente relacional da boa-fé objetiva se manifesta também no correlato dever de informar. Dessa percepção decorrem, ao menos, duas ordens de consequências: (I) a necessidade de consideração das vicissitudes da relação concretamente estabelecida pelas partes; e (II) a necessidade de valoração da conduta de uma parte vis-à-vis da conduta da outra. Assim, não se afigura possível aferir a conformidade da conduta da parte à boa-fé objetiva sem que se considere o caráter relacional dessa cláusula geral e, em especial, do dever de informar. Retomando-se as indagações indicadas acima, compreende-se que somente se há de cogitar do cumprimento, por uma parte (o vendedor, o locador, o cedente etc.), do dever de informar caso se tenha em mente quais informações são reputadas relevantes, necessárias e inacessíveis (ou não acessíveis mediante esforço razoável) pela outra parte (o comprador, o locatário, o cessionário etc.).

Em última análise, parece possível afirmar que a definição do conteúdo e a investigação do adimplemento do dever de informar a cargo de uma das partes não se pode perfazer sem a concomitante perquirição do padrão de comportamento esperado da contraparte. De fato, resultaria incompatível com a configuração dogmática da boa-fé objetiva a enunciação apriorística do conteúdo do dever de informar sem a simultânea definição, à luz das circunstâncias do caso concreto, das concretas condições do interessado para obter ou solicitar tais informações – sempre tendo em mente as necessidades e dificuldades informacionais da contraparte.

À luz dessas considerações, parece justificar-se o reconhecimento de que o dever de informar se conjuga diretamente a um ônus de se informar.6 Com isso pretende-se destacar que, em matéria de informação (tal como na generalidade das manifestações do fenômeno obrigacional), tão importante quanto a cooperação do devedor é a cooperação do credor. Incumbe ao credor, dentro das suas concretas possibilidades, o ônus de empreender esforço razoável para a obtenção – ou, ao menos, para a solicitação – das informações necessárias à formação do seu convencimento ou ao desempenho da prestação assumida no bojo do contrato. Fala-se em ônus para se ressaltar que, embora não se constitua propriamente em dever juridicamente coercitivo,7 a postura diligente do credor apresenta-se como pressuposto para o legítimo exercício do seu direito à informação.8 Com efeito, dificilmente poder-se-ia concluir que age conforme à boa-fé objetiva o credor que deixa de buscar – ou, ao menos, de solicitar – as informações às quais razoavelmente poderia ter acesso sem esforço desmesurado.9

Cumpre advertir: a extensão do ônus de se informar não pode ser definida em abstrato – à semelhança, aliás, do que se registrou acerca do próprio dever de informar. Incumbe, portanto, ao intérprete a tarefa de definir a exata medida do dever de informar e do correlato ônus de se informar à luz das vicissitudes de cada caso concreto posto à sua apreciação.10 Nessa empreitada, a extensão do dever de informação e a extensão do ônus de se informar haverão de ser investigadas à luz, entre outros fatores, do grau de vulnerabilidade ou assimetria informacional das partes na concreta relação contratual: por um lado, quanto maior a assimetria informacional, mais intenso é o dever de informar e menos intenso é o ônus de se informar; por outro lado, quanto menor a assimetria informacional, menos intenso é o dever de informar e mais intenso é o ônus de se informar. Cumpre ao intérprete, portanto, investigar a existência e a exata medida da assimetria informacional entre as partes, por ser justamente essa disparidade originária de informações um dos principais critérios para a definição da intensidade do dever de informar e do ônus de se informar em cada caso concreto.

Desse modo, o caminho mais adequado parece não estar nem no esvanecimento nem na hipertrofia do dever de informar:11 a redução do dever de informar atentaria contra a conquista do direito contratual contemporâneo no que tange à materialização da liberdade e da justiça contratuais;12 já a sua hipertrofia , por sua vez, findaria por acarretar excessiva e injustificada intervenção do julgador no conteúdo de contratos validamente celebrados por agentes econômicos em posição de simetria informacional, o que pode produzir efeitos tão indesejados quanto a ausência de proteção nas hipóteses em que é efetivamente necessária.13 De fato, se é verdade que a intervenção corretiva pelo julgador se justifica diante de comprovada vulnerabilidade contratual, é igualmente verdade que a intervenção não se justifica diante da ausência de vulnerabilidade de qualquer das partes.

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1 A expressão remonta à lição de TRABUCCHI, Alberto. Istituzioni di diritto civile. 46. ed. A cura di Giuseppe Trabucchi. Padova: CEDAM, 2013, p. 707. Tradução livre do original.

2 Nesse sentido, v., por todos, PERLINGIERI, Pietro. Manuale di diritto civile. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2014, p. 634.

3 Para o desenvolvimento da análise, seja consentido remeter a SILVA, Rodrigo da Guia. Em busca do conceito contemporâneo de (in)adimplemento contratual: análise funcional à luz da boa-fé objetiva. Revista da AGU, vol. 16, n. 2, abr.-jun./2017, item 1.

4 Sobre o ponto, cfr. TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. Fundamentos do direito civil. Volume 2: Obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 38, nota de rodapé n. 26.

5 Para uma análise detida acerca do dever de informar, com especial enfoque na sua manifestação nas relações de consumo, v. KRETZMANN, Renata Pozzi. Informação nas relações de consumo: o dever de informar do fornecedor e suas repercussões jurídicas. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2019, item 1.3.

6 No que tange ao reconhecimento do ônus de se informar, em decorrência da exigência de atuação conforme à boa-fé objetiva, v., por todos, MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 590 e ss.; e TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. O princípio da boa-fé no direito civil. São Paulo: Almedina, 2020, p. 264 e ss.

7 Ressalvem-se, naturalmente, as hipóteses em que a autoinformação compõe um autêntico dever a cargo da parte, como sucede, por exemplo, com o dever do médico de se informar a respeito do quadro clínico do paciente a fim de dispensar-lhe o tratamento médico adequado.

8 A destacar o caráter instrumental do ônus jurídico, afirma-se: “O ônus não é somente um ‘obbligo potestativo’ deixado ao arbítrio do obrigado, antes, representa uma situação instrumental para alcançar um resultado útil para o titular” (PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Trad. Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 698)”. No mesmo sentido, v., ainda, SOUZA, Eduardo Nunes de. Situações jurídicas subjetivas: aspectos controversos. Civilistica.com, a. 4, n. 1, 2015, p. 21-22.

9 Como destaca Eduardo Tomasevicius Filho (O princípio da boa-fé no direito civil, cit., p. 265), o presente raciocínio se assemelha àquele subjacente à construção teórica segundo a qual a aptidão do erro para macular a validade do negócio jurídico depende de esse erro se revelar, além de substancial e recognoscível (requisitos expressamente estabelecidos pelo art. 138 do Código Civil), escusável. Ao propósito da exigência de escusabilidade do erro, seja consentido remeter a TEPEDINO, Gustavo; OLIVA, Milena Donato. Fundamentos do direito civil. Volume 1: Teoria geral do direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 314-315.

10 A sublinhar a íntima correlação entre o dever de informar e o ônus de se informar, afirma-se: “Há relação imediata entre as intensidades do dever de informar e do dever ou do encargo material de se informar” (MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado, cit., p. 592).

11 Já se pôde advertir: “Faz-se necessário, portanto, vincular o dever de informação e demais deveres anexos à otimização do desempenho das obrigações assumidas pelos contratantes, evitando-se banalizar ou inviabilizar a aplicação da cláusula geral de boa-fé” (TEPEDINO, Gustavo; KONDER, Carlos Nelson. Fundamentos do direito civil. Volume 3: Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 47).

12 De fato, as transformações operadas na matéria encontram boa síntese na célebre formulação de Claus-Wilhelm Canaris acerca da materialização (“Materialisierung”, no original) do direito contratual. Ao propósito, remete-se a CANARIS, Claus-Wilhelm. Wandlungen des Schuldvertragsrechts – Tendenzen zu seiner „Materialisierung“. Archiv für die civilistische Praxis, vol. 200, n. 3, 2000, passim.

13 “O respeito às alocações de riscos nas relações patrimoniais privadas mostra-se imperativo, enaltecendo-se assim sua distinção em face da tutela a ser conferida às relações existenciais e à redução das vulnerabilidades. Neste caso, a promoção da pessoa humana, da sua dignidade e da solidariedade social justificam a maior interferência do Judiciário e a preocupação do intérprete para a equalização das relações jurídicas. Essa diferenciação afigura-se indispensável para que se evite a banalização do dirigismo contratual, promovendo-se, em contrapartida, a liberdade econômica e a harmonização dos diversos interesses merecedores de tutela na legalidade constitucional” (TEPEDINO, Gustavo. Autonomia privada e cláusulas limitativas de responsabilidade. Editorial. Revista Brasileira de Direito Civil. Belo Horizonte, v. 23, jan.-mar./2020, p. 12-13).

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*Gustavo Tepedino é professor Titular de Direito Civil e ex-diretor da Faculdade de Direito da UERJ. Sócio fundador do escritório Gustavo Tepedino Advogados.

*Rodrigo da Guia Silva é doutorando e mestre em Direito Civil pela UERJ. Advogado do escritório Gustavo Tepedino Advogados.

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