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A constitucionalização do Direito Administrativo - A propósito da recente decisão liminar do STF suspendendo a nomeação do diretor geral da polícia federal

Hoje não se pode duvidar mais da sindicabilidade pelo Judiciário do mérito do ato administrativo.

11/5/2020

O Direito Administrativo clássico foi construído doutrinária e jurisprudencialmente a partir de decisões do Conselho de Estado Francês, que, paradoxalmente aos ideários da Revolução Francesa, prestigiava a autoridade dos agentes públicos em detrimento da liberdade e direitos fundamentais do cidadão.

Todavia, não se pode olvidar avanços no Direito Administrativo tradicional, a exemplo da teoria do desvio de finalidade, que serviram para mitigar e coactar alguns abusos perpetrados pela Administração Pública.

Nesse viés, leciona, acerca do Direito Administrativo clássico, o ilustre Gustavo Binenbojm, em sua obra Temas de Direito Administrativo e Constitucional, ed renovar, 2008, pags 40 e 59, verbis:

“Com efeito, havendo sido produto da elaboração jurisprudencial do Conselho de Estado francês, as categorias básicas da disciplina não surgiram da sujeição da Administração à vontade heterônoma da lei, mas antes de uma autovinculação do Poder Executivo à sua própria vontade”

Omissis

“A dogmática administrativa estruturou-se a partir de premissas teóricas comprometidas com a preservação do princípio da autoridade, e não com a promoção das conquistas liberais e democráticas”

No que atina ao desvio de poder ou de finalidade, a doutrina, de há muito, assentou o entendimento de que ele ocorre quando o agente público, sobretudo na prática de atos administrativos discricionários, se desvia da finalidade específica prevista na lei para o ato, ou, de uma forma geral, desborda do interesse público, muitas vezes para socorrer interesses particulares (Celso  Antônio Bandeira de Mello, em Elementos de Direito Administrativo, 2ª edição, p. 100).

Perquire-se, então, nesse diapasão, não só sobre legalidade formal e estrita dos atos administrativos, mas também sobre sua legitimidade e eticidade, com vistas a fulminar, inclusive, os atos administrativos acoimados de desvio de finalidade.

Com o advento da Constituição Federal de 1988, as categorias de Direito Administrativo passaram a ter uma releitura para adequarem-se aos princípios e regras constitucionais, notadamente aqueles inscritos no seu artigo 37, caput, em especial os princípios da moralidade, impessoalidade e do interesse público.

Cogita-se, a partir de então, não só da vinculação dos atos administrativos à lei, mas sim da sua sujeição à Constituição Federal. Não se cuida só de aferir a sua estrita vinculação à lei, mas sim a sua juridicidade, considerada a centralidade da Constituição.

A CF, de seu turno, está assentada, fundamentalmente, nos direitos e garantias individuais e coletivos e no princípio democrático.  Assim, análise da juridicidade dos atos administrativos exige a sua compatibilidade com a Constituição

Por outro lado, aliado aos referidos princípios constitucionais, não se pode descurar, à guisa de importante vetor interpretativo da CF, do princípio instrumental da razoabilidade ou proporcionalidade.

Hoje não se pode duvidar mais da sindicabilidade pelo Judiciário do mérito do ato administrativo, o que, longe de configurar ingerência indevida de um Poder no outro, serve para salvaguardar a Constituição contra o abuso de poder.

Nessa esteira, ao STF é dado, como guardião maior da Constituição, imiscuir-se sim na conveniência e oportunidade doa ato administrativo, se deles se puder extrair algum atentado a regras e princípios constitucionais.

Nesse diapasão, nos parece louvável e acertada a recente liminar concedida pelo Ministro Alexandre de Moraes, em mandado de segurança coletivo, sustando a nomeação de Alexandre Ramagem para a função de Diretor Geral da Polícia Federal.

Com efeito, o Ministro --  após reconhecer o cabimento da ação, vale dizer , em espacial, a existência de plausibilidade de direito liquido e certo da coletividade, provado documentalmente (contatos por watsapp entre o ex Ministro Sergio Mouro e Presidente da República, bem assim com uma deputada Federal, sem olvidar que existe também um inquérito aberto no STF sobre os supostos crimes cometidos pelo Presidente), consistente, dito suposto direito líquido e certo,  na imperativa necessidade de sustação dos efeitos de nomeação que malferiria , supostamente, a Constituição, na medida em que o indicado ao cargo supostamente poderia interferir, a favor do Presidente, em inquéritos que tramitam no STF, envolvendo os seus filhos (dele Presidente da República) – deferiu a liminar, entendendo presentes a fumaça do bom direito e o perigo da demora na concessão da medida acauteladora.

Cabe assinalar que o STF em outras ocasiões similares concedeu tutelas liminares para sustar nomeações para cargos de ministros do executivo.  Foi o que aconteceu no governo Dilma, no que se refere à nomeação do ex-presidente Lula para a Casa Civil, bem assim da filha do Deputado Roberto Jefferson para o Ministério do Trabalho, no governo Temer.

Assim sendo, na hipótese em apreço pensamos, com as vênias dos que entendem em contrário, que, respeitada a competência do Presidente da República para nomear agentes públicos, constitucionalmente deferida, ao judiciário, notadamente o STF, compete interferir para coibir atos administrativos contrários à Constituição, em patente desvio de finalidade, sem que isso possa significar usurpação de poder ou violação ao princípio da separação de poderes.

_________ 

*Gustavo Hasselmann é procurador do município de Salvador/BA, onde ingressou por concurso de provas e títulos e advogado; graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia, licenciado em filosofia  pela Faculdade Batista Brasileira, especialista em Processo Civil e  Direito Administrativo, ambos pela Fundação Faculdade de Direito da Bahia; membro do IAB - Instituto dos Advogados da Bahia, onde ingressou com a aprovação de trabalho jurídico, e do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo.

 

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