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Responsabilidade Civil por falta de vagas em hospital no período de pandemia

O primeiro caso que se tem notícia foi identificado em 31.12.19 na cidade de Wuhan, localizada no interior da China, e populada por mais de 11 milhões de habitantes. Acredita-se que tenha surgido em decorrência da ingestão de animais silvestres.

5/5/2020

No início do corrente ano, o mundo foi surpreendido com a pandemia que está em curso, que fez parar do futebol aos filmes de Hollywood, atravessando escolas, restaurantes e todo tipo de comércio ou serviço considerado não essencial.

O primeiro caso que se tem notícia foi identificado em 31.12.19 na cidade de Wuhan, localizada no interior da China, e populada por mais de 11 milhões de habitantes. Acredita-se que tenha surgido em decorrência da ingestão de animais silvestres.

Os coronavírus são uma grande família de vírus com alguns causadores de doenças menos graves, como o resfriado comum, e outros mais graves, como MERS e SARS. Alguns transmitem facilmente de pessoa para pessoa, enquanto outros não.1

O Sars-Cov-2 (causador da covid-19) entra no corpo humano por contato com fluidos corporais, sendo que a forma mais comum dessa transmissão é a partir de pequenas gotículas de saliva que vão de um paciente infectado para outro que não possui o vírus.

O coronavírus tem um formato que facilita sua ação nas células humanas. Seu corpo é envolvido com uma camada de gordura e proteína que se parece com uma "coroa de espinhos", é daí que vem o nome "corona". É essa estrutura pontuda que tem a capacidade de se conectar às células humanas.2

Em 11.03.20 a Organização Mundial da Saúde classificou o covid-19 como uma pandemia, o que significa dizer que o vírus está disseminado mundialmente, circulando em todos os continentes. Estima-se que até presente momento mais de 3.000.000 de pessoas foram infectadas e quase 220.000 morreram em decorrência das complicações causadas pelo coronavírus.3

Em 20.03.20 o Ministério da Saúde, por intermédio da portaria 454/20, declarou que o Brasil se encontra em estado de transmissão comunitária do coronavírus (quando não há vínculo epidemiológico a um caso confirmado). No país, mais de 85.000 pessoas testaram positivo para o covid-19 e mais de 5.900 morreram.4

Como medida não farmacológica ao combate do covid-19 recomendou-se o isolamento daqueles que testaram positivo e dos que com estes tiveram contato. Tendo sido ainda decretada quarentena em diversos Estados e municípios da Federação.

Não obstante, o que se nota é um crescente no contágio do vírus, que já está culminando com a falta de leitos hospitalares, de UTI e respiradores, utilizados nos pacientes que apresentam a síndrome respiratória aguda grave.5 O colapso do sistema de saúde de alguns Estados já é uma realidade, ao ponto de um hospital situado no Rio de Janeiro ter adquirido um container para armazenar os corpos de vítimas do covid-196 e Manaus estar realizando sepultamentos noturnos e empilhando caixões.7

Sabe-se que a falta de vagas em hospitais, em situação normal de temperatura e pressão, é enxergada pelos tribunais como falha no serviço, seja aquele público essencial de saúde, ou o suplementar, prestado por entidades privadas.8

A questão que se busca dirimir no presente artigo está em saber se o atual estado de pandemia elide essa responsabilidade civil atribuída ao sistema de saúde público e privado, em casos de falta de vagas em hospitais.

O caput do artigo 393, do Código Civil, preconiza que “o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.” Por sua vez, o parágrafo único do citado dispositivo esclarece que “o caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.

Segundo Washington de Barros Monteiro “a força maior é a excludente de responsabilidade, prevista, no art. 393, como o ‘fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir’, sem que seja realizada distinção do caso fortuito nesse dispositivo; a principal característica dessa excludente da responsabilidade é a inevitabilidade do evento”.9

Embora resida grande divergência acerca dos conceitos de caso furtuito e força maior10, nos parece que a opção legislativa foi no sentido de atribuir a ambos institutos o mesmo efeito exoneratório ao devedor diante de circunstâncias imprevisíveis e irresistíveis[xi], que de fato é o que interessa ao presente artigo.

Como bem elucida Fabrício Zamprogna Matiello “a caracterização tanto de caso fortuito como da força maior reclama a presença dos seguintes elementos: a) acontecimento estranho à vontade do devedor e não causado por culpa, já que a presença desta afasta o reconhecimento da excludente de responsabilidade; b) superveniência do fato em relação ao liame obrigacional existente entre as partes, pois se avença é firmada durante a ocorrência anômala nenhuma das partes poderá invocá-la como esquiva de responsabilidade; c) desproporção entre o evento e a capacidade de contenção do mesmo pelo devedor, porque se ele puder evitar ou impedir a consumação do prejuízo e não o fizer terá agido com culpa, restando com isso patenteada a responsabilidade.12

Por sua vez, Hamid Charaf Bdine Junior entende que “a característica mais importante dessas excludentes é a inevitabilidade, isto é, a impossibilidade de serem evitadas pelas forças humanas. Os requisitos para a configuração do caso fortuito ou da força maior são os seguintes: o fato deve ser necessário e não determinado por culpa do devedor; o fato deve ser superveniente e inevitável; o fato deve ser irresistível – fora do alcance do poder humano.”13

Tecidos estes comentários iniciais, passaremos a tratar da expressiva disseminação do tão comentado coronavírus (SARS-CoV-2) como excludente de responsabilidade das operadoras de saúde suplementar nos casos de inadimplemento contratual involuntário ocasionado seja pela superlotação de leitos hospitalares, pela falta de vagas em UTI ou ainda por conta da insuficiência de respiradores mecânicos, para o tratamento de todos os indivíduos que apresentarem a síndrome respiratória em sua forma grave e aguda.

Importa deixar claro que tal circunstância somente encontra guarida em situação extrema – e que fazemos voto que não ocorra –, já que a força maior somente poderá ser alegada como excludente pelas operadoras se comprovada a impossibilidade de cumprir a obrigação, ou seja, que todos os leitos e respiradores de suas redes credenciadas e referenciadas encontrem-se indisponíveis, configurando verdadeira situação de caos, irresistível e que não guarda relação com o risco da atividade empreendida pelos coadjuvantes do sistema de assistência suplementar à saúde.

Nesse sentido, é preciso o escólio de Agostinho Alvim, para quem “só se excluiria a responsabilidade pela força maior (caso fortuito externo), isto é, por um fato sem ligação alguma com a empresa ou negócio, como, p. ex., fenômenos naturais (terremoto, geada), ordens emanadas do Poder Público (fait de prince), e outros semelhantes.”14

Pois bem. Nessas alturas, restam claros os esforços da iniciativa pública e privada no sentido de aumentarem os leitos hospitalares e de UTI, com a construção dos nosocômios denominados de campanha15, e providenciarem a aquisição de equipamentos de proteção e respiradores16

Também, com algumas exceções (que lamentavelmente se concentram na cúpula do Poder Executivo Federal), as autoridades públicas se esforçam para manter a população das cidades com maior densidade, em isolamento social como forma de achatar a curva de contágio e garantir que o sistema de saúde suporte a forte demanda a qual está sendo submetido.17

Nesse cenário, não nos afigura possível estabelecer o regime de responsabilidade civil que se estabeleceu em torno da falta de vagas hospitalares e de UTI, em condições de normalidade, aplicável aqui, em tudo, a ponderação que fez o desembargador Cesar Ciampolini: “Em tempo de guerra, que é, mutatis mutandis, aquele que vivemos em face da pandemia do coronavírus, assim deve realmente ser.”18

Ao comentar essa decisão na rede social Linkedin, o eminente desembargador Carlos Alberto Garbi ponderou que o “Judiciário será chamado a intervir, não para decretar a morte do contrato, mas para salvá-lo”.19

A tomar como exemplo o que estamos assistindo em países europeus e nos Estados Unidos, é de se imaginar que atribuir aos atores do sistema privado de saúde, responsabilidade civil decorrente dos graves danos que a falta de vagas causará à sociedade representaria a morte dos contratos que formam o liame obrigacional existente entre beneficiários de planos de saúde, operadoras, hospitais e etc. Isso no momento em que a relevante função social desempenhada por tais instrumentos ganha extrema notoriedade.

Diante de situações catastróficas e imprevisíveis tal como a que vivemos hoje, é preciso relativizar princípios no objetivo de preservação de um bem maior. Esse raciocínio se sustenta mesmo diante da submissão dessas relações aos ditames do Código de Defesa do Consumidor, como inclusive já decidiu o Superior Tribunal de Justiça.20

Na visão do eminente ministro Paulo de Tarso Sanseverino “existem situações concretas em que acontecimentos externos relevantes interferem na relação de causalidade estabelecida entre o produto ou o serviço e o dano que cortam o nexo de causalidade e que não podem ser desprezadas pelo juiz. Por isso, devem-se admitir outras causas de exclusão de responsabilidade que se mostram compatíveis com o sistema de responsabilidade civil adotado pelo CDC, inclusive o caso fortuito e a força maior.”21

Portanto, é seguro afirmar que a ausência de vagas em hospital, leitos em UTI ou respiradores, que em situação de normalidade nos parece se enquadrar ao conceito de fortuito interno,22 não enseja o mesmo tratamento diante de eventos ocasionados por força maior, como ocorrem com aqueles decorrentes da pandemia da covid-19, sob pena de se inviabilizar até mesmo a continuidade da prestação de serviço essencial pela falta de verba, que se destinaria ao pagamento de um imensurável numerário a título de eventuais indenizações.

Nesse contexto, prestigiar o interesse público, em vista da relevante função social desempenhada pelos atores da assistência suplementar à saúde, representa adotar medidas e dicções que promovam a preservação e a higidez econômico-financeira do mercado.23

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1 Clique aqui. Acesso em 08.04.20.

2 Clique aqui acesso em 17.04.20.

3 Clique aqui acesso em 30.04.20.

4 Clique aqui acesso em 30.04.20.

5 Clique aqui acesso em 30.04.20.

6 Clique aqui acesso em 17.04.20.

7 Clique aqui acesso em 30.04.20.

8EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO. PREQUESTIONAMENTO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. AUSÊNCIA DE VAGA EM UTI NA REDE PÚBLICA ESTADUAL DE SAÚDE. ESTADO DO RIO DE JANEIRO. PACIENTE COM ACIDENTE VASCULAR HEMORRÁGICO. MORTE. PLEITO INDENIZATÓRIO DO FILHO E DA COMPANHEIRA DO DE CUJUS. 1. Falha na prestação dos serviços do réu. Ausência de disponibilização de vaga em UTI para tratamento da doença do autor. 2. Dever de assegurar a todos o direito à saúde. 3. Ocorrência de dano moral. Falecimento do pai e companheiro dos autores. Sofrimento pela perda de um ente familiar. Grave lesão à esfera psicofísica dos autores. 3. (sic.) Majoração do quantum indenizatório para a quantia de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais). 4. Inexistência de omissão, contradição ou obscuridades. 5. Desprovimento do recurso.” (TJRJ, Décima Sexta Câmara Cível, Embargos de Declaração na Apelação Cível 0186357-08.2008.8.19.0001, Rel. Des. Marco Aurélio Bezerra de Melo, j. 21.03.17)

APELAÇÃO CÍVEL. OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C INDENIZATÓRIA. PLANO DE SAÚDE. UNIMED CABO FRIO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. TRANSFERÊNCIA PARA HOSPITAL APTO A REALIZAR ENDOSCOPIA DIGESTIVA ALTA E INTERNAÇÃO EM UTI. AUSÊNCIA DE VAGA NO HOSPITAL DA REDE CREDENCIADA. URGÊNCIA. TRANSFERÊNCIA E INTERNAÇÃO EM UNIDADE DA REDE PRIVADA. DANO MATERIAL. COMPROVAÇÃO. DANO MORAL CONFIGURADO E RAZOAVELMENTE ARBITRADO. DESPROVIMENTO DO RECURSO. (...) 2. Adequando-se as partes à definição de consumidor e prestador de serviço e encontrando-se o contrato em plena vigência, é abusiva a negativa de cobertura contratual, devendo a operadora de plano de saúde autorizar junto à rede credenciada ou mesmo arcar com os respectivos custos ligados ao exame e internação em UTI necessários ao tratamento do associado prescrito pelo médico do hospital credenciado. (...) 5. A impossibilidade de transferência por falta de vagas, quando existia cobertura contratual para o tratamento, surpreende negativamente o consumidor, já evidentemente combalido emocional e fisicamente pelo problema de saúde que o acomete, destacando-se a conduta omissiva da ré em apurar a existência de vaga em sua rede credenciada, causando profundo dissabor que é juridicamente relevante e constitui causa eficiente para gerar danos morais. (...)” (TJRJ, Décima Sétima Câmara Cível, Apelação Cível 0001253-29.2016.8.19.0011, Rel. Des. Elton M. C. Leme, j. 13.11.18)

9 Curso de Direito Civil. Direito das Obrigações, 2ª parte. 34ª ed., São Paulo, Editora Saraiva, 2003, p. 474.

10vários doutrinadores procuram estabelecer diferenças entre caso fortuito e força maior. Sintetizando as seguintes diferenças apresentadas pela boa doutrina: 1. para uns, o caso fortuito é oriundo da força física ininteligente enquanto que força maior deriva de fato de terceiro; 2. outros procuram identificar o caso fortuito como caráter imprevisto ao passo que a força maior indica o caráter invencível do obstáculo; 3. ainda há quem sustente que no caso fortuito a impossibilidade é relativa enquanto que na força maior, a impossibilidade é absoluta. 4. finalmente, temos uma corrente recente que no caso fortuito há impedimento relacionado com a pessoa do devedor ou com sua empresa, ao passo que a força maior deriva de acontecimento externo. Dessa última corrente surgiu a diferenciação de caso fortuito interno e caso fortuito externo, para considerar que somente o último exclui a responsabilidade pelo inadimplemento da obrigação. O primeiro, por dizer, respeito à atividade do devedor, não exclui sua responsabilidade, atribuindo somente ao fortuito externo esse poder.” LEITE, Gisele. Considerações sobre caso fortuito e força maior. Clique aqui acesso em 06.04.20.

11Estes e outros critérios diferenciais adotados pelos escritores procuram extremar o caso fortuito da força maior. Preferível, todavia, não obstante concordar que abstratamente se diferenciem, admitir que na prática os dois termos correspondem a um só efeito, pois nesse sentido marcham nossos Códigos Civis de 1916 e de 2002.” (STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil: doutrina e jurisprudência. 7. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 181)

12 Código Civil Comentado: Lei 10.406, de 10.01.2002. 7 ed. São Paulo: LTr, 2017, p. 221

13 Código Civil Comentado. Doutrina e jurisprudência, cit., p. 282.

14 Da inexecução das obrigações e suas consequências. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1955, p. 337.

15 Clique aqui acesso em 17.04.20.

16 Clique aqui acesso em 17.04.20.

17 Clique aqui acesso em 17.04.20.

18 Decisão monocrática proferida no AI 2061905-74.2020.8.26.0000, em 05.04.20.

19 Postagem efetuada em 14.04.20, acesso em 16.04.20.

20O fato de o artigo 14, § 3° do Código de Defesa do Consumidor não se referir ao caso fortuito e à força maior, ao arrolar as causas de isenção de responsabilidade do fornecedor de serviços, não significa que, no sistema por ele instituído, não possam ser invocadas. Aplicação do artigo 1.058 do Código Civil." (STJ, Terceira Turma, REsp 120.647-SP, Rel. Min. Ministro Eduardo Ribeiro, j. 16.3.2000)

21 Responsabilidade civil no Código do Consumidor e a Defesa do Fornecedor, cit., p. 315.

22 “O fortuito interno, assim entendido o fato imprevisível e, por isso, inevitável ocorrido no momento da fabricação do produto ou da realização do serviço, não exclui a responsabilidade do fornecedor do produto ou da realização do serviço, não exclui a responsabilidade do fornecedor porque faz parte da sua atividade, liga-se aos riscos do empreendimento, submetendo-se a noção geral de defeito de concepção do produto ou de formulação do serviço.” (CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 9 ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 502)

23 Na esteira da recomendação do prof. Leonardo Vizeu Figueiredo (Curso de direito de saúde suplementar: Manual jurídico de planos e seguros de saúde, 2ª ed. rev., atual. e ampl., Rio de Janeiro:Forense, 2012, p. 19.

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*José Carlos Van Cleef de Almeida Santos é advogado sócio titular e Diretor Jurídico do escritório Almeida Santos Advogados.

*Henrique Pires Arbache é advogado gerente do Contencioso Estratégico do escritório Almeida Santos Advogados.

*Felipe Martins Benite é advogado coordenador do Contencioso Estratégico do escritório Almeida Santos Advogados.

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