Atualmente, temos observado uma proliferação de apresentações de músicos por meio de lives, divulgadas ao vivo em mídias e redes sociais. Essa forma de exposição ganhou especial popularidade a partir da pandemia de coronavírus. O isolamento social acabou gerando um aumento da demanda por bens culturais acessados de forma remota, entre eles as lives musicais.
Essa forma de apresentação tem gerado dúvidas no meio artístico: como fica a questão dos direitos autorais sobre as obras executadas nas lives? É devido algum pagamento a compositores e músicos? Para compreendermos esses pontos, é preciso explicar a legislação de direitos autorais e o posicionamento do judiciário brasileiro a respeito do uso de obras na internet.
No Brasil, o tema é regido pela lei 9.610/98 (Lei de Direitos Autorais – LDA), que alcança, basicamente, obras de caráter artístico, cultural e científico. A legislação estabeleceu um sistema declaratório de proteção, o que significa que não é obrigatório qualquer tipo de registro para que o titular tenha um direito de exclusividade de uso sobre seu material. Assim, a proteção jurídica surge a partir da própria criação da obra. Entretanto, apesar de serem facultativos, os procedimentos de registro são recomendáveis, pois podem ser importantes para provar a titularidade do direito em um eventual conflito.
Sob o aspecto patrimonial, relacionado ao direito de uso exclusivo das criações, existem duas espécies no direito autoral: direitos de autor propriamente ditos e direitos conexos. Os primeiros surgem com a efetiva criação da obra e, no caso dos compositores, duram por setenta anos contados do dia primeiro de janeiro do ano seguinte à morte do autor. Os segundos não envolvem um ato de criação desse tipo, mas estão próximos do mesmo e são relacionados, principalmente, à difusão da obra. Na lei 9.610/98, temos três tipos de titulares de direitos conexos: os intérpretes/executantes1, os produtores fonográficos2 e as empresas de radiodifusão3. Assim, os direitos conexos geram um direito de exclusividade sobre uma interpretação de um músico ou ator, sobre um fonograma/gravação ou sobre o sinal transmitido por uma empresa de radiodifusão. Duram por setenta anos contados do dia primeiro de janeiro do ano seguinte à gravação fonográfica, à emissão do sinal ou à execução da interpretação pelo artista.
A legislação prevê ainda a existência dos chamados direitos morais na esfera autoral, que conferem certas prerrogativas ao criador da obra. Uma das mais importantes é o crédito de paternidade, que deve ser concedido ao autor em qualquer uso de sua criação, inclusive os devidamente autorizados. Os direitos morais são inalienáveis e irrenunciáveis, de modo que devem ser respeitados mesmo se o criador transferir seus direitos patrimoniais.
Em relação às lives, a questão diz respeito especialmemente a uma forma de uso denominada “execução pública”, prevista no art. 68 da LDA e que depende de autorização dos titulares dos direitos autorais das obras utilizadas4. No caso das músicas, a lei 9.610/98 atribuiu poder ao Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD) para, em nome dos titulares dos direitos, realizar a cobrança por esse tipo de uso5.
Assim, para avaliar a questão, é necessário entender o próprio conceito de execução pública. Pela legislação, trata-se de “utilização de composições musicais ou lítero-musicais, mediante a participação de artistas, remunerados ou não, ou a utilização de fonogramas e obras audiovisuais, em locais de frequência coletiva, por quaisquer processos, inclusive a radiodifusão ou transmissão por qualquer modalidade, e a exibição cinematográfica”6.
Logo, um ponto fundamental para compreensão do tema é analisar o que significa “local de frequência coletiva”, pois este é um fator determinante para que determinado uso seja considerado ou não uma forma de execução pública da obra. Pela LDA, tal local é qualquer lugar “onde se representem, executem ou transmitam obras” de modo a alcançar um grupo de ouvintes7. Porém, como as lives são transmitidas de forma remota, naturalmente pode surgir uma dúvida, porque nenhuma das pessoas que assistem a apresentação está no mesmo local que o artista. Além disso, o art. 68 da LDA, não menciona expressamente as lives como uma espécie de execução pública.
Porém, uma análise das decisões judiciais a respeito dos direitos autorais na internet não deixa dúvidas sobre a questão. Para tanto, é importante destacar o julgamento do Resp 1.559.264/RJ, decidido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em 2017. Nesse caso, a discussão basicamente girou em torno do uso de obras via streaming e se isso configuraria um tipo de execução pública, considerando a forma de transmissão via internet.
Ao julgar a ação, o STJ deixou claro que, do ponto de vista legal, o uso das obras autorais na internet não difere em absolutamente nada da sua exploração por outros meios, como rádio e TV. Mais ainda: as plataformas digitais são consideradas locais de frequência coletiva e, portanto, o uso de músicas nesse ambiente é uma forma de execução pública, sujeita a todas as regras normais da Lei de Direitos Autorais:
Logo, a exploração por meio da internet distingue-se das outras formas de uso de obras musicais e fonogramas (ex. rádio e TV) tão somente pelo modo de transmissão, tratando-se, rigorosamente, da utilização do mesmo bem imaterial, o que implica na incidência de idêntica disciplina jurídica. (...) Logo, o que caracteriza a execução pública de obra musical pela internet é a sua disponibilização decorrente da transmissão em si considerada, tendo em vista o potencial alcance de número indeterminado de pessoas. Além disso, é de fácil percepção que tanto o conceito de comunicação ao público (art. 5º, V, da Lei nº 9.610/1998) - ato mediante o qual a obra é colocada ao alcance do público, por qualquer meio ou procedimento -, quanto o de execução pública (art. 68, §§ 2º e 3º, da Lei nº 9.610/1998) são de tal modo abrangentes que conduzem à conclusão de que a noção de local de frequência coletiva compreende os espaços físico e digital, incluindo-se neste último as plataformas digitais, notadamente um ambiente que alcança número indeterminado e irrestrito de usuários, existentes não mais em um único lugar ou país, mas em todo planeta, o que eleva exponencialmente a capacidade de exploração econômica das obras. (STJ, Resp 1.559.264/RJ, Voto do relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, julgamento em 08.02.17)
O julgamento deixou ainda explícito que, por se tratar de execução pública musical, a transmissão via internet das obras implica na possibilidade de cobrança de direitos autorais pelo ECAD:
À luz do art. 29, incisos VII, VIII, "i", IX e X, da Lei nº 9.610/1998, verifica-se que a tecnologia streaming enquadra-se nos requisitos de incidência normativa, configurando-se, portanto, modalidade de exploração econômica das obras musicais a demandar autorização prévia e expressa pelos titulares de direito.
De acordo com os arts. 5º, inciso II, e 68, §§ 2º e 3º, da Lei Autoral, é possível afirmar que o streaming é uma das modalidades previstas em lei, pela qual as obras musicais e fonogramas são transmitidos e que a internet é local de frequência coletiva, caracterizando-se, desse modo, a execução como pública.
Depreende-se da Lei nº 9.610/1998 que é irrelevante a quantidade de pessoas que se encontram no ambiente de execução musical para a configuração de um local como de frequência coletiva. Relevante, assim, é a colocação das obras ao alcance de uma coletividade frequentadora do ambiente digital, que poderá, a qualquer momento, acessar o acervo ali disponibilizado. Logo, o que caracteriza a execução pública de obra musical pela internet é a sua disponibilização decorrente da transmissão em si considerada, tendo em vista o potencial alcance de número indeterminado de pessoas.
O ordenamento jurídico pátrio consagrou o reconhecimento de um amplo direito de comunicação ao público, no qual a simples disponibilização da obra já qualifica o seu uso como uma execução pública, abrangendo, portanto, a transmissão digital interativa (art. 29, VII, da Lei nº 9.610/1998) ou qualquer outra forma de transmissão imaterial a ensejar a cobrança de direitos autorais pelo ECAD. (STJ, Ementa do Resp 1.559.264/RJ, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, julgamento em 08.02.17)
Assim, da mesma forma que o streaming é considerado uma forma de execução pública de obras autorais, as lives claramente também o são. Isso fica evidente pela a leitura do julgamento do REsp 1.559.264 pelo STJ, que indicou que qualquer forma de disponibilização de acesso à obra pela internet se enquadrará como um tipo de execução pública. Não interessa se o evento é ao vivo ou não: o fator determinante é a transmissão das músicas a uma coletividade de ouvintes.
Seguindo esse raciocínio, o fato de a live ser patrocinada ou não também não gera qualquer impacto em relação à questão dos direitos autorais e não descaracteriza o evento com um tipo de execução pública. Isso porque a existência (ou não) de um patrocinador não muda o fato de que há a disponibilização das obras para um universo de pessoas, por meio da internet/plataformas digitais, o que o STJ já considerou serem elementos que configuram um tipo de execução pública, conforme julgamento do REsp 1.559.264.
Há ainda observações adicionais sobre o caso. É um equívoco considerar que as lives não seriam um tipo de execução pública simplesmente porque não estão previstas expressamente na lei 9.610/98. Isso é irrelevante, uma vez que a lista de espaços indicados no art. 68, §3º da LDA como “locais de frequencia coletiva” é apenas exemplificativa, não esgotando o assunto. Como destacado na jurisprudência do STJ, não interessa se o ambiente é físico/presencial ou virtual. Havendo disponibilização da obra para acesso por um universo de pessoas, será o caso de execução pública.
Nesse sentido, importante notar que não há nenhuma referência à palavra streaming na Lei de Direitos Autorais, e isso não impediu que o STJ considerasse esse tipo de uso como execução pública musical, sujeita inclusive à cobrança pelo ECAD. Na verdade, em nenhuma parte da LDA há sequer menção à própria internet (sobretudo porque se trata de uma lei de 1998) e é bastante claro que o uso de obras artísticas nesse ambiente virtual deve obedecer a legislação de direitos autorais.
Outro ponto que poderia causar dúvidas é o fato de as lives normalmente serem gratuitas para o público. Também considerando a jurisprudência do STJ, a cobrança (ou não) de ingressos ou de outra condição para acesso ao evento é igualmente irrelevante. A gratuidade para o público não afasta, por si só, a aplicação da legislação de direitos autorais e nem a configuração do ato como execução pública. Nesse sentido, é interessante destacar os precedentes relacionados aos festejos populares de rua, como carnaval e festa junina. Já há muito tempo o STJ considera que os titulares dos direitos autorais e conexos devem ser remunerados pelo uso de suas obras nesses casos, mesmo não havendo cobrança de ingressos:
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. ALEGAÇÃO GENÉRICA. SÚMULA 284/STF. ECAD. COBRANÇA DE DIREITOS AUTORAIS. EXECUÇÃO PÚBLICA DE MÚSICAS. MUNICÍPIO. PAGAMENTO. FESTA DE CARNAVAL. ANO DE 2000. LEI 9.610/98.
1. Alegação genérica, sem a indicação incisiva do dispositivo, supostamente, ofendido, além de não atender à técnica própria de interposição do recurso especial, configura deficiência de fundamentação. Inteligência da Súmula 284/STF.
2. "A utilização de obras musicais em espetáculos carnavalescos gratuitos promovidos pela municipalidade enseja a cobrança de direitos autorais à luz da novel Lei n. 9.610/98, que não mais está condicionada à auferição de lucro direto ou indireto pelo ente promotor." (REsp 524.873/ES, rel. ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 22.10.03, DJ 17.11.03, p. 199)
3. A interposição, nesta Corte, de agravo regimental manifestamente infundado torna forçosa a aplicação da multa prevista no artigo 557, § 2º, do Código de Processo Civil.
4. Agravo regimental a que se nega provimento, com aplicação de multa.
(STJ, AgRg no Ag 1363434 / PR, relator ministro Luis Felipe Salomão, julgamento em 28.06.11)
Vale também ressaltar que, caso a live seja gravada, teremos ainda um outro uso das obras: a reprodução8. Isso não se confunde com a execução pública e, por essa razão, encontra-se fora do escopo de qualquer pagamento feito ao ECAD. Esse é um ponto importante, porque, pela lei 9.610/98, eventual permissão para tocar as canções não implica, automaticamente, em anuência para gravação ao vivo das mesmas[9]. Logo, gravar a live demanda autorização específica por parte dos titulares dos direitos autorais envolvidos e também dos intérpretes/executantes, que têm direitos conexos sobre a sua apresentação.
Assim, a conclusão que se chega é que a realização de uma live deve observar a legislação de direitos autorais, como espécie de execução pública e, dependendo do caso, também como reprodução caso haja gravação. Os titulares dos direitos autorais das obras devem ser devidamente remunerados, o mesmo valendo para os direitos conexos dos intérpretes e produtores fonográficos quando houver uso de música previamente gravada (como apresentação de DJs, por exemplo). O fato de se tratar de uma nova forma de interação entre os artistas e seu público não justifica o desrespeito à legislação autoral.
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1 Lei 9.610/98
Art. 5º Para os efeitos desta Lei, considera-se:
XIII - artistas intérpretes ou executantes - todos os atores, cantores, músicos, bailarinos ou outras pessoas que representem um papel, cantem, recitem, declamem, interpretem ou executem em qualquer forma obras literárias ou artísticas ou expressões do folclore.
2 Art. 5º, IX - fonograma - toda fixação de sons de uma execução ou interpretação ou de outros sons, ou de uma representação de sons que não seja uma fixação incluída em uma obra audiovisual;
XI - produtor - a pessoa física ou jurídica que toma a iniciativa e tem a responsabilidade econômica da primeira fixação do fonograma ou da obra audiovisual, qualquer que seja a natureza do suporte utilizado;
3 Art. 5º, XII - radiodifusão - a transmissão sem fio, inclusive por satélites, de sons ou imagens e sons ou das representações desses, para recepção ao público e a transmissão de sinais codificados, quando os meios de decodificação sejam oferecidos ao público pelo organismo de radiodifusão ou com seu consentimento;
4 Art. 68. Sem prévia e expressa autorização do autor ou titular, não poderão ser utilizadas obras teatrais, composições musicais ou lítero-musicais e fonogramas, em representações e execuções públicas.
5 Art. 99. A arrecadação e distribuição dos direitos relativos à execução pública de obras musicais e literomusicais e de fonogramas será feita por meio das associações de gestão coletiva criadas para este fim por seus titulares, as quais deverão unificar a cobrança em um único escritório central para arrecadação e distribuição, que funcionará como ente arrecadador com personalidade jurídica própria e observará os §§ 1º a 12 do art. 98 e os arts. 98-A, 98-B, 98-C, 99-B, 100, 100-A e 100-B.
6 Art. 68, § 2º Considera-se execução pública a utilização de composições musicais ou lítero-musicais, mediante a participação de artistas, remunerados ou não, ou a utilização de fonogramas e obras audiovisuais, em locais de frequência coletiva, por quaisquer processos, inclusive a radiodifusão ou transmissão por qualquer modalidade, e a exibição cinematográfica.
7 Art. 68, § 3º Consideram-se locais de frequência coletiva onde se representem, executem ou transmitam obras literárias, artísticas ou científicas, como teatros, cinemas, salões de baile ou concertos, boates, bares, clubes ou associações de qualquer natureza, lojas, estabelecimentos comerciais e industriais, estádios, circos, feiras, restaurantes, motéis, clínicas, hospitais, órgãos da administração pública direta, autárquica e fundacional, empresas estatais, meios de transporte de passageiro terrestre e aéreo, espaços públicos e comuns de meios de hospedagens e de meios de transporte de passageiros marítimo e fluvial. (Redação dada pela Medida Provisória 907, de 2019)
8 Art. 5º Para os efeitos desta Lei, considera-se:
VI - reprodução - a cópia de um ou vários exemplares de uma obra literária, artística ou científica ou de um fonograma, de qualquer forma tangível, incluindo qualquer armazenamento permanente ou temporário por meios eletrônicos ou qualquer outro meio de fixação que venha a ser desenvolvido;
9 Art. 31. As diversas modalidades de utilização de obras literárias, artísticas ou científicas ou de fonogramas são independentes entre si, e a autorização concedida pelo autor, ou pelo produtor, respectivamente, não se estende a quaisquer das demais.
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*Renato Dolabella Melo é doutor e mestre em Propriedade Intelectual e Inovação pelo INPI. Mestre em Direito Econômico pela UFMG. E advogado da Dolabella Advocacia e Consultoria.