O alastramento da covid-19 desencadeou uma crise global de múltiplas dimensões. O novo coronavírus está expondo a insustentabilidade de práticas e modelos políticos, econômicos e ideológicos mundo afora. Como é sabido, crises trazem riscos e danos, mas também revelações e oportunidades. As sociedades que entenderem as mudanças necessárias e forem capazes de tomar novos rumos com presteza sairão desta pandemia mais unidas, com vigor renovado.
No Brasil, um dos grandes desafios que as circunstâncias atuais iluminam diz respeito ao saneamento básico.
Desde 2018, o Congresso Nacional, o governo federal, agentes e grupos de interesse do setor assumiram a missão de formular um novo marco legal do saneamento. O objetivo central da iniciativa é desenhar um modelo regulatório que permita acelerar a superação de um grande déficit nacional.
Hoje, com cerca de 35 milhões de pessoas sem abastecimento de água tratada, quase 100 milhões sem coleta de esgoto e com menos da metade dos esgotos tratados (segundo o Instituto Trata Brasil), a situação sanitária brasileira é um atentado à dignidade humana. Essa realidade é também um grande obstáculo para a melhoria da saúde pública, um dramático fator de degradação ambiental, reprodução de desigualdade e desperdício de potenciais de desenvolvimento.
Das negociações e dos trabalhos até agora realizados no Congresso, resultou um projeto de lei originalmente formulado no Senado, que foi modificado na Câmara e passou a se chamar PL 3.261/19. Aprovado pela Câmara em dezembro de 2019, o projeto voltou a tramitar no Senado agora sob o 4.162/19.
Na versão atual do texto, trata-se de uma proposta aquém do que já se mostrava necessário antes da pandemia. Caudatária de um dogma privatista que não tem “envelhecido bem” desde que foi amplamente disseminado, a partir do final da década de 1970, a orientação dominante no projeto é a de que o mercado deve substituir o Estado no provimento desse serviço essencial.
Com sua aposta na prevalência do mercado, na disponibilidade e no aporte de suficientes recursos privados, o PL que tramita no Senado se revela irrealista e anacrônico à luz da situação presente e dos consensos que ela vem consolidando.
A busca por aceleração sustentável – nos sentidos ambiental e econômico – do desenvolvimento nacional pós-pandemia exige uma revisão ampla, realista e pragmática do projeto de lei em discussão. Esse trabalho urgente deve se nortear pela busca de sinergia sem preconceitos entre agentes público e privados, equilíbrio entre a liderança federal e uma flexibilidade que permita arranjos e soluções regionais, e o aperfeiçoamento das funções estratégicas do Estado na defesa dos interesses sociais mais abrangentes.
Hoje, diante da constatação flagrante de que os recursos necessários para a universalização do saneamento no País não virão, predominantemente, do setor privado, o desenho de novos mecanismos de financiamento com significativo protagonismo estatal é um desafio inescapável. Um novo marco regulador que não contemple esse fator de viabilidade será um documento fadado, na melhor hipótese, à ineficácia.
A situação é, no entanto, ainda mais preocupante. Por ameaçar a desconstrução de arranjos regionais, dar margem a novos conflitos entre instâncias do poder público e ao aumento da insegurança jurídica, o PL em tramitação no Senado pode resultar numa piora das condições de desenvolvimento e sustentabilidade do setor.
Há articulações em curso para que os senadores aprovem o PL 3.261/19 (PL 4.162/19), que receberam da Câmara, sem fazer alterações – o que tornaria a aprovação pelo Senado definitiva.
Os parlamentares capazes de perceber as mudanças rápidas e profundas que estão acontecendo no Brasil e no mundo neste momento não devem aceitar isso.
O cenário atual clama por uma reanálise da matéria – tanto pela relevância ainda maior que ela adquiriu como fundamento de saúde pública quanto pelas mudanças da conjuntura, tendências e projeções da economia. O desafio que o projeto se propõe a enfrentar e sua urgência histórica são importantes demais para que se cometam graves erros ou omissões por açodamento.
Este momento nos dá a oportunidade de compreender como a saúde pública deve ser priorizada e tratada, pela sociedade e pelo poder público, como fator essencial de segurança socioeconômica. A prevenção a futuras crises como a que estamos vivendo e a construção de modelos mais consistentes de desenvolvimento dependem da nossa lucidez diante dessa constatação e da nossa capacidade de responder a ela com prontidão e eficácia.
Comecemos já a dar essa resposta construindo um novo marco regulatório condizente com a realidade contemporânea e à altura do desafio de acelerar a universalização do saneamento básico no Brasil.
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