Migalhas de Peso

Direito Penal, seu processo e algumas verdades incômodas

Eminente ministro Sebastião Reis Jr., vamos então, todos juntos, advocacia, magistratura e Ministério Público, dar início à necessária e já tardia mudança da Justiça criminal do País para que seja mais efetiva e justa?

24/4/2020

Em meio à confusão a que todos estamos submetidos por conta da pandemia, artigo publicado neste mesmo espaço, de autoria do eminente ministro Sebastião Reis Jr., do Superior Tribunal de Justiça (O tempo do processo penal, 16/4/20), fez revelações importantes, a merecer análise e reflexão.

Cumpre reconhecer, inicialmente, que a Justiça Penal não pode ser vista como detentora de fórmulas mágicas para a resolução de questões sociais, pois é falsa a impressão de que tudo se resolve com a punição criminal e a criação de novos crimes, com o aumento da pena ou, ainda, com o endurecimento do processo e do regime prisional. Essa ineficaz reação faz com que os direitos fundamentais sejam flexibilizados e até suprimidos, o que não se coaduna com um Estado Democrático de Direito.

Enquanto isso, as verdadeiras causas da criminalidade deixam de ser enfrentadas.

Para desmistificar a visão equivocada de que o Judiciário deve dar respostas eficazes contra o crime, basta recordar que o Direito Penal é reconhecido como ultima ratio, que significa a sua mínima intervenção para a tutela de bens jurídicos. Assim, tem-se atribuído à Justiça uma responsabilidade a que ela não tem como corresponder.

Além disso, o poder inibitório do Direito Penal – ao contrário da opinião corrente – é notoriamente fraco, e o ministro, com a experiência de quem exerce a judicatura nessa área o reconhece, ao apontar que o recrudescimento de várias leis penais e processuais não foi capaz de deter a escalada de crimes especialmente graves.

A questão é dogmática: a Justiça Penal não se presta a combater o crime. Sua atuação ocorre em momento posterior à ocorrência do fato típico, porque posicionada na retaguarda da defesa social.

Ledo engano pensar que tudo seria resolvido, em prol da efetividade da Justiça Penal, se a condenação fosse certa, rápida e severa, o que estaria ainda mais longe de gerar soluções justas.

A certeza da punição depende de prova segura e lícita. Por isso, a absolvição por falta de provas, v.g., também é justa, porque legalmente prevista. A rapidez demasiada conduz a erros e à inevitável supressão de direitos, ao passo que o fiel cumprimento às regras procedimentais, no seu tempo, infunde segurança jurídica. A severidade da pena, como se viu, não é capaz de aplacar a ocorrência de crimes, antes agravando esse quadro de excessiva criminalidade.

São constatações baseadas no conhecimento científico do direito e na aplicação das leis pelos tribunais, que não se sujeitam a tergiversações de ordem política ou ideológica. A perdurar essa visão deformada de Justiça Penal como panaceia, pesa admiti-lo, não se chegará a lugar algum.

Não há dúvida, como propõe o ministro, que se deve buscar a efetividade da Justiça criminal, pois, evidentemente, seu desempenho pode ser muito melhor. Tem ele razão quando afirma que a raiz do problema é estrutural, mas também resultante de certos mitos e anacronismos, fruto de uma cultura ultrapassada que precisamos eliminar, a partir da fase investigatória que antecede a ação penal.

Nosso inquérito policial reclama mudanças urgentes e profundas. Na era da quarta revolução industrial, seu procedimento ainda é burocrático e cartorial, baseado em registros escritos, muito papelório e pouquíssima investigação apoiada em inteligência. Há expertise, mas faltam meios para uma eficiência linear e abrangente, com maior contingente de pessoal qualificado para uma investigação mais científica, voltada a produzir elementos que possam oferecer justa causa para o início de ação penal com probabilidade de atingir condenação, embora frequentemente ocorra o inverso.

É preciso imprimir dinamismo e produtividade à investigação, aprimorar os sistemas de coleta da prova e dar protagonismo à Polícia Científica, abandonada pela expressiva maioria dos governos. Nesse sentido, a cadeia de custódia quanto às provas periciais, implantada pela nova Lei 13.964/19, é um passo adiante, mas ainda é preciso fazer muito mais (confira-se o art. 158-A/F, do CPP).

Como ressaltou o ministro, Ministério Público e advocacia também precisam estar bem aparelhados para desempenhar suas funções, mas isto não deve ser preocupação dos tribunais: no processo acusatório, o juiz se atém à produção das provas pelas partes, o que colabora para a paridade de armas e produz decisões imparciais e mais justas.

Aliás, ao abordar o preparo que a advocacia deveria ter, S. Exa. indaga se não seria o caso de orientar os advogados para que “usem os instrumentos processuais de forma objetiva, sem abusos ou excessos, parando de, por exemplo, interpor habeas corpus manifestamente inadmissíveis ou interpor recursos fadados ao insucesso.”

 A resposta é simples: a orientação que realmente auxilia e melhora o  desempenho da advocacia deve partir da boa jurisprudência, aquela que respeita o primado da lei e da Constituição, sendo isenta de opiniões preconcebidas que se afastam do que se poderia esperar como resposta jurisdicional adequada em um ambiente de segurança jurídica.

Nesse ponto, como exigir dos advogados alguma parcimônia no exercício profissional, ante a constrangedora revelação do ministro de que “A presunção de inocência não mais orienta boa parte de nossos doutrinadores, julgadores e legisladores, que preferem sempre a opção de acelerar a punição, encurtando o processo, mesmo que sem culpa formada de modo definitivo”, para em seguida ainda afirmar:

“(...) É preferível, hoje em dia, pecar punindo errado ou em excesso a se evitar a punição injusta ou desarrazoada (...). (grifos nossos)”

Dessa enigmática e trágica constatação retira-se que o sujeito passivo da relação processual sempre sairá prejudicado em seus direitos...

Há um outro elemento que influencia a defesa e que permanece incompreendido por parte da magistratura: o primeiro atributo da atuação do criminalista é a perseverança. Não se permite descanso enquanto o objetivo de atender ao direito de seu constituinte não for alcançado, de modo que muitas vezes é injusta a crítica a excessos praticados por parte da defesa, que há de ser ampla, na dicção do texto constitucional, e plena, quando se trate de causa da competência do Júri.

Assim, a busca da efetividade da Justiça criminal não passa pelo cerceamento da defesa, que deve se utilizar de todos os meios disponíveis na lei, apenas encontrando contenção nos parâmetros deontológicos. 

Para corresponder ao tom de desabafo proposto pelo ministro, cumpre dizer: os advogados se exaurem em pedir que se cumpra a lei, recebendo, em todas as instâncias, as respostas mais descabidas, contraditórias, e divorciadas do arcabouço normativo. E a jurisprudência... Bem, praticamente todos os temas que favorecem a defesa encontram corrente jurisprudencial em sentido contrário, de modo a tornar o direito quase sempre incerto.

O ministro Sebastião Reis Jr. foi excelente advogado e seguramente conhece a angústia da parte que, ao consultar seu defensor sobre a possibilidade de sucesso da causa, ouve algo como “embora o direito esteja do nosso lado, não faço a menor ideia se vamos obter o resultado esperado”. É nesse contexto, repita-se, que os advogados estão autorizados pelas circunstâncias a usar de todos os meios em direito admitidos para alcançar a justa prestação jurisdicional.

Quanto à impetração de habeas corpus, a situação da advocacia ainda é mais dramática1, pois o alegado excesso na utilização do chamado remédio heroico não se deve a capricho, irresponsabilidade ou “diletantismo jurídico”, mas está na justa proporção das ilegalidades que se praticam, diuturnamente, contra o direito de defesa dos pacientes.

Não haverá mais habeas corpus em grande número quando deixarem de existir tantas autoridades judiciárias praticando coações ilegais. Enquanto esse dia não chega, continuará a existir habeas corpus em profusão – não há como impedir.

Sem maior respeito aos direitos do investigado e do acusado, nada poderá conter a enxurrada de habeas corpus. Exemplo disto é a concessão da ordem em superação à Súmula 691/STF que, em tese, impediria habeas corpus contra decisão liminar de instância inferior, ou o julgamento de impetrações contra a jurisprudência que não conhece do habeas corpus em substituição ao recurso cabível.

Mesmo diante de tal contexto, impressiona o dado estatístico divulgado pelo ministro, no sentido de que, no ano passado, o Superior Tribunal de Justiça concedeu ¼ dos habeas corpus impetrados, cerca de 17.500 casos em que a Corte Superior teve de intervir contra atos judiciais considerados fora da lei, excessivos, arbitrários, e que não foram revistos por instâncias inferiores, o que é assustador, quanto mais se considerado o tempo que se perde até chegar a obter julgamento perante tribunais superiores.

Outra conduta que acarreta disfuncionalidade da Justiça são as constantes decisões que negam seguimento ao Recurso Especial, com efeitos bastante nocivos para o sistema penal de Justiça: não se produz  jurisprudência quanto ao mérito dos recursos, e isso provoca maior uso de habeas corpus2, única ferramenta relativamente eficiente à disposição da defesa para lutar pelo direito.

Houvesse o julgamento de mais Recursos Especiais, a incidência de impetrações seria menor e os equívocos e ilegalidades praticados nas instâncias inferiores também seriam contidos pela jurisprudência emanada da Corte Superior. Não existe geração espontânea de habeas corpus, mas são as falhas do sistema judicial que impõem que as impetrações se reproduzam exponencialmente.

Falta diálogo entre os tribunais, o que explica a manutenção de decisões depois consideradas ilegais pelo STJ, além de maior interlocução institucional com a advocacia, cuja experiência de atuar em todas as instâncias e de conviver com o sofrimento da parte nesse longo caminho, alcança visão integral dos problemas e possíveis soluções, que não se pode desprezar.

Em outro trecho de seu intrigante artigo, o ministro faz o que ele próprio chamou de penitência: “No meu dia a dia, tenho endossado a jurisprudência que, infelizmente, tem atuado para compensar a ineficiência do Estado-Juiz.”

E, continua ele com as suas cortantes demonstrações de sinceridade e coragem:

“(...) A norma processual penal estabelece prazos a serem obedecidos. Hoje, raro é o processo que obedece a esses prazos. Réus frequentemente permanecem presos enquanto duram processos que extrapolam em muito prazos legais. E a jurisprudência diante dessa situação é unânime em afirmar que a configuração do excesso de prazo não decorre da soma aritmética de prazos legais, que deve ser aferido segundo os critérios da razoabilidade, tendo em vista as peculiaridades de cada caso.

Ou seja, a jurisprudência – e aqui reconheço que também assim decido – supera a falta de estrutura do Judiciário para cumprir os prazos legais e, de certa forma, desestimula que esse tipo de problema seja solucionado, já que não há mais qualquer consequência para o desrespeito ao prazo legal (...)” (grifo do texto original).

A atuação para “compensar a ineficiência do Estado-Juiz”, lamentavelmente, acaba recaindo sobre o jurisdicionado. Por essa razão a recente Lei 13.964/19 implanta, sem meneios, o processo de cunho acusatório3 (disputa entre acusação e defesa, sem participação do juiz na produção de provas – art. 3º-A do CPP [com vigência indevidamente suspensa por medida liminar] e art. 282, § 2º, do CPP). Desse modo, garante-se a equidistância do juiz em relação às falhas probatórias que possam prejudicar a apuração dos fatos contra os interesses da acusação, doravante, sob tutela exclusiva do Ministério Público, que atuará por sua conta e risco, assim como a defesa sempre teve de agir.

Essa questão, a partir das novas regras processuais impostas pela Lei 13.964/19, não deve mais incomodar o ministro, que poderá aplicar, livremente, as medidas alternativas à prisão do art. 319, em atendimento à nova redação do art. 282, § 6º, ambos do Código de Processo Penal.

O mesmo deve ocorrer em relação ao prazo da prisão provisória, que passa a ser limitado em 90 dias4. Encerrado esse prazo, o juiz terá de encontrar argumentos sólidos, válidos, remanescentes em relação à época da prisão original, que imponham e justifiquem a manutenção da prisão antes do trânsito em julgado, sob pena de nulidade (art. 316, parágrafo único, do CPP). Nesse contexto, a Súmula 21/STJ5, por exemplo, perdeu a eficácia, por se tornar contra legem.

As novas diretrizes sobre as prisões cautelares deixam bastante claro que a prisão preventiva passa a ser legalmente excepcional e com prazo certo (artigos 282, § 6º, e 315, § 1º, do CPP)6. Sua manutenção para além dos 90 dias, para atender aos ditames da lei, deverá estar atrelada a motivação verdadeiramente substancial, impositiva quanto à necessidade de renovação, que se dará em caráter extraordinário. A extrapolação consentida do prazo de encarceramento provisório, para ser válida, deve ocorrer sob o amparo de fundamentos seguros e concretos, em cumprimento ao quanto determinado pelo roteiro previsto no novo artigo 315 do Código de Processo Penal.

Por outro lado, a discussão sobre a antecipação do cumprimento da pena para antes do trânsito em julgado, em boa hora, foi sepultada por decisão do próprio Congresso nacional (confira-se a nova redação dos artigos 283 e 313, § 2º, ambos do CPP).

Todos temos consciência de que uma das mazelas da Justiça é a morosidade e, decerto, o processo penal pode chegar a termo mais rapidamente com o aprimoramento estrutural de que fala o ministro e “sem piorar a situação do acusado”, como ele próprio recomenda.

Eminente ministro Sebastião Reis Jr., vamos então, todos juntos, advocacia, magistratura e Ministério Público, dar início à necessária e já tardia mudança da Justiça criminal do País para que seja mais efetiva e justa?

Vossa Excelência, que merece o respeito da advocacia, tem o poder de convocação e, ainda, de adotar decisões que façam a diferença. De nossa parte, aceitamos o chamado e o desafio de oferecer o melhor dos nossos esforços.

__________

1 Ruiz Filho, Antonio, Revista do Advogado – 30 anos do Superior Tribunal de Justiça, editada pela AASP: “Habeas corpus: problema ou solução”, 2019, ps. 18/24.

2 Idem.

3 O sistema até então vigente era considerado híbrido, e, portanto, ficava num meio termo entre o processo inquisitório, no qual o juiz tem maior atuação, e o acusatório, em que a produção das provas fica a cargo exclusivo das partes.

4 Ruiz Filho, Antonio, Migalhas de 21.02.2020, “Alterações do Direito Penal e seu Processo na lei 13.964/19 (V) – As cautelares e a prisão na nova Lei: avanços significativos”.

5 Súmula 21 do STJ: “Pronunciado o réu, fica superada a alegação do constrangimento ilegal da prisão por excesso de prazo da instrução.”

6 Essa regra já era disseminada na doutrina e até na jurisprudência, mas não existia expressa na lei.

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*Antonio Ruiz Filho é advogado criminalista, sócio do escritório Ruiz Filho Advogados. Foi presidente da AASP, diretor da OAB/SP e do IASP

 

 
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