Fato notório é o mau estado das rodovias brasileiras, meio primordial para o escoamento da produção, agrícola ou industrial, do Brasil. Infelizmente, sucessivas políticas públicas equivocadas relativas aos modais de transporte obrigam os agentes produtivos a transportar mercadorias, e a perder parte delas, em rodovias mal estruturadas e inseguras, inobstante o transporte aquaviário ou ferroviário sejam mais eficientes e adequados às características e dimensões brasileiras. Assim, como qualquer outro usuário, os agentes produtivos são vítimas das más condições das rodovias, o que lhes causa prejuízos diários. Portanto, diferente do que parece fundamentar as decisões judiciais que impõem astreintes pelo excesso de peso no transporte de cargas, não são os agentes produtivos os principais causadores da degradação das rodovias, já que isto, absolutamente, não lhes beneficia.
Consoante estudo recente da Confederação Nacional de Transporte (CNT), a degradação das rodovias brasileiras deve-se a uma conjunção de fatores. Fatores de responsabilidade dos gestores públicos: modalidade de pavimentação utilizada, cuja tecnologia e processo produtivo datam da década de 1960; insuficiente fiscalização durante as obras; ausência de adequada manutenção preventiva; e reparos deficientes. Fator de responsabilidade de particulares: excesso de peso bruto por parte dos caminhões transportadores de mercadorias.
O Ministério Público Federal moveu durante vários anos, ações civis públicas, em que era requerida aplicação, no caso de infração administrativa de transporte excessivo de peso, de dupla penalização - astreinte (ou seja multa civil) e multa administrativa, prevista na legislação de trânsito -, além de indenização por danos materiais (recuperação do pavimento asfáltico) e morais coletivos. (lei 7.347/1985).
Por certo período, o Poder Judiciário afastou a pretensão do MP, por não ver relação única de causa e efeito entre o excesso de peso de caminhões e o mau estado das rodovias brasileiras; por entender que a multa administrativa seria o bastante para penalização; e que o Judiciário não possuía competência para fiscalizar rodovias, estabelecendo penalidade adicional à fixada pela legislação de trânsito.
Foi assim com o julgamento em primeira e segunda instâncias da Ação Civil Pública (5009130-42.2013.404.7204/SC) proposta pelo MPF, perante a Justiça Federal em Santa Catarina, que foi julgada improcedente em primeira instância; tendo a referida sentença sido mantida pelo TRF da 4ª Região (SC - 2015/0315458-4).
Entretanto acórdão unânime da 2ª Turma do STJ, deu provimento ao recurso especial 1.574.350 - SC), com as penalizações requeridas pelo MPF, na inicial da ação: (i) condenação à abstenção de transitar com excesso de peso; (i) multa de R$ 50.000,00 por veículo flagrado com excesso de peso; (iii) condenação ao pagamento de dano material causado às rodovias, ao meio ambiente e à ordem econômica, a ser arbitrado; e (iv) condenação ao pagamento de dano moral coletivo, também a ser arbitrado.
As principais fundamentações para tanto, foram: (i) direito ao trânsito seguro (vida, saúde e bem-estar coletivos); (ii) proteção do patrimônio público e privado; (iii) penalidade administrativa não exclui providência judicial de índole inibitória para proteger os mesmos direitos garantidos; (iii) multa administrativa, que castiga fatos ilícitos pretéritos, não se confunde com astreinte (multa civil), que objetiva assegurar o cumprimento de obrigações de fazer e de não fazer.
Embora o julgamento acima somente valha entres as partes, antes que jurisprudência no mesmo sentido possa se considerar assente, é necessário examinar os argumentos em sentido contrário.
O acórdão da 2ª Turma do STJ, em tela, proveu o recurso especial nos termos do voto do relator, que, por sua vez, havia deferido tudo o que havia sido requerido pelo MPF. Dessa forma, acabou por ser aprovada a astreinte como medida punitiva a ser aplicada a cada descumprimento e não em dada situação concreta. Dessa maneira, decisão judicial substituiu ou recrudesceu disposições do Código Brasileiro de Trânsito, em clara infração ao art. 2º da Constituição Federal.
Consoante a 2ª Turma do STJ, o excesso de peso era estimulado pelo suposto descompasso entre o lucro das empresas e o valor módico da penalidade administrativa. Aspectos próprios do segmento de transporte de carga não foram considerados pelo Tribunal. Lembre-se primeiramente que a responsabilidade pelo excesso de peso pode ser do embarcador, do transportador ou solidária, a depender as situação especifica (Código de Trânsito Brasileiro, art. 257, § 6º). Há duas espécies de infração relacionadas a tal excesso: excesso de peso bruto total (PBT) e peso por eixo (PPE). No primeiro caso, de fato, caso um embarcador exceda o limite máximo permitido, estará beneficiando-se desse excesso, pois estará transportando mais carga. Tal não sucede, contudo, no caso de excesso de peso por eixo, pois as empresas vendem o "PBT da carga", pouco importando sua distribuição por eixo. O PPE é afetado por fatores, que escapam ao controle do embarcador: configuração do caminhão, ausência de frota uniforme, deslocamento de carga em razão de frenagem, aceleração e buracos na pista; acondicionamento de cargas em granel; abastecimento de combustível do caminhão ou carreta; mudança do local da colocação dos estepes do veículo; diferença de umidade dos grãos embarcados; eventuais caronas, mudança de posicionamento da carroceria etc. Nesses casos, por mais cuidado que o embarcador tenha, ele pode controlar o transporte até o embarque (de modo que pode responder pelo excesso de PBT; porém, não tem como garantir que o peso por eixo restará até o fim do percurso do transportador, em razão das variáveis acima, que fogem completamente do seu controle. A multa imposta pela 2ª Turma do STJ, de R$ 50.000,00 por infração de excesso de carga, independe se se trata de PBR ou PPE.
O efeito econômico das penalidades impostas não pode ser desconsiderado. É elevado o valor da astreinte, especialmente considerando-se o valor da multa administrativa. A primeira corresponde até a 588 vezes o valor da segunda. Outrossim, ela não comporta qualquer gradação, ao contrário da multa administrativa. Desse modo, não importa se houve 1kg ou 1T a mais de carga. Por outro lado R$ 50.000,00, muitas vezes, supera o valor da própria carga transportada, transformando a multa em confisco.
Não se pode esquecer o prejuízo causado à concorrência. As empresas objeto de ações civis públicas, discriminatoriamente ficam alijadas da competição. Como a astreinte é aplicada individualmente, e não a todas as empresas, são elas colocadas em desvantagem em relação a demais concorrentes, apenando-as de forma seletiva por mazelas que sequer poderiam ser atribuídas exclusiva ou majoritariamente a elas. Desse modo, a aplicação de penalidades adicionais à multa administrativa afeta enormemente a competitividade dos agentes produtivos brasileiros, pelo aumento desproporcional dos custos com transporte, que pode, inclusive, superar o valor das próprias cargas. Ademais, existe patente prejuízo à livre concorrência ocasionado pela "eleição" de determinadas empresas que receberam tais condenações. Ainda, há o efeito colateral de agravar a falta de atratividade de investimentos no setor produtivo brasileiro, em razão da falta de previsibilidade e estabilidade do cenário regulatório/judicial.
A premissa adotada pelo acórdão no sentido que a inexpressividade do valor da multa estimula o sobrepeso e o mau estado das rodovias não procede, pois frente a centenas de milhões de embarques, há somente milhares de infrações. Ademais, não há qualquer benefício econômico no sobrepeso por eixo, já que não há aproveitamento do transporte para acomodar maior quantidade de carga.
Assim, se há desconforto com determinada penalidade prevista em lei, que se discuta uma revisão do comando legal por meio do Poder competente e de forma “erga omnes”, isonômica, permitindo a ampla discussão do tema, com todos os agentes e setores envolvidos, resguardando-se a basilar segurança jurídica e um saudável ambiente econômico no Brasil.
O acórdão em comento dá a impressão de que o excesso de peso é a única ou a mais substancial razão da má conservação das rodovias, malgrado a realidade esteja muito longe disso. Daí, a solução apontada, além de ser injusta não resolver a questão!
_____________
*Luiz Fernando do Vale de Almeida Guilherme é sócio da Almeida Guilherme Advogados Associados. Especialista. Mestre, Doutor e Pós Doutor e Professor Permanente do Mestrado do CEDES.