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A crise do presente e as prioridades permanentes: investimento em ciência, tecnologia e inovação

A falta de entendimento nos últimos anos – por distintos governos, acentuando-se no atual – de que CT&I devem estar entre as prioridades permanentes vai cobrar um preço.

19/5/2020

Não há como enfrentar a crise atual sem reconhecer a essencialidade dos investimentos públicos em Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I). É certo que trabalhar para apagar os incêndios é necessário: ampliar leitos de UTI, adquirir respiradores, kits de EPI e de testagem e os demais insumos médico-hospitalares, de um lado; amparar os grupos sociais mais vulneráveis e evitar a quebradeira generalizada de empresas, de outro. No entanto, retomar imediatamente os investimentos em CT&I é central para respondermos aos desafios sanitários e econômicos suscitados pelo novo coronavírus.

Estudo de Priscila Koller, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), aponta que a tendência de queda do dispêndio do governo federal em pesquisa e desenvolvimento (P&D) sobre o Produto Interno Bruto (PIB) remete a 20151. Trata-se do começo do segundo governo Dilma Rousseff, quando o Brasil entraria em recessão e Joaquim Levy assumiu o Ministério da Fazenda iniciando uma política de cortes de gastos. As políticas de CT&I sentiram na pele.

Em verdade, essa tendência de arrefecimento dos investimentos públicos em CT&I é historicamente observada sempre que há redução de receita decorrente de momentos econômicos de crise2.

No atual governo, não é possível ignorar o flerte do Presidente com posições aparentemente minoritárias no campo científico, que tendem a levar ao isolamento, conforme já reconhecem publicações internacionais3. Em termos práticos, o orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MTIC) foi severamente contingenciado. Em 2019, o MCTIC já tinha a menor previsão orçamentária em 14 anos; como se não bastasse, houve um congelamento de nada menos que 42%, restando apenas R$ 2.9 bilhões para a pasta4.

Enquanto busca soluções imediatas para cuidar dos seus doentes, a Europa, implacavelmente castigada pela covid-19, não deixa de considerar o fomento da inovação como estratégico à superação da crise. Em março, chamada foi divulgada pelo Conselho Europeu de Inovação para financiar tecnologias com potencial de contribuir ao tratamento, teste e monitoramento do vírus. As empresas beneficiadas serão startups e pequenas e médias empresas. Só nessa oportunidade, há 164 milhões de euros prometidos5. O edital tenta endereçar com tecnologia o drama atual e atende o propósito de estimular empresas de menor porte e de base tecnológica.

O Brasil vem atentando para o papel da CT&I para superarmos a crise? Lenta e, talvez, insuficientemente, mas, sim, a ficha começa a cair.

O Conselho Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e o Ministério da Saúde lançaram edital para financiar pesquisas em distintas áreas de combate ao coronavírus. R$ 50 milhões foram reservados6. Voltada para pequenas empresas do estado de São Paulo, a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) estruturaram chamada pública para o desenvolvimento de produtos, serviços e processos inovadores que contribuam na luta contra a covid-19. O financiamento é da ordem de R$ 20 milhões7. A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) publicou edital de R$ 70 milhões para apoiar projetos de pesquisa em áreas como epidemiologia, infectologia e imunologia8. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) divulgou cinco linhas de atuação em vista dos efeitos econômicos do coronavírus. Nenhuma delas é explicitamente voltada para o financiamento da inovação, o que é um erro do banco. Contudo, duas parecem amplas e poderiam contemplar projetos inovadores: a "Mais capital de giro" (R$ 5 bilhões) e a "Linha emergencial – setor de saúde" (R$ 2 bilhões)9. A Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (EMBRAPII) criou canal simplificado para financiar inovações que colaborem no diagnóstico, tratamento ou acompanhamento do vírus. R$ 6 milhões foram disponibilizados, sendo R$ 2 milhões voltados para startups e pequenas empresas10. Embora não envolvam propriamente financiamento, duas regulamentações recentes merecem nota: a portaria referente à lei 13.969/2019, a nova Lei de Informática (Portaria MCTIC 1.294, de 26 de março de 2020) e a Lei da Telemedicina (lei 13.988, de 15 de abril de 2020). 

Esses, dentre outros, são passos importantes que, porém, não devem ignorar uma agenda mais estrutural de retomada do papel do Estado como incentivador e promotor da CT&I, como estabelece a Constituição de 1988 e como fizeram os países que conseguiram alcançar desenvolvimento tecnológico e econômico.

Entre as medidas, precisamos de:

(i) recuperação dos investimentos nas escolas, institutos, universidades e demais Instituições Científicas, Tecnológicas e de Inovação (ICTs) públicas, o que passa não só por recursos para a infraestrutura material, mas também por valorização do professor e do pesquisador público, até para mitigar o êxodo científico (brain drain);

(ii) destinação robusta de recursos aos órgãos de fomento à pesquisa, como CNPq, CAPES e Finep, blindando-os, na medida do possível, das políticas de corte;

(iii) assunção do financiamento da inovação como uma das estratégias centrais da atuação do BNDES;

(iv) reabilitação do debate a respeito da política industrial, notadamente quanto ao Complexo Industrial da Saúde11, a fim de pensar a dinamização tecnológica de setores relevantes aos desafios atuais, mantendo no radar temas como indústria 4.0, inteligência artificial, internet das coisas e 5G12

(v) utilização das encomendas tecnológicas para fomentar o enfrentamento do risco tecnológico pertinente ao desenvolvimento de medicamentos, vacinas e novos materiais;

(vi) busca de mais parcerias entre os setores público e privado, lançando-se mão, por exemplo, dos mecanismos de compartilhamento de laboratórios e equipamentos ou mesmo de capital intelectual de ICTs públicas, previstos na Lei de Inovação;

(vii) ampliação da presença do Estado em ambientes promotores da inovação, como parques tecnológicos e incubadoras, de modo a mapear as necessidades (de amparo financeiro e facilitação burocrática) de empresas de base tecnológica, especialmente startups;

(viii) simplificação do acesso aos incentivos tributários da Lei do Bem, inclusive com alteração legal para que se deixe de exigir lucro real das empresas interessadas, sem prejuízo da discussão acerca de outras formas de estímulo fiscal à inovação;

(ix) manutenção dos investimentos em P&D das empresas estatais;

(x) esforço para a constituição da Autoridade Nacional de Proteção de Dados, reconhecendo-se que, em tempos de distanciamento físico, a economia se torna, ainda mais, movida a dados, que também alimentam boa parte das soluções tecnológicas utilizadas no combate à pandemia, devendo-se coibir abusos e, ao mesmo tempo, refletir sobre como os dados podem contribuir à superação da crise13;

(xi) ações no sentido da inclusão digital (ampliação da oferta de internet gratuita, políticas para a compra de smartphones por pessoas de baixa renda, implantação da identidade digital gratuita14, etc.) e da inclusão financeira (permitindo à população de baixa renda acesso a serviços financeiros – aqui, as fintechs e os caixas eletrônicos multibancos podem desempenhar relevante papel). Tais ações se mostram fundamentais para facilitar o alcance dos benefícios sociais do governo e aquecer as economias locais;

(xii) aproveitamento da inteligência de instituições como o Ipea para desenvolver estudos relacionados aos caminhos, do ponto de vista da inovação tecnológica, que podem ser trilhados para a recuperação econômica.

A falta de entendimento nos últimos anos – por distintos governos, acentuando-se no atual – de que CT&I devem estar entre as prioridades permanentes vai cobrar um preço. Como estamos constatando, optar pelo sucateamento da CT&I sai muito caro.

O Brasil está longe de participar da fronteira tecnológica em numerosos segmentos econômicos. Isso expressa nossa dependência tecnológica. Fruto da herança colonial e do lugar periférico em que nossa economia historicamente se situa, acostumamo-nos a exportar bens primários e importar tecnologia. Esquecemos que garantir investimentos estatais em CT&I é investir em autonomia tecnológica, a partir da dinamização do mercado interno, como consigna o art. 219 da Constituição de 1988. Buscar mais autonomia tecnológica nos dará condições para o enfrentamento da presente crise e das próximas; mais do que isso: é pressuposto para sermos soberanos.

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1 Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2020.

2 Ver os trabalhos de Mansueto Almeida e de Daniel Gelcer, ao tratarem do histórico das políticas de fomento a CT&I. Disponíveis aqui; e aqui. Acesso em: 13 abr. 2020.

3 Ver recentes reportagens da The Economist e do Washington Post. Disponíveis aqui; e aqui. Acesso em: 17 abr. 2020.

4 Disponível  aqui. Acesso em: 13 abr. 2020.

5 Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2020.

6 Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2020.

7 Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2020.

8 Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2020.

9 Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2020.

10 Disponível aqui. Acesso em: 17 abr. 2020.

11 Ver, de Gilberto Bercovici, "Complexo Industrial da Saúde, Desenvolvimento e Proteção Constitucional ao Mercado Interno". Disponível aqui. Acesso em 18 abr. 2020.

12 Ver texto de Jorge Arbache no Valor Econômico, "Temas para a recuperação da economia". Disponível aqui. Acesso em 17 abr. 2020.

13 Alguns documentos internacionais trazem direcionamento importante sobre o tema. Ver o Statement do European Data Protection Board. Disponível aqui. Acesso em: 21 abr. 2020. Para uma lista de guias publicados por autoridades de proteção dos dados de todo o mundo, com a ausência eloquente do Brasil, ver: aqui. Acesso em: 21 abr. 2020. No Brasil, vale consultar o relatório "Privacidade e pandemia", do Data Privacy Brasil. Disponível aqui. Acesso em: 18 abr. 2020.

14 Sobre identidade digital, ver, de Ronaldo Lemos, "Identidade digital é o novo graal". Disponível aqui. Acesso em: 18 abr. 2020.

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*Mário André Machado Cabral é professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e doutor em Direito Econômico pela USP.

*Luiz Felipe Rosa Ramos é doutor em Direito pela USP, com doutorado-sanduíche na Universidade Bielefeld (Alemanha) e Fox Fellow pela Universidade Yale. CIPP/E.

 

 

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