Com a aprovação nas casas legislativas e a posterior promulgação da "Lei Anticrime"1, como é popularmente conhecida, foram promovidas alterações substanciais no sistema de justiça criminal. Dentre as principais modificações, chama atenção aquela do crime de estelionato, inserido no artigo 171, do Código Penal, exigindo-se atualmente a representação do ofendido para a propositura da ação penal2.
Sendo assim, a atual regra dependerá da referida condição de procedibilidade para se promover a ação penal. No entanto, exceções foram fixadas nas hipóteses de prática de estelionato contra a administração pública de forma direta ou indireta, contra crianças e adolescentes, pessoas com deficiência mental, maiores de 70 anos ou incapazes, permanecendo vigente a ação penal de iniciativa pública incondicionada. Cumpre mencionar ainda que as modalidades especiais de estelionato (duplicata simulada, prevista no artigo 172, e fraude no comércio, prevista no artigo 175) não sofreram alterações pela nova lei.
Feitas as considerações acima, vale dizer que a modificação traz profundos reflexos e implicações para a persecução penal, sendo imprescindível examinar pontos – positivos e negativos – a partir de uma perspectiva prática e dogmática.
No Código Penal são apresentadas algumas modalidades de ação penal, conforme previsão do artigo 100: pública incondicionada, atual regra no sistema penal, em que o Estado, por meio do Ministério Público, ao tomar conhecimento da prática de um ato delituoso deve dar início à persecução penal; pública condicionada à representação, que restringe a atuação estatal mediante o interesse da vítima ou de seu representante legal, estipulando o prazo decadencial de 6 (seis) meses, a partir do conhecimento da autoria, para levar a conhecimento da autoridade pública; a ação privada, que faculta à vítima ou ao representante legal a apresentação de queixa; e, por fim, a ação penal privada subsidiária da pública, quando o Ministério Público não oferece denúncia no prazo legal.
A reforma do dispositivo gerou dúvidas aos aplicadores do direito, na medida em que não basta a mera comunicação do fato criminoso ao Ministério Público, mas, sim, a formalização do seu interesse em dar início à persecução penal contra o estelionatário. Para tanto, alguns aspectos relevantes merecem análise mais cuidadosa, em especial a questão atinente ao início do prazo decadencial da representação em delitos ocorridos em data anterior à promulgação da lei cuja denúncia ainda não havia sido oferecida pelo órgão acusatório (inquéritos em tramitação ou ainda não instaurados), bem como de que forma se daria a continuidade daqueles processos já em andamento no Poder Judiciário.
Diante disso, é certo que o interesse da vítima protagoniza o início da persecução penal e também traz ônus em caso de não comprovação da prática do delito, ou seja, após formalizada a representação deve ser comprovada a existência do ato ilícito, sob pena de a vítima responder por falsa acusação de crime (artigo 340, do Código Penal3) e figurar como ré em eventual ação indenizatória promovida pelo representado, condição esta que gera discussões tendo em vista a complexidade da apuração das circunstâncias que envolvem grandes fraudes caracterizadas como estelionato.
A partir do que foi exposto, busca-se de forma didática esclarecer quais as possíveis respostas para alguns questionamentos no momento da aplicação das modificações realizadas por meio da lei 13.964/2019 com relação ao crime de estelionato.
De início, importante ressaltar que nos crimes de estelionato praticados após a vigência da lei, o ofendido terá 06 (seis) meses para representar a partir do conhecimento da autoria, sendo este fato incontroverso, consoante sistematiza o artigo 1034, do Código Penal. Aliás, a mudança efetuada é considerada mais benéfica ao acusado, de forma que deve retroagir em seu favor, conforme rege o artigo 5º, XL, da Constituição Federal, notadamente quando se leva em consideração que pode haver implicações na liberdade do indivíduo.
Já com relação aos crimes de estelionato cometidos antes da vigência da nova lei, existirão três casos que serão particularmente examinados, de acordo com a fase da persecução penal, ou seja, inquéritos policiais instaurados e não instaurados, assim como relativamente a ações penais em curso.
A primeira situação surge nos cenários em que ainda não houve a instauração de investigações criminais pela infração penal. Se ainda não houve conhecimento de quem praticou o ilícito, não haverá qualquer problema quanto à nova legislação, uma vez que indiscutivelmente o prazo decadencial iniciar-se-á somente com o conhecimento da autoria. Todavia, nas hipóteses em que se tem ciência da autoria, a questão deverá ser dirimida estipulando-se o prazo de seis meses a partir da entrada em vigência da lei em comento, como forma de garantir ao acusado a possibilidade de apresentar sua representação e dar início à investigação criminal, sob pena de extinção da punibilidade (art. 107, IV, CP).
A segunda situação se revela no quadro em que o inquérito policial foi instaurado antes do advento da nova lei, já com o conhecimento da autoria delitiva. O legislador não se manifestou expressamente a respeito de qual prazo deveria ser concedido ao ofendido neste caso. Ao se valer de eventos anteriores, é concebível defender que a autoridade policial deve intimar a vítima ou seu representante legal para se manifestar no prazo de 30 (trinta) dias, sob pena de conhecimento da decadência e, por sua vez, extinção da punibilidade.
Conforme se verá a seguir, chega-se a esta conclusão por meio da utilização de analogia com o artigo 91, da lei 9.099/19955, quando da sua entrada em vigor em união ao que dispõe o artigo 3º, do Código de Processo Penal6, porquanto esta dificuldade já ocorreu anteriormente e o legislador tratou de evitar maiores dissidências.
Por último, a terceira situação figura como a mais complexa diante das alternativas anteriormente expostas. Nos processos criminais em curso pelo crime de estelionato, a autoridade judicial deverá suspender seu trâmite e intimar a vítima ou seu representante legal para, querendo, oferecer representação?
A resposta é sim. Isso porque, se o legislador compreendeu pela necessidade de anuência da vítima para a promoção da ação penal pelo Ministério Público, referido entendimento deve ser aplicado a todas as ações penais e inquéritos em curso pelo país.
Neste sentido, é plausível asseverar que "o Estado não pode, de ofício, nem sequer determinar uma investigação criminal, muito menos acusar alguém"7. Assim, tratando-se de norma de caráter processual penal material (norma mista) mais benéfica, deve ser aplicada aos processos pendentes do trânsito em julgado, muito embora este não seja o posicionamento adotado por todos os Tribunais no país, como se verá.
Nessa perspectiva, ao relacionar a problemática atinente aos procedimentos em andamento, é possível fazer menção ao artigo 91, da lei 9.099/1995 (Lei dos Juizados Especiais), o qual, em contexto muito semelhante de modificação legislativa determinou que: "nos casos em que esta Lei passa a exigir representação para a propositura da ação penal pública, o ofendido ou seu representante legal será intimado para oferecê-la no prazo de 30 (trinta) dias, sob pena de decadência". Com isso, tal determinação "trouxe à época segurança jurídica, afastando maiores questionamentos"8.
Por este motivo, mostra-se pertinente que os juízes singulares e os Tribunais Superiores adotem uma posição uníssona, com a finalidade de evitar decisões desmedidas e arbitrárias, trazendo garantia e salvaguarda ao direito daquele que fora prejudicado pelo cometimento do crime e que necessariamente deve anuir com o prosseguimento da ação penal, até porque em muitas oportunidades o ônus decorrente da persecução é muito maior do que o prejuízo patrimonial sofrido pelo ofendido.
Desde o início da vigência da novel legislação, discute-se acerca da necessidade ou não de intimação da vítima em processos penais em curso e qual seria o prazo concedido para a formalização de sua representação. À vista disso, o Conselho Nacional de Procuradores-Gerais editou enunciados interpretativos sobre a "Lei Anticrime", salientando que sua interpretação deve ser feita em conformidade com o supramencionado artigo 91, da Lei dos Juizados Especiais, bem como com o artigo 3º, do Código de Processo Penal, assim compreendendo: "nas investigações e processos em curso, o ofendido ou seu representante legal será intimado para oferecer representação no prazo de 30 dias, sob pena de decadência".
Em decisão análoga e invocando exatamente os mesmo argumentos, o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná vem entendendo que as modificações realizadas no artigo 171 devem ensejar a notificação da vítima, seus representantes legais ou sucessores, a fim de que esclarecer o interesse no prosseguimento da ação penal9, de acordo com a terceira posição exposta acima.
Por outro lado, o Ministério Público do Estado de São Paulo também formalizou enunciados com o objetivo de propiciar interpretação uníssona sobre questões não explicitadas na normativa da lei em comento, asseverando que "conhecida a autoria, é necessária a representação da vítima no crime de estelionato se não oferecida a denúncia até a eficácia da lei 13.964/19, observado o prazo decadencial de seis meses a contar de sua intimação". Ou seja, de acordo com o entendimento da instituição, no caso de investigação em curso o prazo deveria ser de 06 (seis) meses para o oferecimento da representação após efetuada a intimação.
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo também teve a oportunidade de se debruçar sobre o tema, de modo que rejeitou recursos apresentados acerca da alegada ausência de condição de procedibilidade sem a efetiva representação do ofendido. O posicionamento prevalecente atualmente é o de que quando realizado boletim de ocorrência, este, por si só é capaz de suprir a representação, sendo possível dispensar o formalismo.
Conforme as decisões prolatadas pelos eminentes julgadores, o que importa é que, no momento do oferecimento da denúncia, a ação penal em delitos de estelionato era pública incondicionada e que tão somente o fato de registrar um boletim de ocorrência é capaz de suprir a representação10. Nessa mesma linha, Rogério Sanches Cunha se posiciona afirmando que "se a inicial (denúncia) já foi ofertada, trata-se de ato jurídico perfeito, não sendo alcançado pela mudança"11, aduzindo que a vítima não deve ser chamada para manifestar seu interesse no prosseguimento do feito. O magistério de Soraia da Rosa Mendes e Ana Maria Martínez considera subsistir nulidade na ausência de representação, invocando o artigo 564, III, "a", do Código de Processo Penal12.
Com isso, considerando as contraposições e argumentos aqui expendidos, considera-se plausível seja procedida à intimação do ofendido tanto nos procedimentos investigativos em trâmite – quando houver o conhecimento da autoria delitiva – quanto naqueles processos penais em curso para, querendo, oferecerem a representação no prazo de 30 (trinta) dias, aplicando analogicamente o disposto nos artigos 91, da lei 9.099/1995, e 3º do Código de Processo Penal, bem como corroborando com o enunciado editado pelo Conselho Nacional de Procuradores-Gerais e o posicionamento adotado por Mendes e Martínez13.
Tal concepção certamente ofertaria segurança jurídica ao considerar as distintas posições empregadas nos julgados aqui colacionados, especialmente ao refletir sobre o fato de que a interpretação surtiu bons efeitos em momento pretérito.
Noutro passo, como ponto positivo da alteração empreendida, há de se destacar a diminuição da intervenção do Estado em algumas situações que dizem respeito tão somente a relação entre particulares, na medida em que aquele que se sentir ofendido deve se manifestar objetivamente a respeito da intenção de obter tutela por meio do direito penal. Caso decida pelo início do processo penal, o ofendido poderá acompanhar ativamente o trâmite processual, elucidando fatos e demonstrando seu direito tanto quanto possível.
Nessa perspectiva, Guilherme Madeira e Luciano Anderson de Souza consideram relevante e favorável a edição desta norma, ressaltando ainda ter havido "perda de oportunidade de previsão do mesmo regramento para todos os crimes patrimoniais perpetrados sem violência ou grave ameaça"14, especialmente ao considerar que a jurisprudência tem entendimento consolidado no sentido de que caso haja ressarcimento da vítima no delito de fraude no pagamento por meio de cheque antes do recebimento da denúncia, é extinta a punibilidade do agente em razão da ausência de prejuízo à vítima. Os autores ainda mencionam que, em termos práticos, diversos ofendidos em atos de estelionato na modalidade simples deixarão de oferecer representação ou se retratarão15.
Por sua vez, no tocante aos delitos cujo bem jurídico tutelado é o patrimônio, "não tendo havido forma de ataque mais séria, razão pela qual o seu titular pode muito bem abrir mão do interesse tutelado ou pouco se importar com o ataque sofrido"16, não subsiste razão, portanto, para mover o aparato judicial do Estado sem a anuência da vítima e seu interesse em ver punido o agente delituoso, sobretudo nos inquéritos e ações penais em que já houve o recebimento da denúncia.
Sob essa ótica, é possível ressaltar que, observando a vasta quantidade de processos relativos à norma em comento e a sobrecarga que acarreta ao Poder Judiciário, levar em consideração a posição da vítima é um fator conveniente e favorável, tendo em vista que ela deverá sopesar se é prudente mover o aparato estatal frente à dimensão do dano suportado.
No entanto, como mencionado anteriormente, o legislador poderia ter avançado ainda mais, ampliando a modificação empreendida no estelionato para outros crimes patrimoniais, como, por exemplo, furto e apropriação indébita, o que já está previsto, inclusive, no Projeto de Lei do Novo Código Penal (PLS 236/2012)17 e pende de aprovação até o momento. Este aspecto também é defendido por Guilherme de Souza Nucci ao apontar que o estelionato não pressupõe violência contra a pessoa18, e por Rogério Sanches Cunha, que menciona que a natureza do furto, "ao menos na maior parte das modalidades, é plenamente compatível com a ação penal que confere à vítima o poder de decidir se o autor do crime deve ser processado pelo Ministério Público"19.
Por conseguinte, é possível concluir que a mudança do legislador é positiva, tendo em vista que confere maior liberdade à vítima em crimes patrimoniais sem violência ou grave ameaça, os quais, muitas vezes, podem ser dirimidos especialmente na esfera cível, de modo a incentivar principalmente outras formas de solução de conflito em detrimento do direito penal.
À luz das considerações expostas acima, denota-se que o Superior Tribunal de Justiça necessariamente examinará o tema em curto espaço de tempo, tanto é que já se vislumbra habeas corpus (573093/SC, rel. Reynaldo Soares da Fonseca) discutindo a matéria retratada no presente ensaio, a fim de se estabelecer parâmetros seguros a respeito da retroatividade da lei 13.964/19 de acordo com o estágio da persecução penal.
Por fim, nas três situações-problema aqui indicadas foram ofertadas soluções plausíveis observando a razoabilidade e a legalidade, sendo necessário que os operadores do direito busquem uma compreensão uníssona que confira segurança jurídica aos acusados e vítimas do crime de estelionato.
Referências
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1 BRASIL. Lei 13.964, de 24 de dezembro de 2019. Disponível aqui. Acesso em: 20 abr. 2020.
2 Art. 171 (...) § 5º Somente se procede mediante representação, salvo se a vítima for: I - a Administração Pública, direta ou indireta; II - criança ou adolescente; III - pessoa com deficiência mental; ou IV - maior de 70 (setenta) anos de idade ou incapaz.
3 Art. 340 - Provocar a ação de autoridade, comunicando-lhe a ocorrência de crime ou de contravenção que sabe não se ter verificado: Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
4 Art. 103 - Salvo disposição expressa em contrário, o ofendido decai do direito de queixa ou de representação se não o exerce dentro do prazo de 6 (seis) meses, contado do dia em que veio a saber quem é o autor do crime, ou, no caso do § 3º do art. 100 deste Código, do dia em que se esgota o prazo para oferecimento da denúncia.
5 BRASIL. Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995. Disponível aqui. Acesso em: 20 abr. 2020.
6 Art. 3º - A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito. BRASIL. Decreto-lei 3.689, de 03 de outubro de 1941. Disponível aqui. Acesso em: 22 abr. 2020.
7 MOREIRA, Rômulo de Andrade. O crime de estelionato depende de representação. Disponível aqui. Acesso em: 20 abr. 2020.
8 DEZEM, Guilherme Madeira; SOUZA, Luciano Anderson de. Comentários ao Pacote Anticrime – Lei 13.964/2019. Editora Revista dos Tribunais, 2020. Versão digital.
9 CORREIÇÃO PARCIAL. CRIME DE ESTELIONATO. DECISÃO DO JUÍZO A QUO DETERMINANDO A INTIMAÇÃO DA VÍTIMA PARA EFETUAR REPRESENTAÇÃO CRIMINAL, EM VIRTUDE DA PREVISÃO DO §5º DO ARTIGO 171 DO CÓDIGO PENAL, INCLUÍDO PELA LEI Nº 13.964/2019. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. PEDIDO PARA SER CONSIDERADO COMO MANIFESTAÇÃO INEQUÍVOCA DA VONTADE DO OFENDIDO, O REGISTRO DO BOLETIM DE OCORRÊNCIA. INVIABILIDADE NA ESPÉCIE. MODIFICAÇÃO DA NATUREZA JURÍDICA DA AÇÃO PENAL DO DELITO DE ESTELIONATO, QUE COMO REGRA PASSOU A RECEBER O TRATAMENTO DE AÇÃO PÚBLICA CONDICIONADA À REPRESENTAÇÃO. NORMA QUE POSSUI NATUREZA MISTA, DE CUNHO TAMBÉM MATERIAL, PORQUANTO REFERE-SE A UMA CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE. VERIFICAÇÃO DO FENÔMENO DA NOVATIO LEGIS IN MELLIUS, CUJA APLICABILIDADE, NOS TERMOS DO ARTIGO 5º, INCISO XL, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA, ESPELHADO NO ARTIGO 2º, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CÓDIGO PENAL, É IMEDIATA. APLICAÇÃO DA INTERPRETAÇÃO ANALÓGICA FAZENDO INCIDIR, AO CASO EM MESA, A REGRA DO ARTIGO 91, DA LEI 9.099/95. DECISÃO ESCORREITA. MANUTENÇÃO. CORREIÇÃO PARCIAL DESPROVIDA. I – A Lei 13.964/2019 modificou a natureza jurídica da ação penal no tocante ao crime de estelionato, descrito no artigo 171 do Código Penal, que como regra passou a receber o tratamento de ação pública condicionada à representação, conforme se infere da nova redação do §5º do referido dispositivo legal. Nessa senda, com a superveniência da alteração legislativa, as ações penais em relação ao crime de estelionato, que antes eram incondicionadas, passaram a ser condicionadas, ou seja, agora exigem a representação da vítima. II - Embora a adição do §5º trate de ponto processual de regramento da ação penal, importante ressaltar que a referida norma possui natureza mista, de cunho também material, porquanto se refere a uma condição de procedibilidade, que interfere diretamente no destino da liberdade do indivíduo sobre o qual o jus puniendi estatal está sendo exercido — inclusive, não é por menos que o artigo 564, inciso III, alínea "a" do Código de Processo Penal estabelece como causa de nulidade a ausência da representação. III - Resta claro que a alteração em comento consubstancia o fenômeno da novatio legis in mellius, cuja aplicabilidade, nos termos do artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal espelhado no artigo 2º, parágrafo único, do Código Penal, é imediata. IV – Com fulcro no artigo 3º do Código Processual Penal que prevê "A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica”, bem como ante a inafastabilidade do dever de resguardar os direitos fundamentais do ofendido, observando-se os princípios da indeclinabilidade jurisdicional, da razoabilidade e da proporcionalidade, deve ser aplicada a interpretação analógica para fazer incidir a regra do artigo 91 da Lei 9.099/95 ao presente caso. Logo, em relação às ações penais em curso, cuja acusação seja de estelionato, e ressalvando as exceções previstas no novo dispositivo, o Juiz ou Tribunal deve suspender o procedimento e determinar que a vítima (ou seu representante legal ou seus sucessores) seja notificada para, querendo, oferecer a representação. (TJPR - 4ª C.Criminal - 0012776-16.2020.8.16.0000 - Maringá - Rel.: Desembargador Rui Bacellar Filho - Rel.Desig. p/ o Acórdão: Desembargador Celso Jair Mainardi - J. 08.04.2020).
10 (TJ-SP - HC: 20540054020208260000 SP 2054005-40.2020.8.26.0000, Relator: Marco de Lorenzi, Data de Julgamento: 09/04/2020, 14ª Câmara de Direito Criminal, Data de Publicação: 14/04/2020). CORREIÇÃO PARCIAL – Artigo 171, § 5º, do Código Penal, introduzido pela lei 13.964/2019. Ação penal condicionada a representação. Condição de procedibilidade. Aplicação retroativa da lei penal mais benéfica (artigos 5º, XL, da CF; e, 2º, parágrafo único, do CP) – Determinação "ex officio" pela autoridade corrigida de intimação da vítima para eventual oferecimento de representação. Providência, "a priori", escorreita – Comportamento da vítima, entretanto, condizente com a intenção de processar a autora do fato. Comparecimento e registro da ocorrência em solo policial. Representação bem delineada. Desnecessidade de formalidades. Precedentes – "Error in procedendo" evidenciado – Correição provida para cassar a decisão que determinou a intimação da vítima. (TJSP; Correição Parcial Criminal 2012780-40.2020.8.26.0000; Relator (a): Gilberto Ferreira da Cruz; Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Criminal; Foro de Getulina - Vara Única; Data do Julgamento: 13/04/2020; Data de Registro: 13/04/2020).
11 CUNHA, Rogério Sanches. Pacote Anticrime – Lei 13.964/2019: comentários às alterações no CP, CPP e LEP. Salvador: Editora Juspodivm, 2020, p. 65.
12 MENDES, Soraia da Rosa; Martínez, Ana Maria. Pacote Anticrime: comentários críticos à Lei 13.964/2019. 1. ed., São Paulo: Atlas, 2020, p. 33.
13 Idem, ibidem, p. 33.
14 DEZEM, Guilherme Madeira; SOUZA, Luciano Anderson de. Comentários ao Pacote Anticrime – Lei 13.964/2019. Editora Revista dos Tribunais, 2020. Versão digital.
15 Idem, ibidem.
16 DEZEM, Guilherme Madeira; SOUZA, Luciano Anderson de. Comentários ao Pacote Anticrime – Lei 13.964/2019. Editora Revista dos Tribunais, 2020. Versão digital.
17 SENADO FEDERAL. Projeto de Lei do Senado nº 236, de 2012. Disponível aqui. Acesso em: 22 abr. 2020.
18 NUCCI, Guilherme de Souza. Pacote anticrime comentado: Lei 13.964, de 24.12.2019. 1. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 34.
19 CUNHA, Rogério Sanches. Pacote Anticrime – Lei 13.964/2019: comentários às alterações no CP, CPP e LEP. Salvador: Editora Juspodivm, 2020, p. 64.
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*Beatriz Daguer é pós-graduanda em Direito Penal e Processo Penal na PUC/PR, campus Londrina. Advogada criminalista.
**Rafael Junior Soares é mestrando em Direito Penal na PUC/SP. Professor de Direito Penal e Processo Penal na PPUC/PR, campus Londrina. Advogado criminalista no Advocacia Walter Bittar.