Para os problemas que enfrenta, o tempo atual exige respostas ágeis e eficientes. O mundo é um rio que se move rápido e constante. E muitas vezes, por não acompanhar o curso das mudanças, o Direito perde-se no caminho. Acaba subscrevendo, à retidão de outrora, a injustiça da atualidade.
Mas mudar o Direito não é fácil. Que seja assim é até compreensível. E desejável. Afinal, a mola da estabilidade deve ela própria ser estável.
Como então compatibilizar, com o mundo de transformações contínuas, com a dinâmica do Direito e as necessidades das pessoas?
Acreditamos que as fontes mediatas oferecem a resposta. Mais do que nunca Doutrina e Jurisprudência se revelam de suma importância. Não estamos advogando por interpretação alternativa do Direito, muito menos ativismo judicial. Nesses dois conceitos residem dois perigos.
As fontes mediatas, especialmente a Jurisprudência, fornecem elementos de transformação da aplicação do Direito. Sua renovação, porém, não viola as próprias bases; pelo contrária, conserva-as e as revigora também.
O dinamismo na estabilidade: o melhor dos mundos.
Claro, não há novidade alguma nisso. O professor Miguel Reale pensou bem a respeito da tríade fato-valor-norma, e as fundiu, colocando-as em interdependência, em triangularidade dialética, na famosa Teoria Tridimensional do Direito.
Contudo, apesar da clareza de seu pensamento, a resistência ao novo continua a mostrar força do Direito, e isso não em nome das belezas da tradição, mas por um atavismo bem pouco compreensível.
De todo modo, há um forte sentimento em todo o mundo que o Direito não pode mais premiar devedores inadimplentes de má-fé.
É bem verdade que a teoria do capitalismo humanista inspira um olhar benevolente em muitas situações, mas só se deve cogitá-la quando há, inegavelmente, situações contextuais desfavoráveis aos devedores e, muito importante, o signo da boa-fé.
Do mesmo modo, existe a preocupação crescente com a tutela dos legítimos interesses do credor insatisfeito, sobretudo quando confrontado com o devedor de má-fé.
E nessa preocupação também há elementos do capitalismo humanista e da inteligência econômica do Direito, cevada na Escola de Chicago.
Esta visão econômica tem em mente o pragmatismo nas soluções das controvérsias, o binômio custo-benefício e, dentro das questões pontuais, a defesa de algo maior, contextual. Em outras palavras: partindo-se de uma visão macro, enxerga-se diferentemente o micro.
Por isso, inegável a importância de ir além do formalismo pelo formalismo e inculcar, também no sistema processual civil, texturas mais sociais, orgânicas e até filosóficas.
Pensamos que mecanismos como a desconsideração da personalidade jurídica e a inclusão dos sócios, pessoas naturais, nos polos passivos dos litígios em geral, mesmo que em fases avançadas das respectivas marchas processuais, é um caminho justo, ordenado, imprescindível para a materialização da Justiça e para que o credor veja seu direito verdadeiramente respeitado.
Tal convicção acentua-se ainda mais forte quando se tem, no caso concreto, a dissolução da sociedade por insolvência. Trata-se de algo comum e uma espécie de uso indevido, abusivo, das regras legais.
Nem se faz necessário o socorro ao princípios ferais e fundamentais, ao cabedal filosófico do Direito, para se afirmar que o torto não lhe cai bem e não pode de modo algum ser consagrado.
Daí a necessidade de se ir além, de se permitir soluções que se não são exatamente ortodoxas, também não são incomuns, muito menos erradas.
O espírito do Direito contemporâneo e, em especial, do novo Código Civil autoriza isso e permite pensar em eficácia efetiva das decisões judiciais. Aliás, a harmonização do Codex processual e do Código Civil, este ainda relativamente novo, também, muito aproveita para o que ora se propõe: um olhar de justiça, bem acima do formalismo pelo formalismo.
Vejamos:
Atualmente, entende o Superior Tribunal de Justiça que o fechamento irregular da pessoa jurídica, em estado de insolvência, não é requisito hábil para deferir o incidente de desconsideração da personalidade jurídica. O que impossibilita redirecionar a cobrança aos sócios que compõem a Pessoa Jurídica.
O Poder Judiciário para deferir a desconsideração da PJ adotou como regra a teoria maior, fundamentada nas relações civis e a teoria menor, amparada nas relações de consumo. Outras possibilidades, tratadas ao rigor de regras consumeristas, trabalhistas e de meio ambiente, não são objetos do nosso presente estudo.
Mas é um tema que merece reanálise, utilizando alguns parâmetros do próprio Código Civil.
Como mencionado a insolvência e o fechamento irregular da empresa não são requisitos suficientes para desconsiderar a personalidade jurídica. Ao requerente é preciso comprovar o abuso, desvio de finalidade ou confusão patrimonial, conforme o art. 50 do Código Civil.
O parágrafo 1° do artigo nos ensina: o desvio de finalidade é utilização dolosa da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e praticar ilícitos de qualquer natureza, contratual ou extracontratual.
Eis a complicação. O fechamento irregular de uma pessoa jurídica nada mais é do que um ato ilícito a afrontar diretamente o artigo 51 do Código Civil, no qual se encontram de forma clara as etapas necessárias para o encerramento da pessoa jurídica:
Em primeiro lugar a dissolução, a ser averbada na Junta Comercial competente;
Em segundo lugar a liquidação, momento do acerto entre devedores e credores;
Em terceiro e final lugar o registro de cancelamento de sua inscrição na Junta Comercial.
Assim, a lei determina. No entanto, mesmo os sócios cumprindo as etapas, com o encerramento legal da atividade, ainda podem ter seu patrimônio pessoal diretamente atingido, responsáveis que são por dívidas existentes, pelo prazo de até um ano, nos termos do art. 206, § 1º, inciso V.
O art. 206, §1º, inciso V, do Código Civil aponta o prazo de um ano (prescrição) a correr contra os sócios que fecham de forma regular a empresa e promovem, na forma da lei, a liquidação e o encerramento da sociedade empresarial.
Isso implica dizer que de certo modo a compreensão do STJ se choca com o regramento legal, pois o encerramento irregular da empresa nada mais é do que um término contrário à disposição legal, isto é, ato ilegal, motivo pelo qual haveria de ser causa suficiente para desconsiderar a personalidade jurídica e responsabilizar os sócios.
No instante em que a empresa executada descumpre a norma, negligenciando os procedimentos legais do art. 51 do Código Civil, deixa-se levar pelo animus de prejudicar o credor, pois age tanto de forma comissiva, porque não quita a dívida, como de forma omissiva, porque não realiza as etapas da lei nem promove o cancelamento de sua inscrição. Mesmo assim ganha uma verdadeira imunidade jurisdicional.
Em nossa análise o procedimento irregular de encerramento da atividade empresarial também se encontra sobre o território semântico do ato ilícito apontado no parágrafo 1° do art. 50 do Código Civil, ato doloso a caracterizar o desvio de finalidade.
Para o mesmo caso fático, porém, a regras jurídicas têm sido completamente distintas.
Na esfera tributária, presume-se dissolvida a empresa que deixar de funcionar em seu domicílio fiscal, sem comunicá-lo aos órgãos competentes. Questão suficiente para legitimar o redirecionamento da execução-fiscal para o sócio gerente.
É o que diz a súmula 435 do STJ.
Em outras palavras a dissolução irregular da empresa inclui o sócio representante a fim de que responda com seus bens em execução fiscal, já que preenchidos os requisitos da legitimação passiva; porém, de forma oposta, caso o credor não tenha a sorte de ser o Fisco, e sim o azar de um particular (Pessoa jurídica ou Pessoa Física), o encerramento irregular muda de figura, e não traz à responsabilidade dos sócios efeitos similares.
Assim, para fatos jurídicos bastante próximos surgem consequências bastante diversas. Não cabe falar de prevalência do Princípio da Supremacia do interesse Público sobre o privado. A causa é justamente o inadimplemento financeiro da obrigação.
Analisar somente do ponto de vista do fechamento irregular é garantir a impunidade, privilegiando a ilegalidade, pois a situação fática amolda-se perfeitamente e afronta diretamente os artigos 186, 187 e 927, diante da conduta ilegal tanto da sociedade empresária quanto de seus representantes.
Pois bem, fechada a empresa de forma irregular, os bens dos sócios não serão atingidos, pois o judiciário não permite a desconsideração da personalidade jurídica pelo encerramento irregular da sociedade.
Em contrapartida, suposto que siga os passos da lei e finalize a atividade empresarial regularmente, mesmo assim em até um ano restará a persegui-lo incansável a responsabilidade por dívidas da pessoa jurídica, a permitir ação diretamente contra os sócios.
Pune-se o cidadão que cumpre a lei e beneficia-se aquele que contra ela age de má-fé, sendo agraciado com a uma inexplicável atenuação de responsabilidade jurídica.
O incidente de desconsideração da personalidade jurídica, a sucessão processual e a responsabilidade civil são institutos diferentes, é verdade, mas confluem para o mesmo objetivo: atingir a pessoa física e os sócios da empresa.
A lei protege quem age corretamente, já o judiciário, de forma atípica, tem legislado e interpretado de forma diversa ao ordenamento jurídico.
Hoje, se uma empresa passa por dificuldades, pode-se fechá-la de qualquer jeito, e a pessoa física não terá por isso nenhuma responsabilidade, como se a norma ali fosse inutilidade dispositiva. Por outro lado, fechando-a regularmente, tudo o que encontrará o bom cidadão será a responsabilização direta por ter agido de acordo com a lei.
É exatamente isto que propomos mudar. Insistimos: é preciso defender os legítimos direitos e interesses dos credores, não dos devedores, especialmente quando marcados pelo signo da má-fé. O Direito, repita-se, não se presta ao torto e não pode ser usado de modo inconfessável.
Quando se busca a efetividade de uma decisão judicial não se tem apenas homenageado o credor, a parte vencedora de um litígio, mas também se vê respeitado o próprio Poder Judiciário e, ainda mais importante, dignificada a verdade!
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*Gisele Feliciano é colaboradora do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados.
*Rubens Walter Machado Filho é advogado, administrador de empresas, diretor do IBDTrans – Instituto Brasileiro de Direito dos Transportes. CEO da MCLG Consulting & Recovery (USA). Sócio do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados.
*Paulo Henrique Cremoneze é advogado com atuação em Direito do Seguro e Direito dos Transportes, sócio do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados.