Nesta semana, pudemos observar mais uma prescrição errônea de remédio legal, usado de forma equivocada quando aplicado em uma área sensível e técnica do mercado financeiro, desconhecida pela maioria.
O autor da ação, incomodado com recente declaração do Ministro da economia mencionando que o Banco Central do Brasil (BACEN) havia reduzido o percentual dos recolhimentos compulsórios bancários (que foi a 17%), dinheiro este que estaria “empossado nos bancos”, resolveu ajuizar ação popular1 contra a União e o BACEN, visando obrigar os bancos a emprestarem esse dinheiro, bem como os proibir de aumentar as taxa de juros ou intensificar as exigências para a concessão de crédito. Tudo isso inferindo que os bancos estariam deixando de repassar recursos públicos à população que está claramente necessitada de recursos financeiros neste período de pandemia.
E estes pedidos, por mais infundados que pareçam, foram deferidos pelo juízo responsável pelo caso, em sede de tutela de urgência, obrigando os bancos a emprestarem estes recursos, e lhes proibindo de aumentar taxa de juros ou intensificar as exigências para a concessão de crédito. Com isso, ficaram os bancos obrigados a emprestar recursos, e impossibilitados de aumentar taxa de juros e exigências para conceder crédito.
De tão absurda que nos soa essa decisão, é até difícil pensar como essas medidas seriam implementadas na prática. Quais são estes recursos que os bancos devem emprestar? Quais taxas não podem ser aumentadas? Quais exigências não podem ser solicitadas? Poderíamos discorrer por horas sobre a tentativa de encontrar formas de implementar estas questões, mas sempre seria difícil efetivamente implementá-las e facilmente encontraríamos formas de não as cumprir.
De qualquer forma, este não é o cerne da questão. Mas é deixar uma reflexão sobre a interferência de agentes que desconhecem o funcionamento do sistema financeiro e até que ponto podem estes tentar, ainda que com boa intenção, interferir em questões elementares do sistema financeiro, para solucionar o problema supostamente levantado pelo Ministro. Se fosse simples assim, o próprio Ministro teria resolvido a questão, sem necessidade de intervenção do Judiciário.
Isso porque, os recolhimentos compulsórios são um instrumento complementar de política monetária e econômica em muitos países, e ajudam a controlar a estabilidade macroeconômica. O BACEN utiliza este instrumento como auxílio para controlar a liquidez no sistema financeiro. São os ativos das instituições financeiras depositados compulsoriamente por obrigação regulatória no BACEN, sem remuneração ou correção monetária. Dinheiro dos bancos depositados no BACEN (decorrente dos depósitos de seus clientes entre outros). Neste sentido, claramente, não se trata de recursos públicos.
Como não bastasse, a decisão que concedeu a tutela de urgência obrigava os bancos a não aumentar as taxas de juros e não aumentar exigências para conceder o crédito. Ora, dentre os componentes principais da taxa de juros estão o risco e retorno. Quanto maior o risco de calote, maior a taxa de juros. É assim que funciona. Já vimos também os efeitos colaterais do tabelamento de quaisquer preços no passado, o crédito acabaria rápido e não atingiria todos que efetivamente necessitam (lei da oferta e procura).
Medidas já estão sendo tomadas no sistema financeiro para ajudar no enfrentamento da crise pelos órgãos competentes, as quais serão absorvidas e ajustada pelo próprio sistema oportunamente - como é o caso da própria redução do percentual dos recolhimentos compulsórios. Ademais, os governos já estão tomando as medidas assistencialistas como os recursos públicos - como o auxílio aos informais, o complemento concedido pelo governo para redução e suspensão dos salários da iniciativa privada, dentre outros.
Felizmente, após pedido bem fundamentado da Advocacia-Geral da União visando à suspensão da tutela antecipada concedida, o Tribunal competente viu por bem revogar a decisão, no último dia 22 de abril. No entanto, o processo seguirá seu trâmite regular, ficando novamente a reflexão: até quando o Judiciário será instado a decidir sobre demandas especializadas como a exposta, desacompanhadas, porém, da competência que referida especialidade exige?
Temos muito o que trabalhar e fazer ainda em termos de medidas e políticas, públicas e privadas, visando minimizar os efeitos devastadores causados pela pandemia do Covid-19, mas certamente não será com decisão judiciais como esta que resolveremos questões de tamanha complexidade.
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1 Ação Popular 1021319-26.2020.4.01.3400, juízo da 9ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária do Distrito Federal, de 15.04.20.
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*Arthur Longo Ferreira é advogado especialista em Direito dos Mercados Financeiro e de Capitais, atuante há mais de 15 anos no mercado financeiro e de capitais.