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Testamento: Precisamos falar sobre isso

Pretendemos esclarecer ao leitor alguns dos aspectos práticos que envolvem a formalização de um testamento

8/6/2020

As atuais circunstâncias enfrentadas pela humanidade, com a disseminação coronavírus e seu alto índice de letalidade, colocam o ser humano diante de certos dilemas morais e patrimoniais. Ante o possível falecimento, seja de um ente querido, seja o próprio, como repartir o patrimônio conquistado ao longo de toda uma vida? E mais importante: como fazê-lo de maneira jurídica, justa, e sem criar potenciais conflitos entre os familiares?

Pretendemos esclarecer ao leitor alguns dos aspectos práticos que envolvem a formalização de um testamento: quem pode fazê-lo, qual o seu conteúdo, como assegurar que a vontade nele expressa será efetivamente cumprida. Antes, contudo, vale esclarecer que embora pouco presente na realidade das famílias brasileiras, a ferramenta do testamento pode simplificar (e muito) o longo e desgastante processo de inventário, além de garantir que o próprio testador, dono do patrimônio, o distribua da forma que entende mais justa, inclusive beneficiando pessoas e instituições que, via de regra, não receberiam parte de sua herança.

A fim de tornar nosso bate-papo mais dinâmico, pensamos em um jogo de perguntas e respostas bastante objetivas sobre o tema. Vamos lá!

Quem pode fazer um testamento?

Qualquer pessoa capaz - ou seja, que não esteja sob interdição ou curatela - e maior de 16 anos pode redigir um testamento válido. Na hipótese de testador cego, surdo ou surdo-mudo, existem pequenas particularidades.

Como redigir um testamento válido?

A lei prevê três modalidades de testamento: o público, o particular e o cerrado.

No testamento público, a pessoa se dirige ao Tabelionato de Notas de sua preferência e declara o conteúdo do seu testamento para o tabelião e duas testemunhas, que também assinarão o documento, cujo teor é público, ou seja, pode ser conhecido por qualquer um. No caso do testamento particular, ele pode ser redigido de próprio punho ou em computador. A regra é que o testamento particular seja lido e subscrito por três testemunhas, que inclusive confirmarão sua validade depois do falecimento. Existem, entretanto, situações peculiares nas quais o juiz pode aceitar o conteúdo de um testamento válido celebrado sem a presença das testemunhas. Quando ocorre o falecimento, os familiares ou pessoa de confiança do testador levam o testamento ao conhecimento do juiz, para cumpri-lo.

O testamento cerrado, por fim, é uma modalidade intermediária entre as duas anteriores. O testador redige seu testamento em particular e o entrega ao tabelião de notas, na presença de duas testemunhas. Sem tomar conhecimento do conteúdo do testamento, o tabelião lavra um Auto de Aprovação na presença do testador e das duas testemunhas, lança essa circunstância no livro e, após o falecimento, apresenta o testamento ao juiz. Nesse caso, embora reconhecido por uma autoridade pública, o teor do testamento permanece em sigilo.

Sobre quais bens posso dispor em meu testamento?

Via de regra, o testador só pode dispor sobre metade de seu patrimônio - a outra metade corresponde à "legítima", que é a parte da herança que pertence aos herdeiros necessários (descendentes, ascendentes, cônjuge ou companheiro).

Contudo, embora exista certa discussão sobre o assunto, também se admite que o testador disponha sobre a totalidade do seu patrimônio, desde que observe o quinhão dos herdeiros necessários. Um exemplo: um pai viúvo que possui dois filhos pode incluir todo o seu patrimônio no testamento, desde que a repartição dos bens assegure que cada filho permanecerá com 25% do patrimônio.

E por que isso pode ser interessante?

Porque o testador - dono do patrimônio - pode designar qual bem ficará com cada um de seus herdeiros, evitando assim que isso seja objeto de conflito no futuro. Desde que assegurado o quinhão (parte da herança) que a lei garante ao herdeiro, o testador pode determinar com qual bem ele ficará.

No mais, o testamento permite que o testador distribua a metade disponível de seupatrimônio como bem entender - seja atribuindo-a a uma instituição de caridade, a um amigo querido, a um cuidador ou ainda a um dos próprios herdeiros (a condição de herdeiro não impede que se receba a parte disponível do patrimônio).

Os exemplos são os mais diversos: o sujeito que deixa metade do patrimônio a um irmão necessitado, e o restante permanece com os filhos e esposa; a mãe viúva que deixa a metade da herança ao filho doente, assegurando que ele permaneça com 75% da totalidade dos bens e o outro irmão, saudável e independente, com 25%; o companheiro que atribui toda a metade disponível aos filhos, de modo que a companheira herde apenas parte do patrimônio; entre muitos outros.

É possível dispor sobre bens específicos em meu testamento?

Sim. Ao atribuir bens de valor (seja imóveis, carros, jóias, obras de arte, livros, direitos autorais) a alguém determinado, temos o que se chama "legado".

O legado pode ser feito em favor de empresas, instituições ou pessoas que sejam ou não herdeiras, sendo frequentes os casos de grandes professores que legam suas bibliotecas particulares às universidades, de colecionadores de arte que legam suas obras a museus ou instituições culturais, de escritores e compositores que legam os direitos autorais sobre suas obras a instituições apoiadoras da cultura, de cientistas que legam os direitos de exploração de patentes a suas respectivas instituições de pesquisa, entre outros. O limite de valor do legado é sempre a legítima, ou seja, a metade do patrimônio que pertence aos herdeiros necessários.

É também possível deixar como legado o usufruto de um bem determinado (uma casa ou sala comercial, por exemplo), ou ainda o pagamento de uma quantia mensal a alguém (o chamado legado de alimentos), seja ele maior ou menor de idade, situação em que os herdeiros ficarão responsáveis por cumprir o encargo, a partir dos bens e rendimentos da herança.

Posso condicionar minha herança ou legado ao cumprimento de uma obrigação?

Sim. É perfeitamente possível que o testador confira uma parcela de seu patrimônio ou um bem específico a alguém com a condição de que este cumpra uma determinada finalidade. Exemplos recorrentes do cotidiano forense são pessoas que atribuem parte de seu patrimônio a instituições de saúde ou caridade, "com a condição de que estas desempenhem a tarefa assistencial" ou mesmo aqueles que atribuem bens e valores a pessoa determinada, "com a condição de que ela cuide de meus animais de estimação até a morte".

Também é possível que se estabeleça o legado de usufruto ou de alimento com um termo final: "designo o pagamento de dois salários mínimos a A até que complete a maioridade", ou ainda "asseguro o usufruto do bem X a B até que conclua o ensino superior".

Além de disposições patrimoniais, o que mais pode constar do testamento?

O testamento é um ato de declaração de vontade, e como tal pode conter as mais diversas disposições - não apenas aquelas de caráter patrimonial, mas também as de cunho extrapatrimonial. A própria lei prevê duas possibilidades, a nosso ver interessantíssimas.

A primeira delas é a designação de tutor ao filho menor, caso o outro genitor também faleça ou não possa exercer o poder familiar. Essa providência é bastante relevante, pois não raro os pais desejam que, em sua falta, pessoas diversas dos parentes diretos fiquem responsáveis pela criação dos filhos. Embora essa disposição venha a ser objeto de análise posterior pelo juiz (que levará em consideração o melhor interesse da criança para definir quem será o seu tutor), certamente é um elemento forte de convicção e compreensão da vontade dos pais.

A outra disposição extrapatrimonial prevista em lei é o reconhecimento de filho. O testamento pode ser utilizado como documento hábil para formalizar o reconhecimento de um filho ainda não reconhecido, o que produz efeitos imediatos. Embora pouco usual atualmente, semelhante disposição já foi fundamental para evitar a perpetuação de injustiças após a morte, em relação a filhos renegados em vida.

Existem, entretanto, diversas outras disposições extrapatrimoniais que podem ser inseridas em testamento, relacionadas ao funeral e celebrações pós morte do testador, à publicação de escritos privados, à condução de negócios familiares, ao destino de animais de estimação, à confissão de dívidas e segredos que, pelas mais diversas circunstâncias da vida, foram relegados a um momento final etc.

É possível escolher a pessoa que vai fazer meu testamento ser cumprido?

Sim, essa pessoa é o chamado testamenteiro. O testamenteiro pode ser tanto um dos legatários ou herdeiros do testador (descendente, ascendente, cônjuge ou companheiro), como um terceiro de sua confiança. Sua função será assegurar que o testamento seja levado ao conhecimento dos familiares e do juiz, e que os seus termos sejam cumpridos da forma como pretendido pelo testador. Caso não seja herdeiro ou legatário, o testamenteiro será remunerado pelo desempenho da função.

Posso revogar o meu testamento a qualquer momento?

Sim. O testamento pode ser revogado ou revisto a qualquer momento pelo testador, sempre persistindo como sua vontade aquilo que ele manifestou por último.

Para quais pessoas o testamento é mais indicado?

Insistimos que o testamento é uma ferramenta capaz de minimizar conflitos em todas as hipóteses, por isso deve ser cogitado por qualquer pessoa.

Ainda assim, há situações nas quais expressamente aconselhamos nossos clientes a formalizar um testamento. São elas:

Por meio da presente publicação, tivemos o intuito de esclarecer algumas das dúvidas mais corriqueiras relacionadas a testamentos e seus efeitos legais. Ainda assim, sejam quais forem as circunstâncias, é fundamental que a formalização de um testamento seja previamente aconselhada por um advogado, uma vez que o conhecimento das normas legais é fundamental para assegurar que a manifestação de vontade do testador seja válida e produza os efeitos desejados.

Mais que nunca, a realidade empedernida (como outrora chamou-a Drummond) nos impõe o dever de olhar o amanhã e zelar por aquilo e aqueles que nos são caros. Confortável ou não, é preciso analisar o hoje e pensar sobre o que, de fato, há de subsistir para além de nós.

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*Tauanna Gonçalves Vianna é doutoranda, mestre e graduada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Sócia fundadora do escritório TGV Advocacia.

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