Migalhas de Peso

Em busca de uma agenda positiva para as famílias após a pandemia

A convivência contínua imposta pela pandemia da covid-19 tem motivado a revisão de valores familiares. Relações por vezes estabelecidas de forma rígida, com acordos formalmente definidos e respeitados com muros divisórios nítidos estão sendo repensadas.

15/5/2020

Muito se tem debatido o processo de profundas transformações do direito de família. Da organização familiar matrimonial, de feição patriarcal e autoritária, com relações conjugais indissolúveis em prol de idílica e formal paz doméstica, passou-se a construir o espaço de igualdade entre cônjuges, entre as entidades familiares e, sobretudo, entre os filhos. Almeja-se modelo democrático, em que a condução familiar seja pautada pelo diálogo, pela negociação das regras e planificação conjunta das decisões sobre o presente e o futuro. Como o escopo fundamental do casamento e da união estável é a comunhão plena de vida (art. 1.511 do Código Civil), as pessoas são livres para constituírem a família que lhes realize, pelo tempo que ela cumprir essa função.

A convivência contínua imposta pela pandemia da covid-19 tem motivado a revisão de valores familiares. Relações por vezes estabelecidas de forma rígida, com acordos formalmente definidos e respeitados com muros divisórios nítidos estão sendo repensadas. É tempo de se refletir sobre rearranjos familiares e restabelecimento de regras de convivência, para o redimensionamento das relações afetivas.

Dois são os efeitos negativos mais visíveis que a pandemia tem suscitado nas relações conjugais. O primeiro deles é o aumento da violência doméstica. O enclausuramento, as tensões econômicas e sociais oriundas desse momento acabaram por potencializar as diferenças e intensificar os conflitos familiares, gerando o aumento da violência doméstica. Relacionamentos abusivos, uso de álcool, estresse e ansiedade são facilitadores da prática de violência exatamente no local considerado o mais seguro contra o vírus: a casa.

O segundo efeito da pandemia nas relações conjugais deve ser o crescimento do número de divórcios depois da flexibilização do isolamento social, como aconteceu na China.1 A falsa ilusão da paz doméstica construída no curso de relacionamentos é colocada à prova durante o confinamento social, com proximidade em tempo integral que pode facilitar que as diferenças sejam exaltadas e agravadas pelas incertezas de saúde e da economia. De uma hora para a outra, sem nenhuma preparação, foi necessária a adaptação a esse período de confinamento: home office, filhos sem aula ou com aula on-line (homeschooling) e absorção de todo o trabalho doméstico configuram novo cenário doméstico a ser compartilhado nessa nova realidade. Nesse contexto, a contiguidade pode acabar sendo fator de afastamento.

Por outro lado, esse período de confinamento também tem fortalecido os vínculos afetivos, permitindo o maior diálogo e o compartilhamento de atividades comuns. Entrevê-se, de forma positiva, o resgate do que é realmente importante nos relacionamentos e na família, com a real oportunidade de crescimento da intimidade, da colaboração, do entendimento. Nesse momento em que os valores vêm sendo questionados – em escala individual e mundial – talvez seja mais plausível descartar o que é fútil e priorizar o que é importante para si e para a família. Quiçá esta seja a pauta positiva pós-pandemia: a priorização da família, com a retomada crescente do diálogo, dos jogos e brincadeiras com os filhos e da ampliação desses e de outros momentos lúdicos, como podem se tornar, com alguma dose de sabedoria, algumas atividades do cotidiano, como a arte, a música, a literatura, a culinária. Trata-se de redefinir a gestão da liberdade e do tempo atribuído a outras prioridades, descartando-se, por exemplo, os compromissos sociais desimportantes em favor da maior presença doméstica.

Além disso, nesse período de confinamento, tornou-se clara a importância do cuidado recíproco, que (I) começa com a percepção de que um é responsável pelo outro (o isolamento social traduz essa primeira lição de corresponsabilidade altruísta); e ainda (II) se revela no exercício do apoio recíproco nos momentos de medo e fraqueza, demonstrando que os vínculos familiares são fortalecidos na solidariedade, na cumplicidade e na interdependência.2 É preciso que esses valores sejam exaltados e arraigados para reduzir a violência e, por conseguinte, a vulnerabilidade das mulheres no seio da família, a partir da real consciência social da igual dignidade de todos.

Os riscos da pandemia também têm atingido as relações parentais. Se a proximidade inerente ao confinamento pode gerar problemas conjugais, as repercussões nos vínculos parentais também avultam. A primeira delas, no âmbito dos pais separados, potencializa-se pela dificuldade de diálogo para as novas regras desse período excepcional. Esse comportamento, no entanto, só reforça a necessidade de se investir em outras formas de solução de conflitos para além das tradicionais, por meio da criação e do fortalecimento de abordagem mais dialógica como caminho viável de solução de conflitos familiares, principalmente no âmbito da parentalidade. No entanto, essa rota tem como pressuposto a profunda tomada de consciência pelos pais de seu compromisso conjunto com a criação e a formação da personalidade de seus filhos.

A segunda repercussão, muito comum na pandemia, são pedidos de suspensão da convivência, sob o argumento de que os deslocamentos representam riscos à criança. Se algum dos pais for profissional de saúde, por exemplo, ou se tiver idosos e membros de grupos de risco no núcleo familiar da criança, deve-se, de fato, ter atenção especial à questão, que pode justificar a medida de exceção. Quando a convivência física é suspensa, tem sido determinada que ela se implemente por meios virtuais, de modo que o contato possa ocorrer por ligações de vídeo, áudio ou telefone.

Diante desse cenário, nota-se a insuficiência dos deveres impostos pela autoridade parental para a definição das responsabilidades atribuídas a ambos os genitores. Aliás, a facilidade com que se suspende a convivência familiar demonstra que a igualdade (de importância) dos papéis de pai e mãe na criação e educação dos filhos ainda não está concretamente definida, já que em muitos casos se parte da premissa de que a qualidade do cuidado ofertado pelo pai não é a mesma daquele oferecido pela mãe, independentemente das nuances da hipótese concreta. Por esse motivo, é necessário estabelecer critérios hermenêuticos específicos para a flexibilização desse direito fundamental de convivência familiar (art. 227 da CF), de modo a permitir a atribuição (e, quando preciso, repartição) das tarefas parentais no melhor interesse dos filhos.

A conclusão que se extrai é que os instrumentos jurídicos são insuficientes para promover a implementação do conteúdo da autoridade parental e da guarda compartilhada.3 A rigor, a pandemia apenas intensifica as desigualdades e assimetrias existentes em cada núcleo familiar. A desigualdade entre os gêneros no cuidado com os filhos repercute no alijamento da figura paterna em alguns casos, o que acaba sobrecarregando a mãe e, por outro lado, permitindo a existência de ambiente que facilita práticas de alienação parental.

Diante dessa constatação, a lição para o período posterior à pandemia é a imprescindibilidade de se investir (de modo multidisciplinar) na conscientização quanto ao comprometimento de ambos os pais na criação dos filhos, seja por meio de oficina de pais promovidas pelos tribunais, seja mediante políticas públicas junto a escolas, pediatras e todos aqueles cujos trabalhos são compreendidos no universo infanto-juvenil. Sem esse apoio interdisciplinar dirigido à verdadeira transformação da cultura doméstica, o ordenamento jurídico não conseguirá sozinho – ao que tudo indica – dar conta da tutela integral e prioritária da população menor de idade cujos pais litigam ou não conseguem resolver seus desacordos.

Ainda na agenda futura, uma certa dose de humildade dever ser apreendida pelos profissionais do direito de família, na medida em que se torna evidente a insuficiência de instrumentos jurídicos, por melhor que as previsões legais possam parecer, para o aperfeiçoamento das relações existenciais. Matérias como o sustento da família, a disciplina dos alimentos, a deliberação sobre a administração doméstica e o destino da entidade familiar, a gestão da autoridade parental e da guarda dos filhos (unilateral ou compartilhada), dependem de construção diária que extrapola os limites da disciplina jurídica, exigindo alta dose de altruísmo, responsabilidade para com o outro, solidariedade e empatia, informados por referências afetivas e éticas que não podem ser simplesmente impostas pelo legislador ou pelo Judiciário.

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1 Disponível em: Clique aqui. Acesso em 12.05.20.

2 “O mundo pós-pandemia vai ser um mundo em que os valores feministas vão fazer parte do nosso vocabulário comum. Porque a melancolia que estamos vivendo, da casa, da espera, do medo, da perda, da morte, colocou o desamparo no centro dos debates sobre política e economia. Nunca a economia falou tanto sobre o desamparo quanto agora. E não há salvação se não criarmos mecanismos coletivos de amparo. (...) Essa pandemia colocou como tópico prioritário da agenda a compreensão do mundo – e é aí que está a minha esperança no pós-pandemia, para aqueles que sobreviverem. Deve ser um mundo no qual vamos ter de falar da nossa sobrevivência e da nossa interdependência. Teremos falar de cuidado, proteção social e saúde. Nós acreditávamos na uberização do mundo, que poderíamos ser autossuficientes. Mas as mulheres sempre souberam que não podemos ser autossuficientes, porque todos são filhos de uma mãe, todos precisamos ser cuidados para existir e persistir. Essa pandemia mostrou isso com toda crueldade.” (DINIZ, Debora. Disponível em Clique aqui . Entrevista publicada em 30.04.20)

3 TEPEDINO, Gustavo. A disciplina da guarda e da autoridade parental na ordem civil-constitucional. In: Revista Trimestral de Direito Civil – RTDC. Rio de Janeiro, Padma, ano 5, v. 17, jan./mar. 2004, p. 33-49.

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*Gustavo Tepedino é advogado fundador do escritório Gustavo Tepedino Advogados. Professor titular de Direito Civil e ex-diretor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.

*Ana Carolina Brochado Teixeira é doutora em Direito Civil pela UERJ. Mestre em Direito Privado pela PUC/MG. Professora de Direito Civil do Centro Universitário UNA. Coordenadora editorial da Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil.

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