O Direito de Família, inegavelmente, é um dos ramos do Direito que mais sofreu alterações nos últimos anos, em razão das novas formas de convivência entre as pessoas, os novos formatos de configuração familiar, etc. Como já referido pela maior Corte Judicial do país, não cabe ao Estado reduzir as realidades familiares a modelos pré-concebidos; pelo contrário: cabe ao Estado, com base no princípio da dignidade da pessoa humana, tutelar os direitos decorrentes das diversas formas de constituição de vínculos familiares1.
Por isso, hoje existe proteção legal aos diferentes tipos de filiação/paternidade. E, consequentemente, há maior facilidade no reconhecimento e na formalização destes vínculos. Nas palavras do professor Ricardo Calderón: “A facilitação do acesso ao registro da filiação é uma perspectiva que não pode ser esquecida, ainda mais face o nosso quadro de muitas crianças sem pai registral. Nessa ótica, deve ser viabilizada também a formalização dos vínculos socioafetivos”2.
Primeiramente, cabe informar que no Brasil existem três critérios para definir a paternidade. São eles: O critério jurídico (a lei presume o vínculo de paternidade decorrente do casamento – artigo 1.597 do Código Civil), o critério biológico (estabelece como pai aquele indicado no exame de DNA, ou seja, a paternidade é constatada através de perícia genética) e o critério socioafetivo (decorrente do convívio, com a prevalência do vínculo construído entre o pai “de criação” e a criança).
Não existe hierarquia nem qualquer diferença entre os critérios de paternidade. Todos eles tem por objetivo a proteção da criança, sendo o interesse do menor sempre o fator mais importante a ser considerado.
Com relação à paternidade socioafetiva, anteriormente era indispensável o ajuizamento de ação judicial para o reconhecimento do vínculo e alteração do registro de nascimento. Desde o ano de 2017 não há mais esta obrigatoriedade.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), instalado em 14 de junho de 2005 possui entre as suas competências o dever de expedir provimentos e outros atos normativos destinados ao aperfeiçoamento das atividades dos serviços notariais e de registro. Assim, passou a regulamentar as questões referentes ao procedimento para reconhecimento e registro de paternidade.
Em 2017 foi publicado o provimento 63 do CNJ disciplinando o reconhecimento voluntário e a averbação da paternidade e maternidade socioafetiva no registro de nascimento. A partir desta norma, os cartórios de registro civil de pessoas naturais de todo o país passaram a ser competentes para formalizar a existência de vínculo socioafetivo através da inclusão do nome do pai/mãe socioafetivos nos registros de nascimentos.
Posteriormente, no ano de 2019, o CNJ trouxe novidades ao tema através do provimento 83. A nova norma busca aperfeiçoar e trazer maior segurança ao procedimento já instituído, visando especialmente evitar fraudes e combater a chamada “adoção à brasileira” (adoção irregular, sem observância dos trâmites legais, na qual alguém registra como se fosse seu um filho que sabe ser de outra pessoa3). Em síntese, o objetivo do CNJ foi deixar para o oficial do registro civil apenas os casos consensuais e incontroversos, sob os quais não pairem quaisquer dúvidas4.
Então, como funciona hoje o reconhecimento extrajudicial da paternidade socioafetiva? Eis um resumo do procedimento:
Primeiro, devem ser observados os requisitos legais. O procedimento só é permitido para o reconhecimento de filho com idade acima de doze anos. Esta é uma inovação do provimento 83 CNJ, pois o regramento anterior não trazia nenhuma restrição de idade. O reconhecimento de filho socioafetivo com idade inferior a doze anos é possível somente através de ação judicial.
O interessado em reconhecer alguém como filho deve ser maior de dezoito anos. Não pode haver pedido de reconhecimento de paternidade socioafetiva dos irmãos entre si nem dos ascendentes. Além disso, há de ser observada uma diferença de idade de pelo menos dezesseis anos entre o pretenso genitor socioafetivo e o filho a ser reconhecido.
Quando o filho a ser reconhecido tiver entre 12 e 17 anos de idade será obrigatória a anuência do próprio menor por escrito. Da mesma forma, será obrigatória a anuência dos pais biológicos, devendo o registrador colher a assinatura do pai e da mãe do reconhecido.
Este talvez seja um dos maiores obstáculos para o sucesso do procedimento. Muitas vezes não é possível a anuência do genitor, seja porque não se tem contato ou notícia do paradeiro do genitor biológico, seja por falta de interesse deste em cooperar com o reconhecimento do vínculo socioafetivo de outrem para com seu filho. E, infelizmente, em alguns casos, esta falta de interesse decorre dos motivos mais mesquinhos imagináveis...
A anuência deverá ser realizada pessoalmente perante o registrador. O provimento prevê que quando não for possível obter anuência/manifestação de qualquer dos envolvidos o caso será apresentado ao juiz competente nos termos da legislação local. No Estado do Rio Grande do Sul este encaminhamento será de ofício pelo próprio registrador, o qual submeterá o caso ao juiz de Direito Diretor do Foro da Comarca que pertencer a Serventia, ou da Vara dos Registros Públicos, quando houver5.
Cumpre destacar que a existência de processo judicial discutindo a paternidade ou processo de adoção impede o reconhecimento extrajudicial.
Uma vez observados os requisitos legais, as partes interessadas deverão comparecer perante o cartório do registro civil de pessoas naturais, não obrigatoriamente aquele onde foi realizado o registro do nascimento. O registrador deverá advertir a partes de que o reconhecimento do vínculo socioafetivo é ato irrevogável. Uma vez advertidos os interessados, terá início o procedimento.
O vínculo socioafetivo a ser reconhecido e registrado deverá ser estável e estar exteriorizado socialmente. Neste ponto, a legislação apenas regulamentou os requisitos com os quais os tribunais brasileiros e os doutrinadores já reconhecem como imprescindíveis para a construção do liame socioafetivo. Trata-se da chamada posse do estado de filho, comprovada basicamente por três elementos: nome, trato e fama. O filho a ser reconhecido deve ter utilizado o nome do pai ao qual ele identifica como tal, além de sempre ter sido tratado como filho e reconhecido como tal não apenas pelo presumido pai, mas também pelo público, pela sociedade de forma geral.
O registrador deverá atestar a existência do vínculo afetivo da paternidade ou maternidade socioafetiva. Fará isso através da análise objetiva das provas apresentadas pelos interessados. É possível a utilização de todos os tipos de provas em direito admitidos. O próprio provimento 83 do CNJ apresenta um rol exemplificativo de meios pelos quais é possível fazer prova do vínculo socioafetivo: inscrição em plano de saúde, certidão de casamento e/ou união estável com o genitor biológico, fotografias, declaração de testemunhas com firma reconhecida, etc. Estes documentos ficarão arquivados com o registrador.
O provimento prevê que a ausência dos documentos referidos (desde que justificada) não impede o registro, estando obrigado o titular do registro civil a fundamentar a razões pelas quais atestou a existência do vínculo.
Após o registrador realizar a conferência da documentação apresentada, o expediente será encaminhado ao representante do Ministério Público para parecer. Caso o MP apresente parecer favorável, será realizado o registro do vínculo socioafetivo, com a inclusão do genitor socioafetivo na certidão de nascimento. Se o parecer for desfavorável, o registrador não procederá o registro da paternidade ou maternidade socioafetiva e comunicará o ocorrido ao requerente, arquivando-se o expediente.
Existe outra limitação trazida pelo provimento 83: O procedimento extrajudicial é válido somente para a inclusão de UM ascendente socioafetivo, seja do lado paterno ou do materno; a inclusão de mais de um ascendente socioafetivo deverá tramitar pela via judicial.
Finalmente, o reconhecimento do vínculo socioafetivo não impede que posteriormente o filho possa a buscar judicialmente a sua origem biológica e os direitos dela recorrentes.
Cumpre destacar que os provimentos 63 e 83 do CNJ nada mais são do que instrumentos regulatórios de situações que fazem parte da realidade brasileira, especificamente a multiparentalidade. O Supremo Tribunal Federal, no já mencionado julgamento do RE 898.060, estabeleceu que merecem tutela jurídica concomitante, para todos os fins de direito, os vínculos parentais de origem afetiva e biológica, a fim de prover a mais completa e adequada tutela aos sujeitos envolvidos, ante os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e da paternidade responsável (art. 226, § 7º).
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1 RE 898.060, relator(a): min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 21.09.16, publicado em 24.08.17.
5 Vide artigo. 133-B, § 6º, da Consolidação Normativa Notarial e Registral da Corregedoria Geral de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.
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*Cassiano Cordeiro Alves é advogado Cível do escritório Xavier & Longaray Advogados.