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A (in)competência da Justiça Federal no crime eleitoral de “caixa dois”

Considerações a respeito do devido processo legal, competência jurisdicional e ao indivíduo listado no polo passivo da demanda criminal, em prol de ter segurança jurídica a se defender logicamente em Juízo legitimado.

29/4/2020

I. Conteúdo Introdutório ao tema

A função judicante encontra respaldo, sobretudo, na condição de processante de feito, à espécie, de ordem penal por ordem constitucional e, para tanto, sua competência delimitar-se-á por diversas hipóteses, dentre elas, a especialidade da matéria de fundo a ser tratada pelo Poder Judiciário lato sensu.

É deveras importante ressaltar, sem buscar exaurir o tema, mas, sim, trazer considerações a respeito do devido processo legal, competência jurisdicional e ao indivíduo listado no polo passivo da demanda criminal, em prol de ter segurança jurídica a se defender logicamente em Juízo legitimado.

O pano de fundo da dissertação construída à luz da legislação em vigor, jurisprudência da Suprema Corte a seguir e respaldo doutrinário diz respeito à competência da Justiça Eleitoral processar e julgar o delito de falsidade ideológica (CE, art. 35, II, CPP, art. 78, IX), mais comumente chamado pela imprensa de “caixa dois”, bem como divisar seu conceito e interferência interpretativa quanto à possibilidade de outros crimes correlatos, ou até tipos-meio, para se evoluir no auxílio da consolidação de liturgias claras ao passo de buscar ao leitor melhor compreensão da visão espacial da correlação e aplicabilidade da norma cogente.

A despeito disto, a Justiça Eleitoral instituída pela Lei Maior (CF/88, art. 118) destaca-se não só por tratar de temas essencialmente eleitorais tais como regularidade de campanha, publicidade, efetividade do processo de escolha dos integrantes ao comando do Poder Executivo e os legitimados para legislar e conduzir a política nas demais esferas (municipal, estadual ou federal), mas por também ser a Justiça competente sempre que tivermos um crime eleitoral conexo ao tipo penal comum.

Passada a fase inicial de direcionamento do conteúdo abarcado, adentra-se à dissertação da temática em foco.

II. Crime de caixa dois. Falsidade ideológica na prestação de contas. Conceito

No Capítulo II, a partir do art. 289 do Código Eleitoral, estão discriminados um a um todos os crimes eleitorais, in casu, também restará quem “Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele deveria constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, para fins eleitorais...” é o artigo 350 do CE, de ação pública incondicionada (CE, art. 355).

Embora ainda não exista tipificação punitiva expressa, tal conduta é popularmente conhecida por “caixa 02”, em razão do político não declarar sua prestação de contas eleitoral integralmente ou falsar a verdade, decerto, sua conduta poderá também residir enquadrado no texto do artigo 354-A do Código Eleitoral, sobretudo em eventual escamoteamento de custeio ou valores recebidos ilicitamente, por apropriação indébita eleitoral.

É, desse modo, delito formal (sem necessidade, portanto, de qualquer resultado naturalístico ou consequencial a impedir sua consumação) e tem como elemento anímico o dolo específico, ou seja, a vontade deliberada de omitir ou declarar - falsamente, em documento público – prestação de contas perante a Justiça Eleitoral-, como condão de distorcer a verdade das informações ali contidas.

Importante consignar, o artigo 351 do mesmo Código dispõe que “Equipara-se a documento (...) para efeitos penais, a fotografia, o filme cinematográfico, o disco fonográfico ou fita de ditafone a que se incorpore declaração ou imagem destinada à prova de fato juridicamente relevante.”

Senão fosse por isto, será considerado funcionário público para fins penais, nos termos do artigo 327 do Código Penal, “(...) quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.” Ainda, por equiparação, consoante o §1º do mesmo artigo “(...) quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública” .

Por seu turno, o crime dedilhado tem natureza instantânea, assim, nos casos em que o agente se retrata, em tese, poderá ser enquadrado na hipótese de arrependimento voluntário, porém sua punição não é extinta, mas tão somente reduzida, ao comando do artigo 16 do Código Penal.

Ipso facto, a responsabilização do delito de “caixa dois” é, essencialmente, dirigida ao disputante de função pública nos Poderes Legislativo ou Executivo, ao não ter declarado todos os valores no formulário próprio da Justiça Eleitoral, ou tê-los se apropriado.

Dito isto, inobstante a possibilidade de atrelar-se a outros crimes por conexão, perceba-se, o legislador penal dissociou a conduta subjetiva de resultado, a importar desvio ao regramento eleitoral simplesmente com a prestação de contas fraudulenta.

Noutro giro, fazendo um parêntese sobre a conceituação suso referida, após diversas colaborações premiadas homologadas pelo Poder Judiciário, tal enfoque tomou dimensões ilativas a importar conduta outra, qual seria, a de corrupção dos candidatos por contrapartidas previamente acordadas atreladas a efeitos futuros, ou quanto às reeleições para se privilegiar doadores ocultos perante o Poder Público.

Nesse jaez, diversas operações policiais tiveram seu nascedouro na persecução penal de delitos outros, a exemplo de corrupção, peculato e lavagem de dinheiro, contudo ao se debruçar sobre a delimitação das condutas em apego ao histórico, nos casos concretos se verificou em desvelo a condutas umbilicalmente insertas ao contexto político e, portanto, sobrevieram a aparição de crimes eleitorais e, assim, a declínio da competência jurisdicional.

III. Justiça Federal x Justiça Eleitoral

É cediço que a competência da Justiça Eleitoral (CE, 35, II) prevalece sobre a Justiça Comum/Federal, tendo em vista sua especialidade. Assim, existindo um crime eleitoral imbricado a um delito comum, a competência para julgamento de ambos será da Justiça Eleitoral, em razão da reunião do processamento por força da conexão.

A compreensão da prevalência da Justiça (Especial) Eleitoral sobre a Justiça (Comum) Federal é sedimentada por considerável lapso de tempo pelos Tribunais Superiores e pela Suprema Corte, sendo há pouco novamente asseverada pelo Pleno do Supremo no julgamento do quarto agravo regimental no inquérito 4.435/DF, sob a relatoria do ministro Marco Aurélio, onde se esclareceram e reafirmaram que os delitos eleitorais e conexos devem ser julgados pela Justiça Eleitoral, face a competência absoluta por consectário expositivo à espécie.

Ainda, ao nosso enxergar, fixada a identificação da competência da Justiça especializada só caberá a ela tomar decisões sobre o processo, ou procedimento investigatório, e qualquer manifestação por outro juízo com competência residual será nula.

Desta feita, se a competência é requisito para o exercício da jurisdição, o desrespeito às regras de competência em razão da matéria (absoluta) jamais se convalidará, podendo ser declarada de ofício pelo juiz ou pelo Tribunal, em qualquer fase processual, conforme preconiza o artigo 109 do Código de Processo Penal.

Outrossim, é relevante pontuar inexiste divergência ou oposição entre os artigos 109, inciso IV e 121 da Carta Magna e muito menos entre eles o artigo 78, inciso IV do Código de Processo Penal, pois, a competência da Justiça Federal está perfeitamente prevista na Constituição, também por ela delimitada e excluída.

IV. Conclusões

Ao fim e ao cabo, levando em consideração a legislação pertinente e o entendimento pacificado da Corte Constitucional, em relação ao cometimento do delito apelidado de “caixa 02”, ou até de apropriação, por conexão a outros tipos, não por menos, a competência evidentemente será da Justiça Eleitoral para a apreciação investigativa e meritória.

_________

*João Vieira Neto é advogado criminalista. Sócio do escritório João Vieira Neto Advocacia Criminal. Conselheiro Estadual da OAB-PE. Presidente da Comissão de Direito Penal da OAB-PE.

*Vinícius Segatto é advogado criminalista. Sócio do escritório Segatto Advogados. Membro da Comissão de Direito Penal da OAB-MT e do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

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