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Covid-19: Doença ou doença profissional?

Além de milhares de mortos e infectados, a pandemia, definida como fenômeno de força maior, lançou às alturas a crise e colocou a economia em recessão.

13/5/2020

Recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) explodiu na esfera empresarial com efeitos negativos. Centenas de empresários estão à procura de informações sobre a classificação da moléstia provocada pelo Covid-19 como doença profissional. Será necessário, porém, aguardar a publicação do acórdão. Enquanto não acontece, a sensação é de que algo desastroso se aproxima.

Além de milhares de mortos e infectados, a pandemia, definida como fenômeno de força maior, lançou às alturas a crise e colocou a economia em recessão. O fechamento do comércio e a falência ou interrupção de inúmeras atividades, multiplicam o número de desempregados, prevendo-se que até dezembro superem o patamar de 20 milhões. Subestima-la é manifestação de demência aguda que, dependendo de quem a padeça, aprofundará a miséria da população.

A lei 8.213/91, que Dispõe Sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social, define doença profissional como “a produzida ou desencadeada pelo exercício peculiar a determinada atividade e constante da respectiva relação elaborada pelo Ministério do Trabalho e da Previdência Social” (art. 20, I). São exemplos clássicos o saturnismo (intoxicação aguda ou crônica provocada pelo chumbo ou algum dos seus sais) e a silicose (fibrose crônica dos pulmões causada pela inalação constante de poeira de sílica). A doença do trabalho é “adquirida ou desencadeada em função das condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente” (art. 20, II). Um dos exemplos é a surdez resultante de serviços exercidos em ambiente ruidoso, onde o barulho ultrapassa o limite fixado em norma legal.

Sendo a doença profissional aquela produzida ou desencadeada “pelo exercício do trabalho peculiar à determinada atividade”, não pode ser o caso da pandemia do covid-19. A moléstia poderá ser contraída em casa, no transporte coletivo, no trajeto para o emprego. Jamais se saberá como, quando e com quem acontecerá.

O art. 927 do Código Civil ordena que “Aquele que por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. O parágrafo único lhe dilata o alcance ao dispor que “Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.”

São vários os requisitos legais exigidos para a responsabilização, independente de culpa, por doença profissional: 1º. O ato deve ser ilícito, conforme definições dos artigos 186 e 187 do mesmo Código; 2º. Entre autor e vítima haverá relação de trabalho ou de emprego; 3º. A doença deve se encontrar previamente relacionada como “produzida ou desencadeada pelo exercício peculiar a determinada atividade”; 4º. O caso deverá se encaixar em dispositivo legal expresso, como peculiar a determinada atividade. Peculiar, segundo o Dicionário Houaiss, é o mesmo que inerente, próprio, respectivo. A peculiaridade do trabalho ou atividade é essencial para a responsabilização do empregador.

O coronavírus não é moléstia peculiar a determinadas atividades ou profissões. Surgiu na China, não se sabe como, e se espalhou pelo planeta sem respeitar fronteiras. A ciência pouco a conhece. Apenas após a eclosão da pandemia é que alguns países trataram de se empenhar na pesquisa da vacina. Entre autoridades da área da saúde são constantes as divergências sobre como enfrentá-la com medidas preventivas.

Conquanto não sejam conhecidos os termos do acórdão do STF, ao que tudo indica houve precipitação de ministros isolados em Brasília. O art. 29 da medida provisória 927 determina: “Os casos de contaminação pelo coronavírus (covid-19) não serão ocupacionais, exceto mediante comprovação de nexo causal”. O dispositivo está correto. Impede a presunção de que a doença resulta de ato ilícito do empregador ou de atividade por ele exercida. É o caso de lojas de tecidos, de roupas, de bolsas ou de calçados. Será irracional imputar a responsabilidade do empregador por prática de ato ilícito, na hipótese de empregado ser vítima do coronavírus contraído não se sabe como.

Atividades comerciais e industriais não oferecem, de maneira geral, riscos de doença profissional. É levar demasiado longe o desejo de proteger, mediante a criação de potencial “passivo oculto”. As consequências serão ruinosas para os empregadores. De todo modo, aos administradores de recursos humanos compete implantar e fiscalizar o respeito às medidas exigidas pelas autoridades sanitárias. Quando possível, colocar os funcionários para trabalhar em casa. Impedir o uso simultâneo do vestiário, provador, elevador, refeitório, banheiro ou sanitário por mais de uma pessoa. Determinar distanciamentos mínimos no local de trabalho. Exigir o uso de mascaras e de álcool-gel. Disciplinar o acesso de clientes. É indesejável demitir empregados, as maiores vítimas da pandemia. Em situações extremas, porém, será difícil evitá-lo.

Estamos presos no interior de alarmante bolha mundial de desgraças. Transformar o empregador em responsável pela infecção do empregado pelo covid-19 é errado. Significa multiplicar as dificuldades que destroem a economia, contribuir para a quebra de empresas e ampliar o número de desempregados.

Apelamos aos ministros do Supremo Tribunal Federal para decidirem com os olhares postos na realidade. O covid-19 surgiu na China em dezembro. Desembarcou no Brasil em fevereiro. Foi identificado em março. Não haveria, portanto, como integrá-lo do rol de doenças profissionais como exige o art. 20, I, da lei 8.213/91. À toda evidência, a decisão do STF viola o princípio da legalidade.

O covid-19 é doença grave; não é, entretanto, do ponto de vista jurídico, doença profissional.

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*Almir Pazzianotto Pinto é advogado. Foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho.

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