Um certo dia, em plena pandemia do covid-19 no Brasil, o ESPAÇO virou para o TEMPO e o indagou, o que o fazia ser tão flexível? Nesse momento, já não eram mais tão próximos e seguiram caminhos distintos, pois, quando o TEMPO percebeu que conseguia se expandir e se movimentar através do ESPAÇO, ele quis fazer sua própria história. Mas o ESPAÇO não se contentava com essa situação e se tornava um grande obstáculo ao TEMPO.
(A reflexão sobre esses dois atores do texto parte dos conceitos de Bauman,1 que, em seu livro Modernidade Líquida, trabalha com o tempo dissociado do espaço na Modernidade. O primeiro, o tempo, pode se movimentar através do espaço e se torna fruto da capacidade e da imaginação humana, enquanto que o espaço é rígido e inflexível. O artigo pretende trabalhar com dois atores importantes, o tempo e o espaço, para se interpretar o Direito e suas lacunas nas obrigações na insolvência, diante de novas questões surgidas em tempo de pandemia).
Então, em uma discussão entre o TEMPO e o ESPAÇO, este mais rígido e inflexível, surge a seguinte indagação: qual seria o tempo adequado nas obrigações geradas na insolvência, o da lei ou o do fato social?
- A lei, é claro, disse o ESPAÇO, o Direito é imperativo. Esquece essa coisa de fato social, pois esta retira a previsibilidade do Direito. Por exemplo, o REsp 1.853.3472 que fala que o termo bienal para a contagem do prazo de recuperação judicial não sofrerá alterações, mesmo ocorrendo um plano modificativo, considerou o tempo da lei, o direito impositivo. Nesse ponto, o ministro Villas Bôas Cueva, em sua decisão monocrática, entendeu que o plano modificativo teria uma natureza meramente suspensiva e não interruptiva, pois o termo para a extinção da recuperação judicial não recomeçaria a contar, isso segundo a minha interpretação.
- Mas ESPAÇO, o que você não consegue ver, são as consequências dessa decisão, disse o TEMPO. Se a previsão dos dados e expectativas, que estão sendo publicados, de que o número de falências e recuperações judiciais aumentará, como ficarão as empresas que ainda estão cumprindo as suas obrigações? Se o credor terá, ou não, que requerer a tutela específica ou a falência do devedor é uma mera formalidade, mas o que me preocupa são os efeitos deletérios dessa decisão. Acho que deve se ter em mente os reflexos sociais, inclusive para as empresas, por mais que não tenha sido o objeto do acórdão. Já pensou que a inflexibilidade acerca do tempo da lei pode vir a retirar várias empresas da aplicação do artigo 4º, parágrafo único, da recomendação 63 do CNJ? Já pensou nisso, ESPAÇO? Estima-se que, no Estado de São Paulo, são aproximadamente 400 empresas3, de 2010 a 2017 entre Varas comuns e especializadas, que estariam cumprindo suas obrigações remanescentes do plano. O tempo médio, mesmo após a extinção da recuperação judicial, é que os pagamentos novados no plano se posterguem por mais 10 anos, dependendo da classe de credores, segundo dados do 2º Observatório de Insolvência encampado entre outros pelo NEPI da PUCSP. Mas tenho visto cada vez mais esses prazos de pagamento no plano se estenderem.
- Além disso, ressalta o TEMPO, vejo outra questão muito grave acerca da competência do juiz da Vara Empresarial, para rever essas obrigações em fase de exaurimento, pois seu ofício se extingue com a sentença de encerramento. Se entender que a novação é condicionada, essa sentença teria uma natureza constitutiva. Todavia, para o ministro Cueva, bastaria o interregno temporal de dois anos, para o juiz não poder rever essas obrigações e, daí, nesse caso, essa sentença teria um efeito declaratório. Segundo o tempo da lei, outro problema é que muitas dessas empresas também não poderiam fazer nova petição de recuperação judicial, diante da limitação temporal, prevista no artigo 48 da lei 11.101/2005, ou seja, não ter, há menos de 5 (cinco) anos, obtido concessão de recuperação judicial.
Há necessidade de nos afastarmos desse Direito imperativo, em que o judiciário se distancia da realidade social e do fato jurídico. O que adianta uma lei falar em empresa, criar regras e teorias que não terão aplicabilidade? Por que não conceder nova recuperação judicial, ou até melhor, a extrajudicial que trabalha com um prazo temporal menor? Por que não permitir estender para essas empresas a mediação e conciliação via convênio dos Tribunais, como o Cejusc específico para empresas com uma demanda obrigacional concursal4? Por que não flexibilizar o prazo com base na função social do instituto da empresa e de toda a dimensão que ela representa para sociedade, diante de uma situação excepcional? O que resta para essas empresas, então, a falência? Para falência, o juiz da vara empresarial seria competente! Muito peculiar esse sistema do tempo da lei!
Rebate o ESPAÇO:
- A lei é sinônimo de segurança jurídica e eficácia! Temos que tomar cuidado com as decisões proferidas em tempo de pandemia, pois podem se tornar fluidas na pós pandemia. De qualquer forma, essa empresa pode propor ações judiciais no juízo cível, para rever suas obrigações utilizando a teoria da imprevisão.
- Mas imagina a carga do judiciário sem entrar na questão se existe ou não desequilíbrio de obrigação, contesta o TEMPO. E prossegue: - Estamos falando de um Direito concursal e não de relações individuais efêmeras. Há que se destacar essas relações coletivas, em que a empresa cumpre uma função social ao empregar, pagar tributos e, nessa situação específica, ela cumpriu com suas obrigações durante todo o plano de recuperação judicial e agora está no limbo judicial, que o tempo da lei não resolve. Sem falar do tempo de espera dos empregados, credores, da suspensão das obrigações, o tempo para a aprovação do plano até se chegar a um acordo e etc. Todo esse tempo anterior à contagem do termo inicial do artigo 61 da lei 11.101/2005 será desconsiderado? O Direito tem que ser um mecanismo de transformação social! Se o Direito não fosse vivo e atual, não teríamos essa reflexão.
1 Bauman, Zygmunt, 1925. Modernidade Líquida. Tradução, Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, ed., 2001.
2 Publicado no DJe de 11/5/2020.
3 O número de empresas é uma estimativa encontrada com base nos dados apresentados pelo 2º Observatório diante do número de empresas que entraram com a recuperação judicial de 2010 a 2017, considerando o percentual de aprovação dos planos e a subtração da convolação de falência no interregno de 2 anos. Esse número poderá estar sujeito à alteração.
4 Aqui cabe destacar o Projeto Piloto do Centro Judiciário de Conflitos Empresariais do TJ/PR que foi oficializado na Comarca de Francisco Beltrão que permite a autocomposição dos conflitos na fase processual e pré-processual, de autoria do Dr. Pedro Ivo Lins Moreira, seguindo a Recomendação 58/2019 do CNJ.
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*Taíssa Romeiro é foutora em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFF, professora de direito empresarial da UFRRJ, sócia da Romeiro Advogados e da Ad Massa Falida e integrante da Comissão de Direito Empresarial e de Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falência da OAB/RJ.