Migalhas de Peso

Mando e desmando

A consequência política natural foi, inevitavelmente, a inversão dos papeis, na configuração representativa do Estado, por força da qual aos comandos dos súditos se transfere a hegemonia das funções estatais.

13/5/2020

A mais singular conquista ocidental, no plano político-constitucional, se deve à afirmação da separação dos Poderes do Estado.

O absolutismo inicia sua derrocada, com a desconcentração das funções estatais, antes monopólio dos monarcas.

Nada melhor para relembrar e imaginar o poder dos déspotas do que a imemorial frase de Louis XIV, Roi Soleil, “L’état c’est moi”, ideologia que representada a hipertrofia ególatra da pessoalização na condução da vontade do Estado, em cujas fronteiras prevalecia a serventia à nobreza e ao clero, sem qualquer vestígio de cidadania, direito sem previsão legal.

Com o exaurimento do modelo absolutista, perdulário e iníquo, as luzes da razão iluminariam os novos tempos em que se pautaria a relação Estado e povo, com a introdução gradual dos valores que passariam a ensaiar a cidadania, categoria fundamental na composição e organização da democracia.

A consequência política natural foi, inevitavelmente, a inversão dos papeis, na configuração representativa do Estado, por força da qual aos comandos dos súditos se transfere a hegemonia das funções estatais.

Os súditos, agora povo com direitos políticos, se transformam em soberanos, a cujos interesses o Estado deve, exclusivamente, atender, em especial, ao que concerne ao exercício desconcentrado dos poderes estatais.

Ainda imberbe, surge, no horizonte dos Estados contemporâneos, a sonhada e desejada fórmula que consolidou a independência e a harmonia dos Poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário. Concebeu-se a melhor democracia, sem paralelo na história da humanidade, que nem os gregos sonharam.

A democracia é o mais poderoso regime jurídico contra os abusos, porque é o próprio povo que legitima o funcionamento dos Poderes do Estado. Existem para municiar a cidadania com instrumentos aptos a combater os desvios daqueles que se investem de mais poder do que lhes confere a Constituição.

Aliás, a democracia, o mais plural modelo de participação popular na vida estatal, vai além, haja vista que não tolera os atos ilegais ou ilegítimos praticados pelos que se imaginam travestidos de vetustos príncipes no exercício de uma competência do Estado.

No plano interno, agoniza-se o perfeito funcionamento dos Poderes da República, em face de crises relacionais, com conflitos sustentados pelo casuísmo constitucional.

No momento de crescente polarização política, atiça-se a intervenção do Poder Judiciário na competência dos poderes Executivo e Legislativo.

Se não bastasse a incomensurável crise econômica e social, agravada pela paralisação das atividades produtivas e laborais, os Poderes da República trocam insultos visíveis, ocultos ou oclusos.

A insensatez tem dominado o cenário nacional, tomado por indelicadas investidas contra a Constituição da República, notadamente no que diz respeito às atribuições institucionais de cada Poder.

O Supremo Tribunal Federal, expressão máxima do Poder Judiciário, tem exibido afoitamento incomum na história da Corte, ao adentrar na competência dos demais Poderes, em substituição ao Legislativo, pelo ativismo na construção de preceitos imprevistos no sistema legal e pelo intervencionismo na esfera de competência do Executivo, com a mitigação do exercício de suas funções sob a conjugação de interpretação constitucional que não consegue mascarar o viés abusivo.

A mais recente decisão do STF, ao embaraçar a competência do Poder Executivo, se resume em sobrestar a eficácia de ato administrativo da lavra do presidente da República, pelo qual se preenchia o cargo do diretor-geral da Polícia Federal.

A premissa clara que ressalta na decisão monocrática é inquestionável. Houve intervenção do Poder Judiciário no Poder Executivo.

Em qualquer senso analítico jamais se poderia negar que a decisão monocrática do Judiciário esvazia a eficácia do ato administrativo – nomeação para o exercício do cargo público – e, portanto, significa interferência no Executivo.

Somente a irracionalidade seria capaz de dizer que inexistiu ato de controle ou de incursão do Poder Judiciário no Poder Executivo.

A questão, contudo, se justifica na investigação segundo a qual a interferência fora constitucional ou inconstitucional, à luz da limitação de competência de cada Poder.

A decisão do STF é constitucional ou inconstitucional?

O ato de nomeação foi constitucional ou inconstitucional?

Errou o STF? Ou errou o Executivo?

Há ilícito no ato de gestão, no exercício do poder hierárquico, praticado pelo chefe do Poder Executivo, ao nomear um agente público?

A primeira providência para responder às indagações consiste em verificar a presença dos requisitos do ato administrativo, praticado pelo chefe do Poder Executivo.

A mais elementar exigência quanto à validade do ato administrativo diz respeito à competência do agente público.

Longe de merecer dúvida, assegura-se que o Presidente da República dispunha de competência administrativa porque recebeu da lei poder exclusivo para nomear o diretor-geral da Polícia Federal (art.1º do decreto 73.332/73).

O cargo é de livre escolha do Presidente da República!

A nomeação fora feita em ato de gestão, próprio de provimento de cargo administrativo, pelo qual se exteriorizou e se publicou.

A forma, por conseguinte, fora, perfeitamente, observada!

A finalidade do ato administrativo evidenciava-se na impostergável necessidade de preenchimento de cargo de importância essencial.

Cabe lembrar que Polícia Federal exerce papel primordial na segurança pública, como órgão de Estado (art.144, I, da CR), certamente o mais estratégico e importante

Em relação ao mérito do ato administrativo, cuida-se de atributo indelegável da Administração Pública, razão por que, segundo as tradições doutrinária e jurisprudencial, interdita-se o Poder Judiciário a chafurdar, subjetivamente, as razões que motivaram a escolha do agente público.

Trata-se de competência privativa da Administração Pública, autoridade única na construção do mérito de sua vontade, insuscetível de controle pelo Poder Judiciário.

Ao Poder Judiciário se interdita o ingresso na esfera de competência exclusiva da Administração Pública, exceto nos casos em que o ato se revela, objetivamente, inconciliável com a Constituição da República e das leis nacionais.

A escolha e a nomeação de agente público quando a lei define, objetivamente, a competência da autoridade encarregada de promovê-las, não podem ser desafiadas por outro Poder, principalmente se o enfrentamento invoca argumentos subjetivos, porque não têm fundamento legal para enfronhar-se na seara da presunção de legitimidade do ato administrativo, se a investida for direcionada ao núcleo do mérito.

Recorde-se que o poder hierárquico se exerce verticalmente entre os Poderes da República, jamais horizontalmente ou com cruzamento na alçada de cada competência administrativa.

Cada Poder se acha investido de sua competência, insuscetível de usurpação ou de delegação, porque jamais prevista na legislação.

As escalas de organização de competência operam no âmbito de cada Poder, porque a independência e a harmonia foram consequência da ruptura com o modelo absolutista, a mais importante do povo na história da humanidade.

A independência não comporta, certamente, o exercício absoluto ou totalitário de cada Poder, sem que o molejo constitucional atue para contemporizar e equacionar os limites de cada comando.

As garras intervencionistas e ambiciosas devem ser, de pronto, amputadas e rechaçadas, sempre que um Poder fizer leitura da Constituição da República inconsonante com a fiel compreensão literal quando o tema for competência.

Em matéria de competência, há abuso quando se vale de hermenêutica que supera a literalidade do comando constitucional para fincar supremacia de um Poder em detrimento do poder que cabe a outro Poder, por vontade do constituinte.

Haveria, por conseguinte, mutilação do poder que o constituinte confiou ao Poder para a prática ou produção de atos jurídicos, sob a forma de ato administrativo, ato judicial ou ato legislativo.

O exame de abuso de poder, por excesso de poder ou desvio de finalidade, somente pode ser encarado pelo Supremo Tribunal Federal, em relação a atos dos chefes do Poder Executivo ou Poder Judiciário, quando houver ilegalidade ou exercício anômalo da competência, análise limitada à confrontação objetiva, sem espaço para a introdução de inferências subjetivas.

Certamente, foge da competência do Poder Judiciário, com supedâneo em construções subjetivas, especulativas e presuntivas, sem permissão da Constituição da República, a investida contra ato administrativo para apurar-se no futuro a sua inidoneidade.

Veda-se ao STF a prerrogativa de prospectar, sob o alento da suposição ou pressuposição, o abuso de poder, como simples edificação teorética, quanto mais pejada de subjetividade, especulação e individualidade do juiz.

Ora, a regra do art. 97 da Constituição da República exige a colegialidade, o voto da maioria absoluta dos membros dos tribunais ou dos membros do respectivo órgão especial, para a declaração de inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo de Poder Público.

Logo, a Constituição da República desautora a decisão monocrática, ainda que com natureza de tutela cautelar, a qual esvazie a qualidade jurídica do ato administrativo que goza da presunção de legalidade e de legitimidade, especialmente quando editado pelo chefe do Poder Executivo, a mais alta autoridade da Administração Pública.

Ato emanado do presidente da República, legítimo e constitucionalmente investido no cargo, reforça, ainda, a presunção de boa-fé, salvo se desdenha da Constituição Federal ou da lei de maneira objetiva.

No particular, o Supremo é supremo apenas no adjetivo, eis que, no substantivo, não está sobre o supremo poderes dos outros Poderes.

Sob as regras constitucionais, ao STF jamais se conferiu a categoria de Poder supremo, embora, ultimamente, o poder político da corte tenha se agigantado com experiências no neoconstitucionalismo.

O poder político do STF é extremamente perigoso porque, ao perder a colegialidade, permite que um juiz advogue entendimento calcado na sua jurisdição valorativa, em obséquio à sua idiossincrasia, como modelo de achar como a justiça é para ser feita, e não como deve ser feita, segundo a Constituição Federal.

O enfrentamento de questões políticas empurra o STF ao campo minado de ilegalidades constitucionais, em cujo terreno somente os excepcionais constitucionalistas sabem pisar sem malferir o Poder dos outros Poderes e, por conseguinte, a Constituição da República. 

Nada mais do que a corte mais importante na pirâmide constitucional brasileira tem produzido decisões que levam à falência a segurança jurídica, além de repercutir aberrante violação à independência dos Poderes.

Os estudiosos e acadêmicos devem ter análises e trabalhos mediante os quais se demonstra que, depois da Constituição da República, a ineficiente, na colheita de seus resultados, e constituição cidadã, no dizer de Ulysses Guimarães, o Senhor das Diretas-Já – movimento político-social que lutou pela reconciliação democrática do Brasil – o STF foi o Poder que, ao fazer o protagonismo político, cometeu mais agressões à Constituição Federal no quesito independência dos Poderes.

Apenas como ressalva, sublinhe-se que, em matéria de invalidação dos atos administrativos, coabitam a competência da Administração e a do Poder Judiciário.

Chama-se controle dual da qualidade jurídica do ato administrativo, com a ressalva segundo a qual cabe ao Poder Judiciário examinar apenas os aspectos relacionados à legalidade, haja vista que, em questão de conveniência, oportunidade, forma, conteúdo, finalidade, motivo, o controle se restringe à administração.

Mas, em se tratando de legalidade do ato administrativo, o controle compete à administração e ao Judiciário, e, pelo princípio da unicidade jurisdicional ou da inafastabilidade da jurisdição, com a última palavra. 

Assim, a única hipótese em que se admite o controle do ato administrativo pelo Poder Judiciário é a de que se comprime à legalidade, em que insere a legitimidade pela obediência aos princípios do interesse público, da moralidade, da razoabilidade e da finalidade.

No mais, qualquer outra intervenção é inconstitucional, notadamente aquela realizada sob a busca do mérito administrativo.

E mais: no campo da competência, toda construção que vise à interpretação da Constituição da República não se dissocia do princípio que fortalece a independência dos Poderes.

Ocorre, contudo, que, nos últimos tempos, o Supremo Tribunal Federal ensaia movimentos grosseiros, autoritários e infiéis à Constituição da República, especialmente em matéria de competência e independência dos Poderes.

O STF se acostumou a exercer competências extravagantes, extraordinárias e anômalas, quando invade a esfera de atribuições que, por vontade do constituinte, foram definidas com inquestionável objetividade.

O maior problema do exercício de uma competência indesejada pelo constituinte é a de transformar um Poder da República em um poder capaz de tutorar vontade legítima de outro Poder, cuja fonte está na Constituição da República.

Ora, se há uma competência explícita para a prática de um ato administrativo, é, manifestamente, descomunal a invasão do Poder em outro Poder, para esvaziar a eficácia do ato, como se um Poder estivesse com as credenciais constitucionais para aparar o desejo de quem se encontra investido da própria competência.

A nomeação de um subordinado no âmbito de qualquer Poder cabe a quem a Constituição reservou a legitimidade, sem que um Poder possa intervir para desautorar a competência.

Mas, a competência é um segredo explícito, porque um Poder, ao suspender o ato praticado por outro Poder, se põe, de logo, na invasão de competência.

E a invasão de competência consiste na mais importante ideologia que justifica a independência dos Poderes.

E, no quesito de competência, o STF tem se esforçado para abusar na construção da fantasia de seus poderes, ao transformar a Constituição da República numa cartilha manualizada pelo sentimento individualista do juiz que, autoritariamente, invade a autoridade de outro Poder.

O Supremo Tribunal Federal se põe acima dos outros Poderes, porque Poder algum controla seus eventuais desatinos, e o Conselho Nacional de Justiça não tem competência para controlá-lo.

Talvez, seja esse sentimento majestático que contamine o juiz do STF, de tal sorte que se imagine investido de um comando supremo, jamais disposto à submissão e ao questionamento da Constituição da República.

Ora, a Constituição da República é, antes de mais nada, a expressão do sentimento de legalidade do povo, ninguém mais legitimado para reconhecer o certo do errado e o justo do injusto.

Ressalte-se que se fala aqui da constituição do povo, em tese fruto da vontade do povo, cujos princípios devem ser preservados, diferentemente do fundamentalismo constitucional, devoto e escravo da imobilidade interpretativa.

A perseguição à legalidade exercida pelo Supremo Tribunal Federal adotou estrada constitucional diferente daquela reconhecida e pretendida pelo povo, porque em muitas das quais fez experimentos com a inconstitucionalidade, num claro jogo político em que se sobressaia o uso indevido do poder, quase viciante pelo contágio da autocracia.

À fragilidade dos Poderes Executivo e Legislativo, instáveis e inseguros, sobrou o vazio institucional, preenchido pelo Supremo Tribunal Federal, que gostou da legitimação política, que veio nos momentos em que teve de arbitrar competências próprias dos demais enfraquecidos Poderes.

O guardião constitucional, com as fronteiras abertas pela baixíssima qualidade da representação política, se fortaleceu para, como um falcão, enxergar as presas fáceis, dispostas no espectro político.

O curioso é que não foi programado! Um órgão até então tímido, desconhecido, passou a ser conhecido e, depois, alvejado pela insatisfação resultante de sua manifesta atual política.

A partir de então, o povo passou a desconfiar dos três Poderes.

Coitada da República!

Mas, é inadmissível a tentativa popularesca de deslegitimação do Supremo Tribunal Federal, mesmo que se fortalecida com a incapacidade de a corte reconhecer, ao longo de décadas, a composição política que fez do Estado o extrativismo de riquezas patrimonialistas.

A incapacidade ou a demora de o Judiciário castigar os criminosos políticos e os políticos criminosos, cobrado pelo povo, contaminado pelas vozes inconscientes das ruas, escurecidas por brigadas coléricas, que se dividem entre o bem e o mal, sob a falsa dicotomia do certo e do errado, aprofundou a crise que também se instalou no STF.

A partir de 1988, as nomeações do Supremo, fruto do jogo oculto ou ocluso do compadrio, ficaram escancaradas, influenciadas pela ideologia de que o juiz é o experimento de um poder que consolida a dicção do direito segundo a conveniência da própria escolha.

Assim, lamentavelmente, o STF se perdeu na teia de suas contradições políticas, interessadas em defender a escolha dos escolhidos, sem que alguém ousasse a desconfiar do jogo protecionista do favoritismo.

O STF deveria ser o último ambiente de construção política de suas composições.

Não é por menos que, na primeira vez na história, a mais alta corte da justiça brasileira se submete ao exame caricato, redundante de opiniões populares que extremam em negar a honestidade dos julgamentos.

Há algo mais do que errado na funcionalidade do Poder Judiciário, cada vez mais desacreditado porque se alimentou da força oculta do poder político ao qual deve obediências, salvo se for descortês com os compromissos.

O excesso de poder, sob a caricata figura perdulária de juízes que se comportam como seres inalcançáveis, cansou a tolerância de quem vê nas decisões caminhos tortuosos, confusos e descompromissados com as regras objetivas postas na CF e nas leis.

O preço é caro em face a desfuncionalidade de um Poder em torno do qual orbita uma falsa supremacia, sem voto e, agora, sem povo.

_________ 

*Luis Carlos Alcoforado é advogado formado pela UFRJ (1985) e fundador de Alcoforado Advogados Associados.

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