Uma questão que há muito aflige diversas organizações da sociedade civil e proponentes de projetos de caráter social é o prazo para questionamentos sobre a prestação de contas. É comum observarmos, anos após a conclusão de determinada atividade nesse campo, o envio de notificação por algum órgão de controle questionando a pessoa que executou tal ação. Isso abrange desde projetos culturais ou esportivos executados com recursos obtidos via renúncia fiscal até repasses diretos de recursos públicos a entidades privadas sem fins lucrativos (Terceiro Setor), que atuam em temas de interesse social, como educação, saúde, assistência social ou meio ambiente.
Esse tipo de exigência causa insegurança jurídica aos envolvidos, sobretudo porque é recorrente que os questionamentos surjam muito tempo depois do final dos projetos. Além disso, boa parte dessas diligências recai sobre questões de ordem formal, não sendo objeto de apontamentos sobre resultados ou cumprimento de metas, mas sim sobre a documentação e a parte burocrática das ações. Nesse sentido, uma pergunta é se deveria ou não ser observado um prazo prescricional nesses casos, após o qual não poderiam mais ser realizados questionamentos desse tipo.
Sobre o tema, há um entendimento histórico dos órgãos de controle no sentido de que todos esses casos seriam imprescritíveis, por envolverem recursos públicos diretos ou indiretos/renúncia fiscal. Porém, é fundamental ter uma nova visão sobre essas questões, considerando especialmente as decisões do Supremo Tribunal Federal nos últimos anos.
Em primeiro lugar, é importante destacar que a tese da imprescritibilidade (e, portanto, possibilidade de cobrança a qualquer tempo) está baseada no art. 37, §5º da Constituição da República de 1988:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
(...)
§ 5º A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento.
De imediato, vemos que a parte final dessa norma ressalva as "ações de ressarcimento". Importante destacar que, por conceito, somente pode haver um dever de ressarcir se houver um dano sofrido por alguém. No caso, estaríamos falando de algum prejuízo ao erário, que motivaria medidas de reparação. Apesar de isso soar evidente, são bastante comuns exigências em casos nos quais não se verifica nenhum dano efetivo, apenas questionamentos não relacionados ao resultado da entrega ou que não evidenciam superfaturamento ou desvio de recursos. Ou seja: diversos desses casos se referem a situações nas quais não houve prejuízo. Isso, por si só, já seria suficiente para afastar a tese de imprescritibilidade em várias situações concretas relacionadas a prestação de contas, onde não haja efetivamente um dano que possa motivar um pedido de ressarcimento.
Além da necessária verificação de dano concreto para enquadramento nessa ressalva do art. 37, §5º da CR/88, é fundamental observar a jurisprudência do STF sobre essa norma e a questão da prescrição. Em um primeiro momento, o Supremo Tribunal Federal fixou a tese de repercussão geral 666, após julgar o recurso extraordinário 669.069, no ano de 2016: "é prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil". Porém, mesmo com esse precedente, o entendimento que se seguiu – principalmente por parte de órgãos de controle - foi no sentido de que isso não abrangeria os casos de devolução de recursos públicos, de modo que a polêmica não se resolveu ali.
Em seguida, o STF julgou em 2018 o RE 852.475, do qual resultou a tese de repercussão geral número 897: "são imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa". Aqui houve um avanço, no sentido de deixar claro que os casos de improbidade nos quais haja dolo (onde há intenção deliberada por parte da pessoa) podem ser questionados em qualquer momento. Ou seja: se a pessoa agiu de propósito e obteve para si ganho financeiro ilícito, provocou dano ao erário ou violou princípios jurídicos que regem a Administração Pública1, deve responder por isso a qualquer tempo e não pode invocar em sua defesa uma prescrição pelo decurso do tempo.
- Clique aqui para conferir a íntegra do artigo.
__________
*Renato Dolabella é advogado do Dolabella Advocacia e Consultoria. Doutor e Mestre em Propriedade Intelectual e Inovação pelo INPI. Mestre em Direito Econômico pela UFMG. Pós-graduado em Direito de Empresa pelo CAD/Universidade Gama Filho – RJ. Palestrante e professor de Propriedade Intelectual, Direito Econômico e da Concorrência, Direito do Consumidor, Direito da Cultura e do Entretenimento e Terceiro Setor em cursos de pós-graduação, graduação, capacitação e extensão da Fundação Dom Cabral, do IBMEC, da PUC, da Escola Superior de Advocacia da OAB, da Faculdade CEDIN e da Universidade Estadual do Amazonas.
*Lívia Costa é advogada do Dolabella Advocacia e Consultoria. Pós-graduada em Direito Processual pela PUC Minas. Pós-graduanda em Legal Tech: Direito, Inovação e Startups pela PUC Minas. Bacharel em Direito pela PUC Minas.