Este texto versa sobre a lei 13.989/20, que dispõe sobre o uso da telemedicina durante a crise causada pelo coronavírus (SARS-COV-2), em vigor desde o último 16 de abril.
Segundo o artigo 1º da lei, a autorização para a mediação da telemedicina é temporária, isto é, “enquanto durar a crise ocasionada pelo coronavírus (SARS-CoV-2)” e, de acordo com o artigo 2º, seu uso é autorizado em caráter emergencial, ou seja, em caráter circunstancial em razão da crise gerada pela pandemia.
Embora a telemedicina tenha sido implementada no Brasil como uma medida alternativa, temporária e emergencial para solucionar a crise sanitária promovida pela pandemia decorrente do avanço mundial do vírus acima nomeado, observa-se que essa modalidade de oferta da medicina tem muito mais a oferecer, pois por meio dela os profissionais da saúde têm demonstrado poder alcançar um maior número de pessoas/pacientes e nos lugares mais distantes e/ou de difícil acesso.
Elenca-se como outros benefícios a redução dos custos com saúde, no que se incluem o transporte e a estadia, que seriam suportados por muitos dos consumidores (pessoas/pacientes) caso tivessem que se deslocar de suas residências para obter um atendimento médico; a segurança alcançada, visto que a modalidade está permitindo que se evite o contato e, por conseguinte, o contágio pelo coronavírus; e, finalmente, a disseminação do conhecimento, o que proporcionará um avanço ainda maior da medicina.
No artigo seguinte, o legislador traz sua compreensão do objeto da lei em questão: “Entende-se por telemedicina, entre outros, o exercício da medicina mediado por tecnologias para fins de assistência, pesquisa, prevenção de doenças e lesões e promoção de saúde.” (art. 3º)
Nessa definição fica excluído o entendimento de uma atividade meramente coadjuvante assim como fica ampliada a compreensão trazida pela resolução CFM 1.643/02 e pela portaria MS 467/20. Compreende-se, portanto, que o artigo 3º da lei 13.989/20, engloba todo o avanço tecnológico e possibilita a utilização de todo o conhecimento em tecnologia disponível, desde aparelhos computacionais até os equipamentos eletrônicos e mecânicos.
Assim, a lei dá maior efetividade à telemedicina com vistas à promoção da saúde e, assim, vai ao encontro dos preceitos constitucionais, como consta do artigo 196 da Constituição Federal: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Na perspectiva do acesso universal e igualitário, seu artigo 5º admite a atuação do Sistema Único de Saúde (SUS) e da iniciativa privada na oferta de saúde por meio da modalidade em questão. Sendo assim, na hipótese de as instituições de saúde da rede estatal não comportarem a demanda, o Estado pode fazer uso dos serviços oferecidos pela iniciativa privada conveniada com o SUS a fim de aumentar e complementar a sua atuação em favor da saúde da população.
Nos termos da portaria MS 467/20, anteriormente publicada, a telemedicina abarca toda a tecnologia da informação, pois contempla “o atendimento pré-clínico, de suporte assistencial, de consulta, monitoramento e diagnóstico, por meio de tecnologia da informação e comunicação, no âmbito do SUS, bem como na saúde suplementar e privada.” (port. MS 467/20, Art. 2º).
Já o Conselho Federal de Medicina (CFM) restringe sua abrangência ao conceituá-la como “[...] o exercício da Medicina através da utilização de metodologias interativas de comunicação audiovisual e de dados, com o objetivo de assistência, educação e pesquisa em Saúde.” (res. CFM 1643/02, Art. 1º) As “metodologias interativas de comunicação audiovisual e de dados” referem-se apenas aos meios físicos usados (hardware) e, portanto, não alcançam a tecnologia que pode estar abarcada ou utilizada.
Trata-se, como se vê, de um conceito bem conservador, pois o CFM, ao não vislumbrar todas as possibilidades e o alcance oferecidos pela telemedicina para a prestação dos serviços de saúde, a reduz a três áreas importantes da área – a assistência, a educação e a pesquisa em Saúde –, o que não é tão abrangentes como poderia ou deveria ser.
Cabe, agora, uma discussão indicativa sobre o exercício da telemedicina, objeto tanto da lei em questão, a 13.989/20, quanto da resolução CFM 1643/02. Essa atividade, entendida como o exercício da medicina com a mediação de tecnologias, deve ser regida pelas disposições da lei 12.842/13, que ordena, inicialmente, sobre o objeto de atuação do médico e, em seguida, sobre sua atitude no exercício da medicina. De acordo com o artigo 2º, o “objeto de atuação do médico é a saúde do ser humano e das coletividades humanas” e, em seu favor, o médico deve agir “com o máximo zelo, com o melhor de sua capacidade profissional e sem discriminação de qualquer natureza.”
Segundo a nova lei, este exercício pode, agora, ser praticado com a mediação de tecnologias. Isso significa, se considerada a resolução CFM 1643/02, que poderá ser utilizada toda a tecnologia da informação atualmente disponível, desde que nesse uso sejam observados os requisitos de segurança estabelecidos em conformidade com os padrões normativos e éticos usuais do atendimento presencial.
A infraestrutura tecnológica a suportar essa modalidade de oferta de saúde é descrita no artigo 2º da mesma resolução, ipsis litteris:
Os serviços prestados através da telemedicina deverão ter a infraestrutura tecnológica apropriada, pertinentes e obedecer às normas técnicas do CFM pertinentes à guarda, manuseio, transmissão de dados, confidencialidade, privacidade e garantia do sigilo profissional. [grifo nosso].
Além disso, esses serviços podem ser prestados por pessoas físicas ou jurídicas, cada um em seu âmbito de atuação e, ao mesmo tempo, complementando-se. Pessoas físicas referem-se a médicos, isto é, a pessoas graduadas em curso superior de Medicina reconhecido pelo Ministério da Educação, conforme determina a lei 12.842/13:
A denominação ‘médico’ é privativa do graduado em curso superior de Medicina reconhecido e deverá constar dos diplomas emitidos por instituições de educação superior credenciadas na forma do artigo 46 da Lei nº 9394, de 20 de dezembro de 1996, [...].
A atividade desse profissional da saúde é definida, pelo CFM, como “todo procedimento técnico-profissional praticado por médico legalmente habilitado e dirigido” para duas áreas: a promoção da saúde e a prevenção, seja ela primária (ocorrência de enfermidades ou profilaxia), secundária (evolução de enfermidades ou execução de procedimentos diagnósticos) e/ou terciária (invalidez ou reabilitação dos enfermos) (cf. res. CFM 1.627/01, art. 1º).
No outro âmbito da oferta da telemedicina encontram-se as pessoas jurídicas. Segundo o artigo 5º da resolução CFM 1.643/02, as credenciais da pessoa jurídica para a prestação desse serviço, são: a responsabilidade técnica de um médico regularmente inscrito no conselho e quadro funcional constituído de médicos, bem como seu registro no Cadastro de Pessoa Jurídica do Conselho Regional de Medicina do estado onde a referida pessoa jurídica esteja situada.
Essas medidas, tanto no âmbito da pessoa física quanto no âmbito da pessoa jurídica, têm a função precípua de garantir o sigilo e a confidencialidade na relação médico-paciente, além da qualidade de atendimento e segurança das partes, evitando-se fraudes e o vazamento de informações que são de interesse único do médico e do paciente.
Como já apontado, a lei 13.989/20 autoriza o uso da telemedicina apenas em caráter emergencial e enquanto durar a crise ocasionada pelo coronavírus (SARS-CoV-2). Apesar desse caráter (temporário e emergencial), os médicos não podem eximir-se de suas responsabilidades de prestar todos os esclarecimentos devidos ao paciente acerca das restrições impostas por este modelo de prestação de serviços médicos. Assim, nos termos de seu artigo 4º, é dever do médico esclarecer ao paciente todas as limitações inerentes ao uso da telemedicina, considerando a impossibilidade de realização de exame físico durante a consulta.
No artigo 5º, da lei em comento, fica estabelecido que a prestação de serviço nessa modalidade de medicina deve seguir os padrões normativos e éticos habituais do atendimento presencial, inclusive em relação à contraprestação financeira devida pelo serviço prestado. Aqui o legislador prevê possíveis embates judiciais pelo custeio ou pagamento dos serviços prestados e se antecipa indicando as responsabilidades: o ônus da prestação de serviços médicos através da telemedicina cabe ao seu prestador, seja ele o público ou o privado.1
Dessa forma, não cabe “ao poder público custear ou pagar por tais atividades quando não for exclusivamente serviço prestado ao Sistema Único de Saúde (SUS)” (lei 13.989/20, art. 5º). Isso significa que o governo não se responsabilizará pelas despesas decorrentes da prestação de serviços de telemedicina oferecida na rede privada, pois não há participação do governo e as instituições que prestam serviços particulares têm fins lucrativos e só atendem pacientes por meio de pagamento direto.
Conclui-se esse texto com três observações. Apesar do caráter temporário e emergencial da implementação da telemedicina no Brasil, a lei 13.989/20 veio tanto para solucionar o vácuo regulatório existente, quanto para firmar conceitualmente o que, de fato, seja a prestação de serviços de telemedicina.
Em segundo lugar, a lei veio definir os padrões normativos e éticos que devem ser utilizados nesse tipo de atendimento e delimitar as responsabilidades dos custos, o que traz segurança para todos os envolvidos, ou seja, para a sociedade de forma geral, como também para os profissionais da saúde, pois cada parte envolvida sabe exatamente o que dela se espera no exercício da medicina mediado por tecnologias.
E, finalmente, o exercício da lei vem deixando claro que cabe à autoridade competente em seus diversos níveis – o governo, o CFM etc. – a responsabilidade de avaliar a eficácia dos serviços de saúde prestados por meio da telemedicina, considerando itens como a) os dados decorrentes e colhidos de sua atuação na atual pandemia, e b) os horizontes abertos pela necessidade ora imposta que levou a saúde pública e privada a criar meios alternativos de socorro a todos os cidadãos que dele necessitem, de forma eficiente e segura.
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1 O atual sistema de saúde no Brasil está fundamentado na premissa da Constituição Federal de 1988, que expressa a saúde como um direito de todos os brasileiros e pode ser dividido em dois subsistemas: o público e o privado. O público é representado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e o privado é dividido em dois subsetores: o subsetor saúde suplementar (serviços financiados pelos planos e seguros de saúde, predominantemente) e o subsetor liberal clássico (composto por serviços particulares autônomos). (BRASIL, 2007)
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BRASIL. Lei 13.989/20, de 16 de abril de 2020. Dispõe sobre o uso da telemedicina durante a crise causada pelo coronavírus (SARS-CoV-2). Brasília: DOU, 2020. Disponível clicando aqui. Acesso em: 16 abr. 2020.
BRASIL. MENSAGEM 191, DE 15 DE ABRIL DE 2020. Dispõe sobre o Veto Presidencial do Parágrafo único do art. 2º e do Art. 6º, ambos da lei 13.989/20. Disponível clicando aqui. Acesso em: 17 abr. 2020.
BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Saúde Suplementar. Brasília: CONASS, 2007.
BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Regulação em Saúde. Brasília: CONASS, 2007.
BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988, de 5 de outubro de 1988. Brasília, DF. Disponível clicando aqui. Acesso em: 17 abr. 2020.
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM 1.643/02. Define e disciplina a prestação de serviços através da telemedicina. Disponível clicando aqui. Acesso em: 17 abr. 2020.
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM 1.627/01. Define o ato médico. Disponível clicando aqui. Acesso em: 17 abr. 2020.
DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO. DESPACHOS DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA, DE 15 DE ABRIL DE 2020. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Veto Presidencial. Disponível clicando aqui. Acesso em: 17 abr. 2020.
MINISTÉRIO DA SAÚDE. Resolução CFM 467, de 20 de março de 2020. Dispõe, em caráter excepcional e temporário, sobre as ações de telemedicina, com o objetivo de regulamentar e operacionalizar as medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional previstas no art. 3º da Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, decorrente da epidemia de COVID-19. Disponível clicando aqui. Acesso em: 17 abr. 2020.
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*Lucimer Coêlho de Freitas é advogada securitária associada à Jacó Coelho Advogados. Tem especialização em Direito Público (Direito constitucional e Direito Administrativo) pela PUC/GO; MBA Gestão de Seguros e Resseguro (Executivo), e MBA Gestão Jurídica de Seguro e Resseguro, ambos pela FUNENSEG. É doutoranda em Ciências Jurídicas pela UMSA – Universidad del Museo Social Argentino (Argentina).