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Crítica à solução de consulta COSIT 41, de 31 de Março de 2020: Incidência do IRPF sobre valores recebidos de Trust por residente no Brasil

Na solução da consulta, a COSIT reconheceu que o trust é um tipo contratual, no qual o instituidor (settlor ou grantor) transfere a propriedade de parte ou da totalidade de seus bens a alguém (trustee), que assume a obrigação de administrá-los em benefício do settlor ou de pessoas indicadas por ele (beneficiários).

2/6/2020

Em 2 de abril de 2020, foi publicada a solução de consulta COSIT 41, de 31 de março de 2020, que dirimiu uma dúvida sobre a interpretação da legislação tributária, relativa ao regime tributário dos valores recebidos de trust no exterior por pessoa física residente no Brasil

A solução de consulta COSIT 41, de 31 de março de 2020, tem a seguinte ementa:

Assunto: Imposto sobre a Renda de Pessoa Física - IRPF

RENDIMENTO RECEBIDO DE FONTE NO EXTERIOR.

O recebimento de rendimentos oriundos do exterior por residente no País é fato gerador do imposto sobre a renda e sujeita-se à tributação mensal mediante a aplicação da tabela progressiva mensal (carnê-leão) e na Declaração de Ajuste Anual.

Dispositivos Legais: Lei n. 5.172, de 25 de outubro de 1966, art. 43, Lei n. 9.250, de 26 de dezembro de 1995, arts. 7º e 8º, Lei n. 7.713, de 1988, art. 8º, Regulamento do Imposto sobre a Renda (RIR/2018) arts. 118, caput, 119 e 120, aprovado pelo Decreto n. 9.580, de 22 de novembro de 2018, e Instrução Normativa RFB n. 1.500, de 29 de outubro de 2014, arts. 53, inciso II, e 54.

Assunto: Processo Administrativo Fiscal

INEFICÁCIA PARCIAL.

É ineficaz a parte da consulta que não se refere à interpretação da legislação tributária e aduaneira federal, relativa aos tributos administrados pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB).

Dispositivos Legais: Instrução Normativa RFB n. 1.396, de 16 de setembro de 2013, arts. 1º, 3º, § 2º, e 18, incisos I e XIII.

Ao formalizar a consulta, a consulente narrou que é beneficiária de trust instituído por seu marido no exterior. Desde o seu falecimento, recebe valores pagos pelo trust. Frente à dúvida de interpretação, questionou se os valores recebidos do trust estariam sujeitos à incidência do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) ou do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos (ITCMD).

Na solução da consulta, a COSIT reconheceu que o trust é um tipo contratual, no qual o instituidor (settlor ou grantor) — no caso, o marido da consulente — transfere a propriedade de parte ou da totalidade de seus bens a alguém (trustee), que assume a obrigação de administrá-los em benefício do settlor ou de pessoas indicadas por ele (beneficiários) — no caso, a consulente. Típico nos países da common law, é formalizado através do trust deed, que deve conter todas as condições sob as quais serão administrados os bens (res), como obrigações do trustee, prazo de duração do trust e periodicidade de pagamentos.

Entretanto, apesar de ter reconhecido que a consulente é beneficiária do trust, a COSIT qualificou o fato narrado na consulta como recebimento de rendimentos oriundos do exterior por residente no País. Por via de consequência lógica, aplicou a norma tributária, prevista pelo art. 8º da lei. 7.713, de 22 de setembro de 1988, que dispõe o seguinte:

Art. 8º Fica sujeito ao pagamento do imposto de renda, calculado de acordo com o disposto no art. 25 desta Lei, a pessoa física que receber de outra pessoa física, ou de fontes situadas no exterior, rendimentos e ganhos de capital que não tenham sido tributados na fonte, no País.

Dada a conclusão a que chegou, a COSIT deduziu que o recebimento de valores de trust no exterior por pessoa física residente no Brasil se sujeita à tributação mensal (carnê-leão), através da aplicação da tabela progressiva mensal. Além disso, deve ser levado à tributação na Declaração de Ajuste Anual, conforme o art. 8º da lei 9.250, de 26 de dezembro de 1995.

Todavia, a despeito dos esforços da COSIT, a solução de consulta 41, de 31 de março de 2020, não é a melhor resposta possível para a dúvida existente sobre o regime tributário dos valores recebidos de trust no exterior por pessoa física residente no Brasil. O que é, no mínimo, preocupante, devido ao seu efeito vinculante, no âmbito da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil1.

Do nosso ponto de vista, a COSIT não levou em consideração que o trust é uma forma jurídica flexível, por admitir várias aplicações: por exemplo, o trust imobiliário, o trust de investimentos e o trust de recebíveis2. No caso, o trust que paga valores à consulente, aparentemente, é um trust sucessório, na medida em que a causa dos pagamentos realizados pelo trust repousa sobre a morte do esposo da consulente. Por isso, ao invés de recebimento de rendimentos oriundos do exterior por residente no País, a COSIT deveria ter qualificado o recebimento de valores de trust no exterior por pessoa física residente no Brasil, em realidade, como recebimento de valores por herança.

Ao contrário do recebimento de rendimentos oriundos do exterior por residente no País, o recebimento de valores por herança constitui uma hipótese de não-incidência do IRPF, prevista pelo art. 6º, XVI, da lei 7.713, de 22 de dezembro de 19883, reproduzida pelo art. 35, VII, ‘c’, do decreto 9.580, de 22 de novembro de 20184. Trata-se de uma isenção técnica, que apenas declara a não-incidência do IRPF sobre a herança, por constituir objeto de tributação do ITCMD, que compete aos Estados e ao Distrito Federal, segundo o art. 155, I, da Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 19885.

Um dos mais importantes e respeitados clássicos do Direito Tributário Brasileiro, Rubens Gomes de Souza ensina que “uma determinada soma, para constituir renda, deve […] provir de uma fonte patrimonial determinada e já pertencente ao próprio indivíduo que seja titular da renda”6. Dessa forma, os valores recebidos por herança, que não proveem de uma fonte preexistente no patrimônio do contribuinte, a rigor, não constituem renda.

Portanto, a solução de consulta 41, de 31 de março de 2020, não é a melhor resposta possível para a dúvida existente sobre o regime tributário dos valores recebidos de trust no exterior por pessoa física residente no Brasil. Do nosso ponto de vista, o trust que paga valores à consulente, no caso, é um trust sucessório: ao invés de recebimento de rendimentos oriundos do exterior por residente no País, a COSIT deveria ter qualificado o recebimento de valores de trust no exterior por pessoa física residente no Brasil como recebimento de valores por herança — que constitui hipótese de não-incidência (isenção técnica) do IRPF, prevista pelo art. 6º, XVI, da lei 7.713, de 22 de dezembro de 1988, reproduzida pelo art. 35, VII, ‘c’, do decreto 9.580, de 22 de novembro de 2018.

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1 Instrução Normativa 1.396, de 16 de setembro de 2013, Art. 9º: "Art. 9º A Solução de Consulta Cosit e a Solução de Divergência, a partir da data de sua publicação, têm efeito vinculante no âmbito da RFB, respaldam o sujeito passivo que as aplicar, independentemente de ser o consulente, desde que se enquadre na hipótese por elas abrangida, sem prejuízo de que a autoridade fiscal, em procedimento de fiscalização, verifique seu efetivo enquadramento".

2 FOERSTER, Gerd. O Trust do Direito Anglo-Americano e os negócios fiduciários no Brasil. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, Porto Alegre, 2013, p. 148.

3 "Art. 6º Ficam isentos do imposto de renda os seguinte rendimentos percebidos por pessoas físicas: […] XVI - o valor dos bens adquiridos por doação ou herança."

4 "Art. 35. São isentos ou não tributáveis: […] VII - os seguintes rendimentos diversos: […] c) o valor dos bens adquiridos por doação ou herança, de acordo com o disposto no art. 130 (Lei 7.713, de 1988, art. 6º, caput , inciso XVI)."

5 "Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: I - transmissão causa mortis e doação, de quais bens ou direito."

6 GOMES DE SOUZA, Rubens. Compêndio de Legislação Tributária. 1. ed. Rio de Janeiro: Edições Financeiras, 1952, p. 203.

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*Diego Galbinski é sócio advogado do escritório Diego Galbinski Advocacia. Doutor e mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES.

*Jacquelyne Fleck é advogada do escritório Diego Galbinski Advocacia. MBA em Gestão Tributária pela Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras (FIPECAFI). Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET).

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