Tema interessante e que se revela corriqueiro na rotina forense dos profissionais que militam na área criminal cinge-se às prisões preventivas decretadas quase que automaticamente quando do suposto descumprimento de medida cautelar alternativa à prisão.
É consabido que, praticada uma infração penal e efetuada a prisão em flagrante do investigado, cabe ao magistrado, nos termos do art. 310 do CPP, relaxar a prisão ilegal, converter a prisão em flagrante em preventiva ou conceder ao acusado a liberdade provisória.
Sendo a liberdade a regra geral e a prisão processual exceção (ao menos esse é o entendimento que vigora em sede doutrinária1 e perante o STJ2 e o STF3), a concessão da liberdade provisória ao investigado que não acarrete perigo à persecução penal ou à ordem pública (ausência de periculum libertatis) é medida de rigor, cabendo ao magistrado e, desde que presentes a necessidade, adequação4 e proporcionalidade (proibição do excesso)5, fixar, cumulativa ou isoladamente, medidas cautelares alternativas à prisão previstas no art. 319 do CPP.
É importante frisar que tais medidas, por acarretarem restrições a direitos constitucionais de primeira dimensão (direitos de liberdade), somente devem ser estipuladas quando se mostrarem indispensáveis no caso concreto6. Nas palavras de Nestor Tavora et alii7:
Como toda medida cautelar, pressupõem a presença do fumus comissi delicti (indícios de autoria e demonstração da materialidade), que é a justa causa para a decretação da medida, somando-se ao periculum ao regular transcorrer da persecução penal, de sorte que as amarras ao agente caracterizam exatamente a pertinência da constrição às circunstâncias do fato.
Pois bem.
Feitas essas considerações necessárias à contextualização do tema, passa-se ao ponto nodal do presente artigo.
Admitamos que em determinado processo instaurado para apurar suposta prática delitiva, o magistrado, com esteio no art. 319, IX, do CPP, tenha concedido liberdade provisória ao acusado e fixado medida cautelar diversa da prisão, tal como a de monitoração eletrônica.
Ocorre que, em determinado momento do iter processual, a central de monitoramento certifica o descumprimento da medida, sendo os autos remetidos ao parquet com amparo no art. 282, §4º, do CPP que, de pronto, requer a decretação da prisão preventiva do denunciado, pedido acolhido de imediato pelo magistrado com fulcro no art. 312, §1º, do CPP.
Em casos semelhantes ao retrocitado, Tribunais pátrios têm chancelado a decretação da prisão preventiva8, posição que diverge da sustentada neste artigo.
Entendemos que, antes do magistrado concluir pelo eventual descumprimento de medida cautelar e decretar a prisão preventiva, faz-se imperiosa a adoção do contraditório prévio com a respectiva oitiva da defesa, sob pena de nulidade da decisão (art. 563 do CPP e art. 5º, LV, da CF/88) e de risco concreto de que a segregação provisória (que somente deve ser adotada como ultima ratio e quando devidamente comprovados os requisitos legais previstos no art. 312 do CPP) gere prejuízo irreparável ao acusado, expondo-o a um sistema penitenciário que convive com o estado de coisas inconstitucional, tal como reconhecido pelo STF9.
Conforme adverte Rogerio Schietti Cruz, "Justiça penal não se faz por atacado e sim artesanalmente, examinando-se atentamente cada caso para dele extraírem-se todas as suas especificidades, a torná-lo singular e, portanto, a merecer providência adequada e necessária"10.
Assim, constatado suposto descumprimento de cautelar diversa da prisão e apresentada manifestação pelo parquet, compete ao magistrado ("ressalvados os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida"11) intimar a defesa do acusado com arrimo no art. 282, §3º, do CPP, a fim de que apresente eventual justificativa (que pode ser das mais variadas espécies, v.g. defeito do equipamento de monitoramento eletrônico, ausência de sinal de GPS no local da residência do acusado etc).
Referida providência revela-se oportuna e decorre, inclusive, da aplicação do princípio da paridade de armas (par conditio), permitindo que a defesa colabore com a correta aplicação da lei penal.
Nesse sentido, confira-se precedente em que a Segunda Turma do STF, em caso similar ao ora analisado, manteve decisão monocrática que revogou prisão preventiva decretada sem oitiva prévia da defesa do paciente:
Agravo Regimental em Habeas Corpus. Interposição pela Procuradoria-Geral da República.
(...)
4. Prisão preventiva decretada pela 7ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro. Falta de contraditório prévio e avaliação precipitada das alegadas provas de descumprimento da medida cautelar diversa da prisão.
5. Negado provimento ao agravo regimental.
(HC 146666 AgR, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 20/03/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-068 DIVULG 09-04-2018 PUBLIC 10-04-2018)
Na mesma toada, confira-se as seguintes decisões unipessoais proferidas, respectivamente, no âmbito do STJ e do Pretório Excelso: RHC 108.191, rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, DJe 30/4/2019; HC 180.885, rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 7/2/2020; HC 161.351, rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 12/9/2018; HC 133.894, rel. Min. Dias Toffoli, Dje 10/5/2016; HC 129.251-ED, rel. Min. Dias Toffoli, DJe 6/11/2015.
Com o fim de corroborar a argumentação ora defendida, transcreve-se trecho da decisão monocrática prolatada pelo Min. Gilmar Mendes nos autos do HC 176.212 (DJe 2/10/2019), writ no qual o relator concluiu pela necessidade de contraditório prévio e concedeu a ordem para revogar a prisão cautelar:
Desse modo, o presente caso se resolve a partir da ausência de contraditório, referente à acusação de descumprimento das condições da monitoração eletrônica, muito embora nada tenha falado a defesa a respeito.
Era dever do Juízo, antes de tomar qualquer decisão, abrir vista à paciente, para que ela se manifestasse, a fim de estabelecer, assim, o contraditório, até mesmo porque a impetrante afirma que o local em que reside a paciente pode padecer de deficiência no sinal de GPS.
Era o caso, pois, de garantir o contraditório, para, inclusive, apurar a veracidade de tal alegação. (...)
O contraditório prévio não é supérfluo. Nem mesmo a constatação do descumprimento da medida cautelar pessoal enseja sua substituição automática pela prisão preventiva. (...)
A participação da defesa nessa decisão é de todo relevante.(...)
Ante o exposto, nos termos da fundamentação supra, concedo a ordem, para restabelecer a liberdade da paciente, por afronta ao princípio do contraditório.
Dissertando sobre o tema, Rogerio Schietti Cruz preceitua que12:
Vale, por derradeiro, recordar que o descumprimento, pelo acusado, de medida aplicada poderá resultar na decretação da prisão preventiva, como uma espécie de sanção processual (...). Insista-se, como já dito acima, que, ressalvados os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida, o juiz, ao receber o pedido de medida cautelar, deverá atentar para o disposto no art. 282, §3º, do CPP, de sorte a promover o contraditório prévio à decisão. (grifo nosso)
No mesmo diapasão e já em sede de direito comparado, tem-se que o art. 212 do Código de Processo Penal português prevê expressamente que a revogação e a substituição das "medidas de coacção" (semelhantes às medidas cautelares previstas no art. 319 do CPP) serão precedidas de contraditório13.
Ante o exposto e com fulcro no art. 282, §3º, do CPP, resta demonstrado que, ressalvados os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida, o contraditório prévio faz-se necessário quando constatado suposto descumprimento de cautelar alternativa à prisão, a fim de se perquirir (i) se houve efetiva violação da medida, (ii) se tal fato é injustificado e (iii) se a segregação preventiva é de fato necessária (art. 282, §§ 4º e 6º, do CPP).
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1 Cf. PACELLI, Eugenio. Curso de processo penal. 22. Ed. São Paulo: Atlas, 2018. P. 567; LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2014. P. 894/895.
2 RHC 113.778/RS, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 27/11/2019, DJe 17/12/2019.
3 HC 125649, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 21/03/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-168 DIVULG 31-07-2017 PUBLIC 01-08-2017; HC 130298, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 20/10/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-225 DIVULG 11-11-2015 PUBLIC 12-11-2015.
4 Protocolo I da Resolução n. 213/2015 do CNJ.
5 Art. 282. As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se a:
I - necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais;
II - adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado.
6 HC 112.731, rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 28/03/2012; HC 426.558, rel. Min Nefi Cordeiro, DJe 06/12/2017.
7 Curso de direito processual penal. 9. Ed. Salvador: Juspodivm, 2014. P. 819.
8 TJ/SC - HC: 40003033920198240000 Capital 4000303-39.2019.8.24.0000, Relator: Luiz Antônio Zanini Fornerolli, Data de Julgamento: 17/01/2019, Quarta Câmara Criminal; TJ-MG - HC: 10000181274937000 MG, Relator: Flávio Leite, Data de Julgamento: 27/11/2018, Data de Publicação: 05/12/2018; TJ-MS - HC: 14135111220198120000 MS 1413511-12.2019.8.12.0000, Relator: Juiz José Eduardo Neder Meneghelli, Data de Julgamento: 18/11/2019, 1ª Câmara Criminal, Data de Publicação: 19/11/2019; TJ-CE - HC: 06233907820188060000 CE 0623390-78.2018.8.06.0000, Relator: JOSÉ TARCÍLIO SOUZA DA SILVA, Data de Julgamento: 26/06/2018, 3ª Câmara Criminal, Data de Publicação: 26/06/2018.
9 ADPF 347 MC, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 09/09/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-031 DIVULG 18-02-2016 PUBLIC 19-02-2016.
10 Prisão cautelar. Salvador: JusPodivm, 2018. P. 266.
11 Art. 282, §3º, do CPP.
12 ob. cit. P. 191.
13 Artigo 212.º
(Revogação e substituição das medidas)
TEXTO
(...)
4 - A revogação e a substituição previstas neste artigo têm lugar oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público ou do arguido, devendo estes ser ouvidos, salvo nos casos de impossibilidade devidamente fundamentada, e devendo ser ainda ouvida a vítima, sempre que necessário, mesmo que não se tenha constituído assistente. Disponível aqui. Acesso em 29 abr. 2020 (grifo nosso).
__________
*Rodrigo Casimiro Reis é defensor público do Estado do Maranhão. Especialista em Direito Constitucional pela Unisul.