1 - Introdução
Como afirmamos em artigo anterior1, os desafios impostos pela pandemia de covid-19, causada pelo vírus SARS-CoV-2, impulsiona reflexões sobre diversos temas, muitos deles jurídicos, com severas repercussões práticas.
Enfrentaremos aqui um desses temas, sintetizado na pergunta que compõe o título ("O que se fazer com o valor dos aluguéis em contratos de locação residencial e comercial de imóveis urbanos no Brasil no contexto da pandemia de covid-19?").
Faremos isso decompondo a pergunta inicial em 02 (duas) outras (veja-se adiante), uma mais proximamente relacionada à locação residencial e outra à locação comercial, escolhidas com base nas principais dúvidas que têm orbitado o tema, que, depois de firmadas as premissas, serão respondidas.
1ª Pergunta: A perda total ou parcial da fonte de renda do locatário confere-lhe direito ao não pagamento do aluguel de imóvel residencial, ao seu abatimento ou a que lhe seja adiado o vencimento?
2ª Pergunta: Medidas de proibição e/ou limitação do exercício de atividades comerciais adotadas pelo Poder Público conferem ao locatário por elas atingido o direito ao não pagamento do aluguel de imóvel comercial, ao seu abatimento ou a que lhe seja adiado o vencimento?
2 - Premissas
Enunciemos os nossos pontos de partida.
(1ª Premissa) O contrato de locação é um contrato (i) bilateral, (ii) oneroso, (iii) de trato continuado e (iv) sinalagmático. Quer-se dizer com isso (i) que ambas as partes têm prestações a cumprir; prestações essas que (ii) são mensuráveis economicamente, (iii) renovam-se periodicamente e (iv) mantém uma relação de equilíbrio entre si.
Assim, dentre outras obrigações (lei 8.245/91, arts. 22, I e III e 23, I): cabe ao locador entregar ao locatário o imóvel alugado em estado que sirva ao uso a que se destina e manter durante o contrato a forma e o destino do imóvel; enquanto ao locatário incumbe a obrigação de pagar pontualmente o aluguel ajustado (bilateralidade e onerosidade).
O pagamento do aluguel e a cessão do uso do imóvel são prestações que se renovam periodicamente. Por exemplo, via de regra, o valor do aluguel é devido pelo locatário ao locador como remuneração pelo uso do imóvel ter sido disponibilizado no mês anterior (trato continuado).
Tais prestações equilibram-se na forma contratualmente ajustada e devem manter esse equilíbrio original. É por isso que: existem critérios admitidos de reajuste do valor do aluguel, critérios que não são admitidos (como vinculá-lo à variação cambial ou ao salário-mínimo; lei 8.245/91, art. 17) e que o direito à sua revisão, seja pelo locador seja pelo locatário, é excepcional, justificável apenas diante de algum fato que tenha rompido aquele equilíbrio (sinalagma).
Tal desequilíbrio é, no contrato de locação, observável a partir da apreciação ou da depreciação do valor da disponibilização do uso do imóvel pelo locador, sendo que a depreciação poderá ocorrer diante de: (i) redução do valor de mercado do imóvel locado (que diminui o valor da disponibilização de seu uso e permite a revisão da contraprestação correspondente, ou seja, pagamento de aluguéis) e/ou (ii) diminuição da utilidade da disponibilização de imóvel pelo locador.
(2ª Premissa) A solução consensual sempre é possível. Respeitados os limites legais, as partes podem rever o valor do aluguel e, mais amplamente, renegociar o contrato de locação a qualquer tempo (lei 8.245/91, arts. 18 e 19, parte inicial). Não é essa, portanto, a questão que as perguntas envolvem. Mas sim saber se, diante das situações pontuadas nas perguntas, o locatário tem o direito à revisão, exigível judicialmente, caso o locador a ele se oponha.
(3ª Premissa) Para o enfrentamento da temática aqui proposta não interessa diferenciar o "caso fortuito" da "força maior", as consequências jurídicas serão as mesmas (vide CC/02, art. 393, par. ún.). Por esse motivo, ao longo do texto empregaremos os termos conjuntamente, na forma "caso fortuito/força maior".
3 - Considerações
Podemos agora retomar as indagações anteriormente formuladas para respondê-las.
3.1 (Da locação residencial)
A perda total ou parcial da fonte de renda do locatário confere-lhe direito ao não pagamento do aluguel de imóvel residencial, ao seu abatimento ou a que lhe seja adiado o vencimento?
Não. O pontual pagamento do aluguel é devido pelo locatário como contrapartida à disponibilização do uso do imóvel pelo locador e o que autoriza a revisão do seu valor é o surgimento de uma desproporção entre as prestações, que no caso não ocorre.
O contrato de locação é bilateral e, em contratos bilaterais, o que autoriza uma das partes a não cumprir a sua obrigação é o fato de a outra não ter cumprido a sua (CC, art. 476), defesa essa que é conhecida no Direito como exceção do contrato não cumprido ("exceptio non adimpleti contractus").
Nos termos do art. 19 da Lei de Locações (lei 8.245/91), "Não havendo acordo, o locador ou locatário, após três anos de vigência do contrato ou do acordo anteriormente realizado, poderão pedir revisão judicial do aluguel, a fim de ajustá-lo ao preço de mercado".
O direito à revisão do aluguel pressupõe, portanto, que o seu valor esteja incompatível com o valor de mercado. Dito mais extensamente: o valor do aluguel deve ter se tornado incompatível com o valor que o mercado estaria disposto a pagar pela disponibilização do uso daquele imóvel no mesmo período. Ou, em termos mais simples: o valor do aluguel não corresponde mais ao valor do uso do imóvel.
Motivos imprevisíveis, por força do art. 317 do Código Civil (CC/02), podem autorizar a superação do requisito temporal (os três anos) previsto no mencionado artigo, mas não a necessidade de que as prestações não guardem mais um equilíbrio entre si. Falar-se em desproporção manifesta entre "o valor da prestação devida" e "o do momento de sua execução" ou em se assegurar “quanto possível, o valor real da prestação”, para contratos sinalagmáticos, é a mesma coisa que se zelar pela manutenção do equilíbrio entre as prestações. Muda-se o enunciado (texto), mas não se altera a proposição (sentido).
Evidente que se a pandemia tiver afetado ou vier a afetar o valor do uso do imóvel residencial caberá a revisão do contrato. Mas aí em razão da desproporção entre as prestações e não motivada pela perda de renda de uma das partes. A propósito do tema, convém registrar que, em tempos de distanciamento social, não é de se esperar uma desvalorização na prestação do locador (pelo contrário, muitos imóveis residenciais têm sido mais intensamente utilizados), apesar da previsível redução do preço de venda desses imóveis, decorrente da busca por liquidez.
Nesse ponto, importante analisar o art. 393 do CC/02: "O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado". Não devemos confundir, todavia, a prestação em si com os “prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior”. Caso fortuito/força maior podem exonerar o locatário dos prejuízos daí advindos ao locador, mas jamais da prestação pecuniária em si2.
A causa de ser devido o pagamento do aluguel é o uso do imóvel ter sido disponibilizado e a causa do seu valor não merecer abatimento é o valor da disponibilização não ter sido depreciado.
A redução da renda do locatário seguramente importa numa desproporção entre a sua nova renda mensal e o valor do aluguel. Não é essa, contudo, a desproporção que autoriza a revisão do valor do aluguel. Em termos mais técnicos, essa desproporção não é causa jurídica de revisão, de modo que, abater uma das prestações sem alteração do valor da outra resultaria num enriquecimento sem causa (jurídica) de uma das partes, vedado pelos arts. 884 e 885 do CC/02.
Nem poderia ser diferente. Admitir-se a possibilidade de obrigar o locador a aceitar uma redução do valor do aluguel, com base na redução da capacidade econômica do locatário, ainda que decorrente de “caso fortuito/força maior”, seria o mesmo que se admitir a possibilidade de se impor um aumento no valor do aluguel, motivado por ter o locatário ganhado na Mega-Sena. Talvez até seja justo, mas não é jurídico. Não é assim que funciona o direito positivo brasileiro vigente.
3.2 (Da locação comercial)
Medidas de proibição e/ou limitação do exercício de atividades comerciais adotadas pelo Poder Público conferem ao locatário por elas atingido o direito ao não pagamento do aluguel de imóvel comercial, ao seu abatimento ou a que lhe seja adiado o vencimento?
Excetuado o direito a se adiar o vencimento (o "direito à moratória" pode resultar de acordo entre as partes, mas não resulta atualmente da lei), a resposta é sim. Responde-se afirmativamente, não em razão do comprometimento da capacidade econômica do locatário – que não é a causa desse direito –, e sim porque tais medidas, ao prejudicarem o uso do imóvel comercial, atingem o valor da prestação do locador.
Num contrato de locação comercial, facilmente se percebe qual é a prestação a prestação do locatário: é o pagamento do aluguel. Mas qual é a sua contraprestação, a prestação do locador, que, neste contexto, também pode ser designada com "objeto do contrato"? É a disponibilização do uso do imóvel, para a finalidade comercial a que ele contratualmente se destine, pelo prazo a que se refere o aluguel.
"Disponibilização" porque não é necessário o efetivo uso do bem pelo locatário para que o aluguel seja por ele devido. "Para a finalidade comercial a que ele contratualmente se destine" porque o dever do locador vai apenas até aí, não devendo este responder por fatos que, sem atingirem a finalidade contratual, afetem a atividade concretamente exercida pelo locador. Exemplos mais à frente confirmarão essa afirmação.
Como já vimos na resposta anterior, a celebração de contrato de locação estabelece um equilíbrio entre as prestações das partes que a legislação busca preservar. Daí a razão pela qual não existe direito à revisão com base na perda da capacidade econômica de uma das partes, mas existe esse mesmo direito quando, salvo previsão contratual em sentido diverso, surja uma desproporção entre as prestações, resultante de motivo imprevisto.
Já para se precisar se o direito do locatário é ao não pagamento do aluguel ou a um desconto no seu valor, e neste caso, quais seriam os parâmetros para esse abatimento, devemos considerar 02 (dois) fatores: (A) grau de definição do objeto do contrato e (B) o grau de afetação das atividades comerciais a que o imóvel se encontre destinado.
Vejamos cada um deles.
(A) Por análise do "grau de definição do objeto do contrato" queremos dizer que se deve examinar no contrato qual foi o nível de detalhamento da finalidade a que se destinou a locação do imóvel comercial. (A.i) Destinou-se a qualquer atividade comercial? (A.ii) ou a um ramo em especial? (A.iii) ou a um particular modelo de negócios dentro de um ramo de atividade?
(B) Já por exame do "grau de afetação das atividades comerciais a que o imóvel se encontre destinado" queremos destacar a relevância de considerarmos o quanto as medidas restritivas de atividades comerciais adotadas pelo Poder Público atingem atividades que, segundo o contrato celebrado, poderiam estar sendo ali exploradas (ainda que efetivamente não estejam). As medidas restritivas determinadas pelo Poder Público (B.i) as prejudicam em alguma proporção, por exemplo, ao restringirem horários de funcionamento? (B.ii) ou as inviabilizam por completo, ao proibirem certas atividades comerciais?
Note-se que o objeto do contrato não se identifica necessariamente com a atividade que venha sendo exercida pelo locatário e que o referencial para se verificar e quantificar a desvalorização da prestação do locador é o objeto do contrato e não a atividade exercida pelo locatário.
A melhor forma para se compreender tais fatores e suas repercussões é por intermédio de alguns exemplos. Examinemos algumas situações práticas diante das seguintes medidas cumulativamente impostas pelo Poder Público: (a) limitação ao horário de funcionamento de qualquer atividade comercial, (b) proibição de funcionamento de salões de beleza e academias de ginástica e (c) permissão de que o comércio de alimentos só seja realizado via delivery.
(1) Imóvel contratualmente destinado ao exercício de qualquer atividade comercial: a única medida que poderá ensejar alguma redução no valor do seu aluguel será a (a), por ser aplicável ao exercício de toda atividade comercial, independentemente do que estivesse funcionando no local. Ilustrando: ainda que ali estivesse concretamente em funcionamento um salão de beleza ou uma academia de ginástica (mas outra atividade poderia ser exercida nos termos pactuados em contrato), agora impedidos de funcionarem, o locatário não faria jus à supressão total ou parcial do aluguel com base na medida (b).
(2) Imóvel contratualmente destinado ao comércio de alimentos: a redução do valor do aluguel poderia ser pleiteada com base nas medidas (a) e (c), porque ambas impactam no seu objeto.
(3) Academia de ginástica funcionando em imóvel contratualmente destinado à exploração comercial de uma academia de ginástica: além de se poder pleitear a redução no valor do aluguel motivado pela medida (a), o locatário poderia pretender evitar a sua cobrança em razão da medida (b), que inviabiliza por completo, ainda que temporariamente, o objeto do contrato.
Algumas das formas possíveis para concretamente se comprovar que, nesses casos, é devida a revisão do aluguel, são: (i) a demonstração, por meio de pesquisas, de que o valor do aluguel não é mais compatível com seu valor de mercado e (ii) a demonstração, pela apresentação de documentos contábeis, de forte queda no faturamento da empresa. Em relação a cada uma dessas situações há uma cautela a ser observada. (i) Quanto à primeira, o que deve ser examinado não é propriamente a queda no valor de venda do imóvel no mercado, mas sim a queda no valor que o mercado estaria disposto a pagar como contrapartida à disponibilização do uso daquele imóvel comercial para a finalidade prevista no contrato em curso. (ii) Quanto à segunda, a queda no faturamento não é causa, por si só, para a revisão contratual, mas é um indicativo da queda da utilidade da prestação do locador, esta sim apta a ensejar a revisão contratual3.
Existe, ainda, outro caminho argumentativo que nos conduziria às mesmas conclusões. Passemos à expô-lo.
Há uma regra geral no Direito Civil, contemplada em diversos dispositivos legais (ex. CC/02, arts. 238-241), de que a coisa perece para o dono (res perit domino). Quer-se dizer com isso que, em princípio – a vontade das partes e regras especiais podem excepcioná-la (ex. CC/02, art. 524) –, é o dono do bem que arca com o prejuízo decorrente da sua deterioração total (também denominada "perda") ou parcial.
Não é por outra razão que, finda a locação, o locatário deve restituir o imóvel, "no estado em que o recebeu, salvo as deteriorações decorrentes do seu uso normal" (lei 8.245/91, art. 23, III). O prejuízo representado pelas deteriorações decorrentes do uso normal do imóvel é do seu proprietário (no caso, do locador) e não do possuidor direto (locatário).
Importante perceber-se que deterioração física não se confunde com deterioração jurídica; da mesma forma que divisibilidade física não se confunde com divisibilidade jurídica. Um par de brincos é fisicamente divisível (em dois brincos), mas não é juridicamente divisível, porque dessa divisão resulta uma considerável diminuição do valor de cada uma das unidades, caso se tente vendê-las separadamente, além prejudicar o uso a que o brinco se destina (CC/02, arts. 87 e 88), tendo em vista que, geralmente, as pessoas desejam usar o par de brincos e não apenas um deles.
Diversamente do que acontece com a divisibilidade jurídica, não há dispositivo legal que cuide explicitamente da deterioração jurídica, mas não devem haver dúvidas de que um bem se deteriora juridicamente também de outras formas, além do perecimento físico. No que mais de perto nos interessa, um bem se deteriora juridicamente também quando sua finalidade é parcial ou totalmente inviabilizada e quem deve arcar com o prejuízo daí resultante é o seu proprietário (res perit domino).
Se, por um lado, é dever do locatário pagar pontualmente o aluguel (lei 8.245/91, art. 23, I); por outro, está o locador obrigado a "entregar ao locatário o imóvel alugado em estado de servir ao uso a que se destina" e a "manter, durante a locação, a forma e o destino do imóvel" (lei 8.245/91, art. 22, I e III).
Esse entendimento (deterioração jurídica) é ainda alicerçado pelo art. 567 do Código Civil (que trata da locação de coisas), que não encontra regulação contrária na Lei de Locações de Imóveis Urbanos (e, por isso, trata-se de norma geral a ela aplicável4), que estipula: "Art. 567. Se, durante a locação, se deteriorar a coisa alugada, sem culpa do locatário, a este caberá pedir redução proporcional do aluguel, ou resolver o contrato, caso já não sirva a coisa para o fim a que se destinava"5.
Manter, durante a locação, o destino do imóvel, significa que o locador não pode, intencional ou culposamente, alterar-lhe o destino. Mas significa também que os prejuízos resultantes da frustração involuntária do seu destino devem ser por ele arcados.
4 - Conclusão
Apesar de ser provável que o leitor já tenha percebido isso ao longo do texto, há algo que precisa ser explicitamente enunciado: este artigo dá as respostas jurídicas às situações propostas, mas não soluções prontas e acabadas para os problemas que possam existir em cada uma das relações locatícias vigentes.
De que adianta o locador do imóvel residencial ter direito ao pagamento integral e pontual do aluguel, se o locatário não tiver condições de pagá-lo? Não é exagero afirmar que, cientes de uma incapacidade econômica temporária do locatário, a maioria dos locadores optará por transigir quanto ao ponto, concedendo um desconto ou adiando o pagamento de uma parte ou de todo o aluguel.
É isso ou os aborrecimentos inerentes a um processo: gastos com advogado e custas judiciais, a demora em se obter e efetivar o despejo, a possibilidade de o locatário pagar em Juízo (já desgastada a relação entre as partes) ou mesmo o risco de se perder a causa (ainda que pequeno, esse risco sempre existe; processo é incerteza quanto ao resultado, sempre); para não se falar, ainda, no risco bastante significativo de não se conseguir voltar a alugar o imóvel de imediato pelo mesmo valor.
De que adianta o locatário do imóvel comercial, por sua vez, ter direito a não pagar o aluguel ou ao seu abatimento, caso haja oposição do locador, enquanto o contrato não for judicialmente revisto? Ter, em princípio, esse direito, não lhe torna certo o ganho de causa, nem afasta a possibilidade, bastante concreta, de que o locador permaneça realizando a cobrança do aluguel pelo seu valor integral, com ameaça, inclusive, de negativação do nome do devedor e rescisão do contrato caso esse valor não seja pago (ainda que o despejo apenas possa ocorrer, de forma coercitiva, via demanda de despejo – lei 8.245/91, art. 5º).
Isso é para que se demonstre que problemas complexos não comportam soluções simples. As respostas jurídicas podem ser simples. As soluções concretas para os problemas da vida jamais. É como disse o jornalista norte americano Henry Louis Mencken: "Para todo problema complexo, existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada"6 (em tradução livre).
Oportuniza-se, então, a pergunta: se não é para resolver problemas concretos, para que, afinal de contas, serve este artigo? Sua utilidade é disseminar informações sobre o direito de cada uma das partes envolvidas em contratos de locação de imóveis urbanos, contribuindo, assim, para uma negociação mais justa entre as partes.
No âmbito das soluções consensuais, os caminhos possíveis são inúmeros e são trilhados de acordo com a própria criatividade das partes (ressalvadas as limitações legais). Além da suspensão ou redução temporária do valor integral ou parcial do aluguel, pode-se propor, por exemplo: (i) o desconto do valor do aluguel de eventual caução que tenha sido prestada em dinheiro, com substituição da garantia por alguma de outra modalidade ou (ii) a estipulação de reajuste do valor do aluguel limitado temporariamente a teto máximo inferior à inflação ou (iii) mesmo a suspensão temporária do reajuste do valor do aluguel.
Mas todo esse espectro de possibilidades fica comprometido se as partes não conhecerem os seus direitos. Sem informação sobre os direitos, próprios e alheios, torna-se impossível avaliar os termos de um acordo. A avaliação é subjetiva, mas obviamente não é imotivada ou irrefletida.
Somente aquele que conhece as implicações de um não-acordo tem como saber se um acordo vale a pena. Enfim, quando não se sabe o que se quer evitar, não há como se saber o que se está disposto a fazer.
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1 Confira-se: MAZZEI, Rodrigo; CALMON NOGUEIRA DA GAMA, João Felipe; SENRA, Alexandre. O que se fazer com o valor das mensalidades escolares no Brasil no contexto da pandemia de COVID-19? Acesso em 20/4/ 2020.
2 É o dinheiro, por excelência, bem fungível. O que isso quer dizer? Quer dizer, valendo-nos de exemplo de fácil compreensão, que o valor (em papel-moeda) de R$ 100,00 que se tenha na carteira pode ser substituído por coisa de mesma espécie, qualidade e quantidade, ou seja, pela mesma quantia que, por exemplo, já se possua em banco, ou que sobrevenha de economia de despesas ou da venda de algum ativo/bem ou que se tome de empréstimo.
3 Destacamos que por ser este um dos critérios para a revisão do contrato de locação (e não o impacto em faturamento, que serve, entretanto, de indicativo do decréscimo de utilidade da prestação do locador), considerações sobre a implementação de outros custos por parte do locatário (e que até tenham reduzido/minorado o impacto financeiro) não interferem na aferição do direito à revisão contratual e tampouco na quantificação da redução proporcional do valor do aluguel. Imaginemos que uma loja de roupas, proibida de funcionar temporariamente, passe a revender seus produtos por meio de delivery (já que inútil o imóvel locado para a revenda presencial de roupas realizada até então). Nesse caso, eventuais custos (por exemplo, publicidade em internet e custeio de entregas) pelo locatário (a quem interessa aumentar o percentual de redução do valor de aluguel) não se refletirão na maior diminuição do valor do aluguel, mesmo porque o art. 393, caput, CC/02, prevê que outros prejuízos não serão arcados pelo devedor (no caso, o devedor da prestação de disponibilizar o imóvel a fim a que se destina e de forma útil é do locador). Por sua vez, o locador não pode se valer da queda menor no faturamento por adoção de medidas de reformulação de modelo de negócios do locatário para indicar inexistir a queda de utilidade de sua prestação (inibindo a revisão ou admitindo-a em percentual mínimo), já que se trata de fato alheio à sua prestação (que suportou decréscimo de utilidade), assim como o aumento do faturamento (por adoção de renovado modelo de negócios) não é causa jurídica para revisão a maior (majoração) do valor do aluguel.
4 A disposição da Lei 8.245/91, em seu art. 26, é específica para reparos urgentes (se feitas em até 10 dias pelo locador, nada há a abater; se os reparos ultrapassarem tal marco temporal, haverá abatimento do aluguel relativo ao período excedente; se os reparos não se realizarem em até 30 dias, pode o locatário resilir o contrato), razão pela qual a norma geral do CC/02 pode ser aqui invocada.
5 Neste ponto, vale destacar lição de Silvio Rodrigues ainda sob a égide do Código Civil de 1916, que dispunha sobre deveres do locador e da responsabilidade pela deterioração (sem culpa do locatário) em seus arts. 1.189 1.190, dispositivos que foram reproduzidos nos artigos 566 e 567 do Código Civil de 2002: "Se, por exemplo, falta água ao prédio alugado, tal fato constitui causa bastante para a rescisão da avença, pois o mesmo não se encontra em estado de servir ao uso a que se destina. [...] Ademais, cumpre ao locador manter a coisa em estado de servir ao uso a que se destina, De modo que lhe incumbe custear as reparações dos estragos advindos à coisa e que não derivam de culpa do locatário. [...] A lei defere ao locatário, em caso de deterioração da coisa alugada, a seguinte prerrogativa: ou rescindir o contrato (se a deterioração for de tal vulto que frustre a sua utilização) ou pedir redução proporcional do aluguel (Cód. Civ., art. 1.190)" (RODRIGUES, Silvio. Direito civil: dos contratos e das declarações unilaterais da vontade. V. III. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 228).
6 No original "Explanations exist; they have existed for all time; there is always a well-known solution to every human problem — neat, plausible, and wrong". (MENCKEN, Henry Louis. Prejudices: Second Series. New York: Alfred A. Knopf, 1920 p. 158).
__________
BRASIL. Código Civil de 1916. Acesso em: 21 abr. 2020.
BRASIL. Código Civil de 2002. Acesso em: 21 abr. 2020.
BRASIL. Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991. Acesso em: 22 abr. 2020.
MAZZEI, Rodrigo; CALMON NOGUEIRA DA GAMA, João Felipe; SENRA, Alexandre. O que se fazer com o valor das mensalidades escolares no Brasil no contexto da pandemia de COVID-19? Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2020.
MENCKEN, Henry Louis. Prejudices: Second Series. New York: Alfred A. Knopf, 1920 p. 158.
RODRIGUES, Silvio. Direito civil: dos contratos e das declarações unilaterais da vontade. V. III. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 228.
__________
*Alexandre Senra é mestre (UFES) e procurador da República no Espírito Santo.
*João Felipe Calmon Nogueira da Gama é pós-graduado (FDV) e mestre (UFES). Advogado e juiz leigo do TJ/ES.