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Entres acordos, penas e dilemas

Com a nova previsão do ANPP, além do reforço do modelo de consensualização da Justiça no Ordenamento Jurídico brasileiro, agora pela via legal, inaugurou-se a possibilidade de maior negociação para a não judicialização de infrações penais.

5/5/2020

Com a promulgação da lei 13.964/19, conhecida como Lei Anticrime, uma série de alterações da legislação penal e processual penal serão realizadas. Dentre elas, disciplinou-se o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), medida até então disposta na resolução 181/17, do Conselho Nacional do Ministério Público.

Pois bem, muito embora outra espécie de acordo - a aplicação imediata de penas por acordo penal (uma modalidade com algumas similitudes com plea bargaining estadunidense) - não tenha sido aprovada, é certo que o novo formato do ANPP se aproximou daquela figura, ao menos no que diz respeito a suas finalidades.

Em verdade, com a nova previsão do ANPP, além do reforço do modelo de consensualização da Justiça no Ordenamento Jurídico brasileiro, agora pela via legal, inaugurou-se a possibilidade de maior negociação para a não judicialização de infrações penais, mas impondo maiores obrigações e consequências jurídicas, a quem decidir em aderi-los, em especial em relação aos dois instrumentos até então existentes: a transação penal e a suspensão condicional do processo.

Fato é que a resolução 181/17, com redação dada pela resolução 183/18, previa que o ANPP se destinava, dentre outros requisitos, a infrações cujo dano não seja superior a 20 (vinte) salários mínimos ou a outro parâmetro econômico definido pelo órgão de revisão, nos termos da regulamentação local. Entretanto, com a supressão desse parâmetro objetivo quantitativo do novo formato de ANPP, fica escancarada a possibilidade de expansão do espaço negocial, trazendo novamente à tona a tentativa de americanização do nosso Sistema de Justiça Criminal.

Atualmente, para a celebração do ANPP, deverão ser considerados os seguintes requisitos: I) que haja confissão formal; II) que a infração penal tenha cominada pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, consideradas as causas de aumento e diminuição de pena aplicáveis; III) que não seja cabível a transação penal; IV) que o agente não seja reincidente; V) que a infração não tenha sido cometida com violência ou grave ameaça; VI) que a infração não tenha sido praticada no âmbito da violência doméstica ou familiar ou praticada contra mulher por razões da condição de sexo feminino; VII) que o agente não tenha usufruído de outro acordo penal nos últimos cinco anos e; VIII) não seja o caso de conduta criminal habitual, reiterada ou profissional.

Uma vez que o critério objetivo de pena mínima inferior a 4 (quatro) anos não mais encontra uma limitação quantitativa do dano, abre-se margem para a negociação no campo dos crimes de corrupção (pena mínima de 2 anos), lavagem de dinheiro (pena mínima de 3 anos), evasão de divisas (pena mínima de 2 anos), sonegação fiscal (pena mínima de 2 anos), cartel (pena mínima de 2 anos), dentre outros tipos relacionados à criminalidade econômica, sobretudo com a ressalva de que a conduta criminal não seja habitual, reiterada ou profissional e que eventual concurso ou causas de aumento não ultrapassem o teto de 4 (quatro) anos.

Parece não ser por acaso que o ANPP tenha adquirido tamanha abrangência. Já não bastasse o calvário de coerções que permeiam a esfera do Direito Premial, caso os investigados por crimes de persecução estratégica, como a lavagem de dinheiro e a corrupção, nesse agigantado espaço da consensualização faz-de-conta, não firmem acordos de colaboração premiada por não terem informações de interesse das autoridades, passarão pelo martírio de tentar um ANPP ou de arriscar passar por um processo penal possivelmente marcado pelo overcharging1 e pela imparcialidade típica do afã da busca de uma verdade real incompatível com os direitos garantias processuais penais.

Talvez, essa aposta nos acordos penais, seja a forma de o Estado criar uma via paralela para simplificar e tornar mais célere a aplicação de sanções, ao arrepio do processo penal de garantias, utilizando, para tanto, a ameaça penal, quando lhe seja conveniente. Dentre as condições para a celebração do ANPP, o investigado tem o dever de cumprir cumulativa e alternativamente, a/o: I) reparação dos danos ou restituição da coisa, salvo impossibilidade de fazê-lo; iI) renúncia voluntária de bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime; III) prestação de serviços à comunidade ou entidades pública por período correspondente à pena mínima cominada ao delito reduzida de uma dois terços; IV) pagamento de prestação pecuniária a entidade pública ou de interesse social preferencialmente com a função de tutelar bens jurídicos semelhantes aos lesados pelo delito; V) cumprimento, por prazo determinado, outra condição proporcional e compatível com a infração imputada.

Quanto à última, fica evidente que, ao possibilitar que o Ministério Público indique no acordo outra “condição” que seja “proporcional e compatível com a infração penal imputada”, abre-se margem para um verdadeiro retrocesso inquisitório e discricionário, pois não existem parâmetros legais que limitem essa “outra condição”. Aliás, dada a amplitude do termo “condição”, é possível que no âmbito do Direito Penal Econômico sejam impostas, inclusive, reprimendas corporais ou confisco de valores (v.g. em hipóteses de evasão de divisas), banalizando em definitivo a utilização dos acordos, aproximando o processo penal da esfera voluntarista dos acordos civis, com riscos de até divergir de entendimentos já assentados pelos tribunais na aplicação de sanções2.

Ora, a indicação de condição compatível com a infração penal imputada nada mais é que dar ao Ministério Público o múnus jurisdicional3 em especial o da persecução penal, conferido constitucionalmente ao Poder Judiciário. Nesse modelo, o juiz nada mais é que mero homologador da pena escolhida pelo órgão acusatório, pois apenas lhe cabe analisar a proporcionalidade dos termos do acordo, reduzindo sua atuação não mais apenas no espaço das infrações de menor potencial ofensivo, como também em grande parte das infrações penais, posto que o critério da pena mínima compreende um universo de tipificação relativamente vasto, em que sequer haverá uma acusação formal por parte do Estado.

Ainda que haja diferenças entre a já debelada proposta acordo penal para a aplicação imediata de penas e o ANPP, ambos parecem cumprir o mesmo papel: o de antecipação (não tão) disfarçada da pena, em manifesto estrangulamento do direito processual penal. Fato é que, muito embora funcione como uma forma de resolução de conflitos, o ANPP não se adéqua ao modelo de Justiça Criminal, posto que nele não há antagonismo e nível simétrico entre as partes, abrindo-se mão da dialética processual para se instaurar uma única “verdade”, em uma espécie de processo inquisitório customizado. O modelo adversarial segue à espreita e a sua retórica prossegue procurando solo fértil por aqui, quiçá as críticas feitas ao modelo nos próprios Estados Unidos.

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1 A esse respeito: REYNOLDS, Glenn Harlan. Ham sandwich nation: due process when everything is a crime. In: Columbia Law review. v. 113, 2013, p. 102-108; Stein, Jeffrey D. Stein. How to make an innocent client plead guilty. In: Washington Post. Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 18.02.20.

2 A título de exemplo, a porcentagem de reparação de danos, fixada por alguns Tribunais em caso de condenação por evasão de divisas, varia de 2,5% a 5% do total movimentado (cf. TRF-3, Apelação 0007922-86.2002.4.03.6181/SP; TRF-4, AgRg no REsp 16.691.688).

3 Em sentido oposto, no artigo 89, §2º, da lei 9.099/95 dispõe-se que o juiz é quem poderá especificar outras condições a que fica subordina a suspensão condicional do processo, desde que adequadas ao fato e à situação pessoal do acusado.

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*Rhasmye El Rafih é advogada associada da prática Direito Econômico White Collar & Compliance do escritório Madrona Advogados. Mestranda em Direito pela Universidade de São Paulo, campus de Ribeirão Preto (FDRP-USP).

*Filipe Lovato Batich é advogado associado da prática Direito Econômico, White Collar & Compliance do escritório Madrona Advogados. Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (FD-USP).

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