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O STF, o júri e a presunção de inocência: a Constituição em desuso

A discussão de fundo, que se coloca tanto na maneira e momento em que os ministros escolheram pautar o julgamento, quanto no conteúdo daquilo que está em jogo, é: o que estamos dispostos a abrir mão, em situações excepcionais?

24/4/2020

Na próxima sexta-feira (24 de abril de 2020), será iniciado o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, que definirá se réus condenados pelo tribunal do júri poderão ser presos logo após o julgamento em primeira instância, hipótese em que o sujeito condenado começaria imediatamente a cumprir pena.

Os problemas são muitos e começam pela maneira como será realizado o julgamento: do modo como se coloca até agora, a questão se definirá por meio de plenário virtual – um sistema preexistente no Supremo e completamente eletrônico, antes utilizado apenas em casos de menor complexidade e sem sustentação oral, no qual os ministros juntam seus votos por escrito no ambiente virtual e, passados até sete dias do início do julgamento, o resultado é divulgado. Sem as célebres e acaloradas sustentações orais perante os ministros, sem os debates presenciais aprofundados e com quase nenhuma publicidade, a sociedade civil só saberá, ao fim e a cabo, qual é a decisão dos magistrados com a divulgação do resultado.

Não se trata, portanto, de sessão por videoconferência, na qual os atores interagem em tempo real – também possível no Supremo Tribunal Federal. Aqui, falamos da juntada das manifestações em um sistema eletrônico, sigiloso, no bojo do qual se resolve a questão sem maiores discussões. 

A ampliação da possibilidade de julgamento virtual para casos de grande relevância e de natureza constitucional se deu por meio da Emenda Regimental n. 53/2020 e da Resolução n. 669/2020 do STF, fundadas na excepcionalidade do momento de pandemia do novo coronavírus. Nestes casos, viabiliza-se o envio de sustentações orais gravadas por representantes das partes, também por via digital, em moldes bastantes similares ao que a advocacia conhece como “memoriais” – um resumo do caso e das razões sustentadas, previamente oferecido aos membros do órgão julgador.

Mas, vejam: uma questão constitucional do calibre e alcance da que se dará com relação ao início de cumprimento de pena dos condenados pelo tribunal do júri, em recurso extraordinário com repercussão geral, sem urgência evidente e no qual são amicus curiae diversos órgãos e entidades representantes da sociedade civil será decidida por plenário virtual da Suprema Corte, em um sistema que restringe gravemente a publicidade do julgamento.

Cá entre nós, é evidente que a juntada de vídeos, gravados de antemão e incluídos aos autos antes do julgamento, não tem o mesmo efeito no processo de tomada de decisão dos ministros que as sustentações feitas em plenário. Além disso, por óbvio que o procedimento virtual para o julgamento de questão dessa magnitude fere a transparência da discussão e a sociedade civil fica, nessa ocasião, renegada à margem da discussão, devendo, ao final, acolher a decisão, já consumada e definitivamente tomada pelos ministros.

Nesse sentido, foi protocolada na semana passada uma petição assinada por mais de setenta advogados, representantes combativos da classe encabeçados por Sepúlveda Pertence e Técio Lins e Silva, endereçada ao Presidente da Corte, o Ministro Dias Toffoli, requerendo a revogação da ampliação da competência do plenário virtual para casos dessa natureza. Contudo, até o momento o plenário virtual está mantido e, ao que parece, o julgamento ocorrerá nesses lamentáveis moldes, privando o caso da efetiva manifestação oral de representantes de órgãos como, por exemplo, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, do qual faz parte esta subscritora.

A par desta importante questão de forma, o conteúdo daquilo que está em pauta e o horizonte que se delineia para a decisão também causam preocupação. Isso porque, como se sabe, tudo indica (inclusive a maneira como se pautou o julgamento) que o Pleno do Supremo Tribunal adotará posicionamento no sentido de que a prisão do sujeito condenado apenas em primeira instância, logo após o julgamento pelo tribunal do júri e sem a necessidade de avaliação dos requisitos da prisão preventiva, não viola a presunção de inocência.

A ideia parece contraditória ao quanto determinou a Suprema Corte no julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 54, em novembro do ano passado. E é. Se, por um lado, o Supremo prestigiou, naquela ocasião, o inequívoco texto constitucional no sentido de que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença condenatória”, agora pretende abrir perigoso precedente em sentido contrário, criando exceção inexistente no artigo 5º, LVII, da Constituição da República. Para tanto, é possível antever um contorcionismo argumentativo no sentido de que a “soberania dos veredictos” e a “proibição da proteção insuficiente” (um desdobramento doutrinariamente criado a partir do princípio da proporcionalidade) autorizariam a antecipação do início da pena.

A argumentação é equivocada, para dizer o mínimo. Em primeiro lugar, porque a presunção de inocência, enquanto regra de tratamento, disposta constitucionalmente com clareza solar, não suporta exceções. Nisso, nenhuma dificuldade: a palavra “ninguém” não pode ser lida como “alguém”, a não ser por subversão lógica. Se a Constituição Federal diz que a “ninguém” se tolerará tratamento equivalente ao de pessoa culpada (e, para tanto, adota o critério temporal do trânsito em julgado da sentença condenatória), como poderíamos nós dizer o contrário?

Em segundo lugar, porque a soberania dos veredictos, enquanto regra de competência e jurisdição, determina que, naquelas hipóteses específicas (de crime doloso contra a vida e crimes conexos) submetidas a julgamento pelo tribunal do júri, a decisão sobre o mérito da causa é de jurisdição exclusiva do Conselho de Sentença e só a ele cabe dizer o direito material em crimes contra a vida. Isso não quer dizer, contudo, que a decisão dos jurados é definitiva ou imutável – os recursos aos tribunais podem dar azo (e, muitas vezes, dão mesmo ensejo) à anulação do julgamento, submetendo-se a causa à apreciação de um novo Conselho de Sentença, igualmente soberano, e que pode decidir de modo diverso do primeiro, eventualmente substituindo a decisão inicial de condenação por uma absolvição.

Disto, decorrem duas constatações: a primeira de que, se subsiste a possibilidade (em alta probabilidade, diga-se de passagem) da absolvição, persiste também o estado de inocência do sujeito – por opção constitucional clara; e a segunda de que, no sistema processual penal constitucional, não há colisão, muito menos primazia da soberania dos veredictos à presunção de inocência. Muito pelo contrário, a soberania dos veredictos subsiste sem que seja necessária (leia-se “aceitável”) qualquer mitigação à presunção de inocência.

Acontece que, conforme bem apontado pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça Sebastião Reis em texto publicado na semana passada,1 “a presunção de inocência não mais orienta boa parte de nossos doutrinadores, julgadores e legisladores, que preferem sempre a opção de se acelerar a punição, encurtando o processo, mesmo que sem culpa formada de modo definitivo”. A regra da inocência caiu em desuso, em um sistema de justiça que pune primeiro, analisa depois e, com isso, alimenta o estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário nacional, com todos seus desdobramentos já incansavelmente denunciados e reconhecidos pelo próprio Supremo.

Finalmente, o argumento da proibição da proteção insuficiente parece especialmente distorcido. Seja porque a prisão antecipada de um sujeito que goza ainda do benefício da dúvida não reparará o dano causado pelo fato em si; seja porque não pode pesar sobre o acusado a responsabilidade pela morosidade de todo o sistema de justiça – desde a demora nos inquéritos, até o abarrotamento da pauta dos tribunais.

De todo o ângulo que se olha a questão, nada se vislumbra além da antecipação, artificial e populista, da punição como maneira de servir vingança ainda morna. O Estado, todavia, dito democrático e de direito, não pode se prestar à irracionalidade da vingança, devendo submeter-se, contrariamente, à legalidade.

Assim, a discussão de fundo, que se coloca tanto na maneira e momento em que os ministros escolheram pautar o julgamento, quanto no conteúdo daquilo que está em jogo, é: o que estamos dispostos a abrir mão, em situações excepcionais? A transparência, publicidade e participação em julgamento de repercussão geral no Supremo? A presunção de inocência? Quais são os limites da excepcionalidade e quem os determina?

Soma-se a tudo isso o fato de que o chamado “Pacote Anticrime” (Lei 13.964/2019), que entrou em vigor no início deste ano e alterou o Código de Processo Penal, deu nova redação ao artigo 492 do CPP, que passou a prever a obrigatoriedade do recolhimento do réu, independentemente da existência de circunstâncias que indiquem a urgência da prisão (ou requisitos de cautelaridade), em casos de condenação, pelo tribunal do júri, a pena igual ou superior a 15 anos. Nessa hipótese, o novo regramento processual penal determina que o recurso de apelação, em regra, não terá “efeito suspensivo”.

O que se esperaria então do Tribunal “guardião da Constituição”, em atuação ordinária e em observância ao próprio entendimento alçado pelo Pleno no ano anterior, é a declaração da inconstitucionalidade destes dispositivos, por flagrante violação ao texto constitucional. Afinal, como pontuou o ministro Luís Roberto Barroso em seu twitter no último domingo (19 de abril de 2020), “defender a Constituição e as instituições democráticas faz parte do meu papel e do meu dever”. Nos resta esperar que assim seja feito, muito embora todos os sinais apontem ao sentido contrário.

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1 https://migalhas.uol.com.br/quentes/324921/presuncao-de-inocencia-nao-mais-orienta-operadores-do-direito--adverte-ministro-sebastiao-reis
 
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*Pollyana de Santana Soares é advogada criminalista e sócia do escritório Roberto Pagliuso Advogados, membra da comissão de amicus curiae do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim e membra do Instituto de Defesa do Direito de Defesa – IDDD
 
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