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Poder Judiciário, contratos paritários e coronavírus: Sem demonstração de mudança de cenário fático, a regra deve ser o pacta sunt servanda

O momento é bem mais de renegociação, arbitragem, mediação ou mesmo fundamentada ação judicial com a explicação pormenorizada da situação que o leva a bater nas portas do Poder Judiciário para quebrar o pacta sunt servanda, do que propriamente para se fazer uso da pandemia como se um tacape fosse.

23/4/2020

Como consabido, no último dia 11 de março o diretor-Geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom, declarou estado de contaminação pelo novo coronavírus (covid-19) à escala de pandemia. A classificação não se refere propriamente à gravidade da doença, e sim à disseminação geográfica.

Em âmbito nacional, essa doença, que em meados de abril já levou à óbito mais de dois mil brasileiros, foi recebida com a edição, por parte do Ministério da Saúde, da Portaria 188, a qual declarou Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) em decorrência da infecção humana e também da necessidade de esforço conjunto de todo o Sistema Único de Saúde para identificação da etiologia dessas ocorrências e adoção de medidas proporcionais e restritas aos riscos. Em igual esteira, no dia 6 de fevereiro foi promulgada a lei 13.979, que dispõe sobre medidas que poderão ser adotadas para enfrentamento da emergência observada pelo surto do novo coronavírus. Essa lei foi alterada em 20 de março pela Medida Provisória 926, para dispor sobre procedimentos para aquisição de bens, serviços e insumos destinados ao combate do coronavírus.

Para os fins aqui visados, tem se notado, por um lado, discussões atinentes à caracterização desse cenário como de caso fortuito ou força maior, de maneira a se observar, por via de consequência, debates sobre impossibilidade de execução dos contratos, ao menos nos exatos termos contratados.

Juridicamente falando, e especificamente no que diz respeito à impossibilidade de execução de contrato, é o artigo 393 do Código Civil quem disciplina, de modo geral, o caso fortuito ou a força maior, ao dizer que o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de sua caracterização — desde que expressamente não tenha se responsabilizado pelo cumprimento obrigacional mesmo em tais casos.

O parágrafo único do referido artigo, de sua vez, afirma que caso fortuito ou de força maior verifica-se quando ocorre um "fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir"1.

Ou seja, dos três tradicionais elementos da responsabilidade civil pátria, quais sejam: conduta, nexo de causalidade e dano, o caso fortuito ou a força maior são pertinentes a excludente de responsabilidade pelo nexo de causalidade, o qual constitui-se atualmente no grande protagonista2 da responsabilidade civil.

E quais elementos podem vir a caracterizar, in casu, rompimento do nexo de causalidade pelo caso fortuito ou força maior3? Externalidade e inevitabilidade.

Por externalidade entende-se que o dano ocorreu por um fato não imputável ao agente, completamente extraordinário e estranho ao seu comportamento ou atividade4.

O outro elemento, a inevitabilidade, é aquele que se qualifica com fato imponderável e atual, que surge de forma avassaladora e seus efeitos são irresistíveis. Como se infere da própria nomenclatura, não é possível evitar ou impedir as suas consequências danosas. Há impossibilidade absoluta de afastamento de sua carga5.

Na esteira do que se tem delineado, importa ainda assinalar as consequências da caracterização do caso fortuito ou da força maior nos contratos, que são: a) a ausência de responsabilidade do devedor pelo inadimplemento a que tenha dado causa (art. 393, caput, do Código Civil); e b) a resolução dos contratos a que tenha tornado impossível cumprimento (artigos 234, 248 e 250 do Código Civil). A resolução dá causa à extinção dos efeitos do contrato e, dentro do possível, a restituição das partes ao status quo ante, isto é, estado anterior ao da contratação de produto ou serviço6.

Em contratos duradouros, a impossibilidade de cumprimento pode ser transitória. Nestes casos, as partes têm direito à resolução, se esta for do seu interesse, ou podem manter o vínculo, reajustando em comum acordo o conteúdo da prestação devida7.

Já no que diz respeito à incerteza sobre o cumprimento do contrato em cenário de pandemia no Brasil, são duas as hipóteses: incerteza quanto ao cumprimento futuro do contrato, bem como a incerteza que recai sobre a própria utilidade da prestação. Ambas as hipóteses dão azo a revisão do contrato8.

A importância da caracterização dos fatos para o rompimento do nexo de causalidade e as decisões do Poder Judiciário sobre o tema

A partir dessa necessária digressão teórica, e com foco em decisões judiciais9, pode-se deduzir que: (i) o nexo de causalidade é o protagonista da responsabilidade civil atual; (ii) não há caracterização automática de caso fortuito ou força maior pura e simplesmente com base na pandemia do novo coronavírus (covid-19); e (iii) existe necessidade de justificação qualificada do ponto de vista fático para suspensão ou revisão de disposições contratuais.

A par disso, e como será demonstrado a seguir, o Poder Judiciário não tem permitido, nesse pouco mais de um mês de cenário pandêmico vislumbrado no Brasil, que os instrumentos jurídicos acima assinalados sejam utilizados de maneira oportunista por aqueles que não têm necessidade de aplica-los10. É dizer: o procedimento de subsunção do fato à norma11 não pode ser negligenciado tão somente em decorrência do estado de calamidade pública pelo qual o Brasil (também) passa.

Muito bem. Por um lado, certo é que o Poder Judiciário, quando instado a atuar em contratos em tempos de pandemia, tem interferido cirurgicamente em situações que carecem de busca por equidade12 e razoabilidade, além do respeito à solidariedade social13, até mesmo pelos sujeitos que dela participam.

Nesse sentido, verbi gratia, a 1ª Vara Federal de Curitiba decidiu suspender o pagamento de alugueis a Infraero referente à locação de espaço comercial no aeroporto internacional Afonso Pena. Como se lê na decisão, o magistrado considerou que a empresa estava inserida de modo fático no bloco das que têm maior vulnerabilidade financeira diante da paralisação forçada da economia14.

Em decisões similares, em que se verifica apresentação de contexto fático para particularizar os efeitos da pandemia a casos concretos, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ/SP) permitiu que um restaurante passasse a pagar, durante o tempo em que durasse a pandemia do coronavírus no Brasil, valor correspondente a 30% (trinta por cento) do aluguel originalmente contratado15.

Outro caso que bem demonstra o que aqui se argumenta, é o de um escritório de advocacia em Brasília, que fez pedido de redução do aluguel mensal lastreado, de uma banda, especialmente em apresentação detalhada da planilha de despesas do escritório, e de outra na apresentação do porte do locador, para concluir que este conseguiria sobreviver com a repactuação. O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) acatou o pedido e reduziu o valor mensal do aluguel16.

Contudo, e por outro lado, vê-se, exempli gratia, caso em que a 2ª vara de falências e Recuperações Judiciais do TJ/SP negou pedido de prorrogação de prazo de pagamentos da Editora Abril, feito com base em alegação genérica de estar sofrendo uma série de prejuízos por conta do avanço da covid-19 pelo Brasil. Na decisão, o magistrado registrou que "é inviável a pretensão de suspensão genérica e absoluta de pagamento de despesas correntes, e essenciais à operação das recuperandas, como se pudesse o juízo da recuperação atingir credores não sujeitos à recuperação, sem considerar suas situações individuais"17.

Com igual ausência de arcabouço fático para embasar pedido de revisão de valores de alugueis, o Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina (TJ/SC) gizou, em sede de liminar, que "(...) não logrou êxito em demonstrar a requerente onde residiria o enriquecimento sem causa ou a prestação exagerada em favor do requerido, haja vista que o valor da locação não sofreu qualquer mudança em razão do evento noticiado"18.

Posto que de modo sucinto como pede este texto, pode-se verificar que os pedidos negados, em geral, continham requerimentos genéricos de cidadãos que não explicaram qualificamente, do ponto de vista fático, a relação de causa e efeito que denota o nexo de causalidade.

Percebe-se, ademais, é que nessa época em que se pretende coibir oportunismo, viabilizar colaboração, bem assim readequação dos contratos — quando necessário, deve-se, muito mais do que buscar teorias de direito estrangeiro ou de jurisprudência de países com sistema de common law (como se faz amiúde), por exemplo, tomar-se lição do italiano Piero Calamadrei no clássico Eles, os juízes, vistos por um advogado, quando anota que "o mais precioso trabalho civilista é o que ele realiza antes do processo, matando os litígios logo no início com sábios conselhos de negociações"19.

Em outras palavras: o momento é bem mais de renegociação, arbitragem, mediação ou mesmo fundamentada ação judicial com a explicação pormenorizada da situação que o leva a bater nas portas do Poder Judiciário para quebrar o pacta sunt servanda, do que propriamente para se fazer uso da pandemia como se um tacape fosse para que cada contratante insatisfeito possa pegar o seu e sair por aí no intuito de realizar sua própria justiça contratual20.

__________

1 CC. Artigo 393. Parágrafo Único. 

2 MIRAGEM, Bruno. Direito civil: responsabilidade civil. Editora Saraiva, São Paulo: 2015, p. 219. 

3 Não é objeto deste texto, mas cabe registro a afirmação de que, em se tratando de responsabilidade civil decorrente de relação jurídica de consumo, há distinção, ainda quanto a fortuito interno e externo. Nesse sentido, entendeu o STJ que o fortuito interno deve ser indenizável. Veja-se enunciado sumular de número 479 — As instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias. 

4 "Não haverá de se cogitar de externalidade quando o fortuito só houver gerado danos em razão de um fato pregresso por parte do responsável. Exemplificando, se o funcionário do estabelecimento esquece a porta do veículo aberta e este é furtado, descabe a exoneração da responsabilidade". In: NETTO, Felipe Braga; FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Novo tratado de responsabilidade civil. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 483. 

5 Idem. Ibidem. 

6 Assim: MIRAGEM, Bruno. Nota relativa à pandemia de coronavírus e suas repercussões sobre os contratos e a responsabilidade civil. Revista dos Tribunais., vol. 1015/2020, maio. DTR 2020.3972, p. 2. 

7 Idem, p. 3. 

8 Assim: KHOURI, Paulo R. Roque A. A revisão judicial dos contratos no novo Código Civil, Código do Consumidor e lei 8.666/93: A onerosidade excessiva superveniente. São Paulo: Atlas, 2006. 

9 O Executivo tem atuado quanto a esse cenário de calamidade pública sobretudo por meio de medidas provisórias, como o são as de número 925 (dispõe sobre medidas emergenciais para a aviação civil brasileira em razão da pandemia), 924 (abre crédito extraordinário em razão da pandemia), 922 (dispõe sobre a contratação por tempo determinado para atender à necessidade temporária de excepcional interesse público), 926 (altera a lei 13.979). No Legislativo, de sua vez, destaque para o Projeto de Lei de iniciativa do Senado 1.179/2020 que prevê medidas temporárias, a serem adotadas durante o estado de pandemia, sob clara inspiração da Lei Faillot, promulgada na França no contexto da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e seu consequente colapso econômico. 

10 Com essa preocupação confira-se: SCHREIBER, Anderson. Devagar com o andor: coronavírus e contratos – Importância da boa-fé e do dever de renegociar antes de cogitar de qualquer medida terminativa ou revisional. Acesso em 19 abr. 2020. "(...) A gravidade da situação não permite tolerar comportamentos oportunistas de quem buscará eximir-se de obrigações negociais válidas e eficazes sem demonstração de que a pandemia do covid-19 alterou a performance contratual. O ônus de demonstrar tal situação compete à parte que alega e não pode ser presumido sem se ignorar as circunstâncias do caso concreto". In: Primeiras impressões sobre os impactos do distanciamento social nas relações privadas em face da pandemia do covid-19. Acesso em 19 abr. 2020. 

11 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2009, p. 298. 

12 A propósito: o Superior Tribunal de Justiça aplicou, no ano de 2003, a equidade como forma de solução dos milhares de processos judiciais envolvendo a crise cambial de 1999 e os contratos de leasing atrelados ao dólar norte-americano.  No RESp 472.594/SP, o ministro Aldir Passarinho invocou a fundamentação do ministro Ari Pargendler no REsp n. 268.661/RJ, oportunidade na qual este afirmara em seu voto vencido que "se a onerosidade superveniente não pode ser afastada sem grave lesão à outra parte, impõe-se uma solução de equidade". Estava a falar que os efeitos da variação cambial causaram prejuízo tanto para as instituições financeiras (que captaram recursos no exterior) quanto para os arrendatários que viram suas prestações multiplicarem da noite para o dia. 

13 Sobre o tema: MARTINS, Fernando Rodrigues; MARTINS, Guilherme Magalhães. O direito privado e o direito do consumidor em tempos de Covid-19. Acesso em 19 abr. 2020. 

14 1ª Vara Federal de Curitiba. Processo n. 5017470-58.2020.4.04.7000/PR. Julgado por Fredmann Anderson Wendpap, em 3 de abril de 2020. 

15 Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ/SP). Processo n. 1026645-41.2020.8.26.0100. 22ª Vara Cível. Julgado em 2 de abril de 2020. 

16 TJDFT. Processo n. 0707596-27.2020.8.07.0000. Julgamento em 1° de abril de 2020. 

17 Juiz nega pedidos de prorrogação de prazo de pagamentos da Editora Abril. Acesso em 19 de abril de 2020. 

18 TJSC. Processo n. 5001853-72.2020.8.24.0079. Julgado em 1° de abril de 2020. 

19 CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por um advogado. Tradução de Eduardo Brandão. 2ª ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2015, p. 147.

20 Alusão à teoria do tacape do professor Eros Roberto Grau realizada pelos professores Paula Forgioni, Otávio Luiz Rodrigues Junior e Rodrigo Xavier Leonardo, além do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva (STJ). TV CONJUR. Contratos empresariais e direito da concorrência. Acesso em 19 abr. 2020.

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*Jonas Sales é diretor Secretário-geral da Comissão de Contratos e Responsabilidade Civil da OAB/DF. Advogado do escritório Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados.

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