No século XI d.C., mais precisamente no ano de 1088, era fundada a Universidade de Bolonha, na Itália. No século seguinte, em 1150, a Universidade inaugurava seu curso de Direito, o primeiro em todo o mundo ocidental.
Naquele período, vivia-se o apogeu do direito canônico, que tinha jurisdição para muito além dos assuntos meramente eclesiásticos, dado o poder que a igreja exercia, de forma quase que onipresente, na vida social.
No século seguinte, a 100 quilômetros de Bolonha, em Florença, nascia Dante Alighieri, o maior poeta italiano e um dos maiores de toda a Europa (talvez o maior, ao lado de William Shakespeare).
No século seguinte, a pandemia da Peste Negra dizimou um terço de toda a população europeia.
Três séculos depois veio a Reforma, que teve gênese com as 95 teses de Lutero, abalando o poder da Igreja sobre o Estado.
Com o Renascentismo, marcava-se o fim da Idade Média, e, com o Iluminismo, no século XVII, emergiam os ideais de liberdade política e econômica.
No final do Séc. XVIII, Luís XVI da França é levado à guilhotina, no movimento que deu fim à monarquia e instituiu uma república democrática, nos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade.
No mesmo século tem início a Revolução Industrial, e, de certo modo, começa a se formar o mundo como conhecemos hoje.
Voltemos à Itália do Séc. XII.
Em que pese a influência indissociável do direito eclesiástico da vida social italiana da época, eram as leis do período de Justiniano (e também a codificação civil posterior) o objeto de estudo da grande escola Bolonhesa: a Escola dos Glosadores.
O trabalho dos glosadores era o estudo e a interpretação das normas romanas, fazendo, de fato, anotações e comentários sobre as normas. Daí a etimologia do substantivo “glosa”, que equivale a anotação, ou comentário.
Destaca-se do trabalho dos glosadores o estudo sobre a literalidade das normas jurídicas.
O que nos leva ao Séc. XXI, quando sancionada, na República Federativa do Brasil, a lei 13.869, de 2019, conhecida como Lei de Abuso de Autoridade, que, no seu artigo 33, tipifica como crime “exigir informação ou cumprimento de obrigação, inclusive o dever de fazer ou de não fazer, sem expresso amparo legal”.
Quem incorrer em tal tipo penal poderá sofrer pena de detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. E, conforme disposição do artigo 2º, inc. IV, a lei se aplica aos membros do poder judiciário.
Ora, se a jurisdição é exercida em um estado democrático de direito, parece razoável que as decisões judiciais sejam amparadas na lei.
E, para isso, o Artigo 5º da Constituição Federal parece bem definir, no princípio da legalidade, que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.
E aqui nem se discute a eventual inconstitucionalidade do “princípio da legalidade expressa” definido na Lei de Abuso de Autoridade, mas, sim, a sua absoluta inadequação a todo o sistema jurídico.
Ora, a legalidade expressa é antítese da heterointegração, prevista expressamente no artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que determina que quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
É também a antítese da aplicação, obrigatória, dos precedentes, como determina o artigo 927 do CPC. Se os precedentes só podem ser aplicados se corresponderem à norma legal expressa, o precedente deve ter em seu comando o exato comando abstrato da norma que ele interpreta, e, então, o precedentalismo seria absoluta e necessariamente tautológico, não tendo, absolutamente, qualquer função.
Teria, então, a Lei de Abuso de Autoridade extinguido o precedentalismo?
Como decidirá o juiz se, de um lado, o CPC determina a aplicação, obrigatória, do precedente, e, de outro lado, a Lei de Abuso de Autoridade determina que, sob nenhuma hipótese, poderá haver determinação de obrigação de fazer, ou não fazer, senão com expresso amparo legal?
A legalidade expressa ignora, igualmente, todo o método interpretativo da lei que precede a aplicação de uma norma (que faremos com as proposições de Savigny sobre os métodos de interpretação, já incorporadas ao nosso direito há muito?). Recorde-se que já ultrapassamos o positivismo demasiado racionalista após a experiência do pós-segunda guerra.
Como falar em legalidade expressa ante o dogma da completude do ordenamento, a generalidade da lei e a inafastabilidade da jurisdição?
Como decidiriam os juízes nas causas relacionadas à atual pandemia do coronavirus, se, evidentemente, não há legislação sobre as disrupturas sociais causadas pela pandemia? Deixariam de decidir? Aplicariam a lei, sendo que não há lei?
Num exemplo que resume a problemática da interpretação literal, e a falsa dicotomia com o ativismo judicial, recentemente o jurista Lênio Streck, no artigo “Por que é tão difícil ‘cumprir a letra da lei’? O caso do art. 212 do CPP”, com o brilhantismo que lhe é peculiar, define o problema da legalidade expressa: o literalista vê a placa “proibido cães na plataforma”, proíbe a entrada de um cão-guia e permite a de um urso.
O que cabe na locução substantiva “expresso amparo legal” do artigo 33 da Lei de Abuso de Autoridade? A variedade de definições possíveis a tal locução já a torna impraticável.
Na dúvida, os magistrados já estão adotando a prática dos glosadores, e já existem inúmeras decisões fundamentadas a partir da “legalidade expressa”, limitando, expressamente, a cognição da questão à aplicação da lei expressa, em casos que clamam por aplicação da lei a partir de outros métodos, legais e possíveis, frisa-se.
Da Peste Negra ao pós-positivismo, o mundo ocidental passou do feudalismo à era digital. Passamos pela Inquisição, pela Reforma Protestante, pela Renascença, pelo Iluminismo, Revolução Francesa, surgimento dos Estados nacionais modernos e o rompimento com o mercantilismo, surgimento das teorias liberais, Revolução Industrial, Colonialismo, duas Grandes Guerras, Declaração Universal dos Direitos Humanos, e todo o legado que deu causa a toda uma herança cultural e jurídica, que ecoa em todos os códigos sociais, instituídos ou não.
Mas, um artigo de lei, redigido e votado por um punhado de legisladores, nos leva de volta à jurisdição medieval.
E, ao fazê-lo, torna a jurisdição mero exercício de glosa, num simplismo típico da jurisdição em massa, que causaria espanto até mesmo em Aldous Huxley e a sociedade técnica padronizada do Admirável Mundo Novo, ou ao sociólogo nova-iorquino George Ritzer e sua tese de McDonaldização dos processos em todos os aspectos da sociedade.
Sejamos todos, então, neoglosadores.
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*Mário Henrique da Luz do Prado é advogado do escritório L. F. Maia Sociedade de Advogados.