A chamada 4ª Revolução Industrial, tratada atualmente como a Revolução Tecnológica, obrigou a sociedade a se adaptar às mudanças mais brutais em curto espaço de tempo. O dinamismo das novas descobertas, conjugado com a facilidade na implementação de tecnologias avançadas, provoca o indivíduo a não se acomodar.
Reconhecida a criatividade como força-motriz da transformação e, diante do constante desenvolvimento da inteligência artificial (IA) nas relações, deve-se reconhecer a possibilidade concreta de autonomia de sistemas algorítmicos na tomada de decisões, o que afeta todos os setores.
Com a Saúde não é diferente: há infinidade de desdobramentos e possibilidades, como, por exemplo, na utilização de dados da população e na qualidade de atendimento a pacientes, a fim de aprimorar processos e procedimentos, ampliar o alcance da Medicina em locais afastados de grandes centros urbanos e, ainda, potencializar resultados que impactam iniciativas públicas e privadas no controle de problemas de saúde em âmbito global.
Partindo do pressuposto de que a gama de dados tratados pelas instituições envolvidas na cadeia de prestação de serviços ligados à saúde são, essencialmente, dados de natureza pessoal e dotados de nível de criticidade, na medida em que podem ensejar discriminação em relação ao seu titular, a utilização dessas informações merece atenção e cuidado especiais.
Em uma crescente, sistemas de gestão estão trazendo novo olhar para a saúde, melhorando a oferta dos serviços dessa natureza e apurando, cada vez mais, informações necessárias para melhor leitura do panorama no país e no mundo.
Vale dizer que o contínuo e acelerado desenvolvimento da tecnologia trouxe como benefício à sociedade a chamada Inteligência Artificial, temática bastante presente nos principais segmentos do país. Fato é que os sistemas de Inteligência Artificial (IA) e a utilização da Internet das Coisas (IoT) ampliam o escopo de aplicação da tecnologia na saúde1, consolidando o conceito de Saúde 4.0.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a IA e o aprendizado de máquina estão revolucionando os campos da Medicina, pesquisa e saúde pública. No entanto, há premente preocupação com o rápido desenvolvimento da tecnologia neste campo, devendo-se levar em consideração diretrizes éticas, normas e regramentos sociais, especialmente relacionados ao acesso equitativo, privacidade, inclusão social, preconceito e responsabilidade. Tratando-se de assunto com relevância mundial, a captura, o uso e o compartilhamento de dados gerados ou utilizados pela tecnologia precisam de ampla discussão para evitar consequências mais graves2.
Sendo a Inteligência Artificial a combinação tecnológica de "propósito humano de projetar suas habilidades mentais e motoras"3, a qual envolve o machine learning (aprendizado de máquina), o deep learning (aprendizado aprofundado de máquina) e as redes neurais, o encontro entre a ciência da computação e a Medicina resultou em um novo campo de pesquisa denominado Inteligência Artificial Médica (IAM). Em linhas gerais, a IAM "é o uso de computadores que, analisando um grande volume de dados e seguindo algoritmos definidos por especialistas na matéria, são capazes de propor soluções para problemas médicos"4.
Sendo a IA a tecnologia com aplicação industrial global de maior crescimento, o setor chegou a ser avaliado em certa de US$ 600 milhões em 2014 e deve atingir, ao todo, US$ 150 bilhões em 20265. Dentro dessa estatística, estima-se que, até 2025, 90% dos hospitais dos Estados Unidos utilizarão sistemas de IA para melhorar a qualidade de atendimento de pacientes e, assim, diminuir a taxa de mortalidade da população. Segundo a empresa Accenture, o mercado mundial de IA na saúde e, em especial, na assistência médica, valerá US$ 6,6 bilhões até 20216.
No Brasil, estudos do Banco Mundial demonstraram que o desenvolvimento e aplicação de sistemas de IA direcionados a analisar prontuários eletrônicos podem otimizar custos em até R$ 22 bilhões, eis que evitariam repetições desnecessárias de tratamentos e exames7.
Vê-se que a prática da Medicina está mudando com o desenvolvimento de sistemas de IA e machine learning. Juntamente com melhorias rápidas no processamento de volume significativo de dados, os sistemas conseguem ser cada vez mais precisos e eficientes, tendo como devolutiva diagnósticos e tratamentos mais acurados, das mais variadas especializações8.
Com a alta aptidão de armazenamento, processamento e recuperação de dados sobre imagens pelas máquinas, tais como: exames de ultrassom, ressonância magnética, exames radiológicos, ecocardiogramas e dados de wearable devices, é possível gerar probabilidade de diagnósticos baseadas em algoritmos capazes de sugerir decisões automatizadas nesse sentido, altamente suscetíveis de adaptação por meio dos resultados produzidos (o que chamamos de self improvement dos algoritmos)9.
Os dados a serem processados têm extrema relevância e impacto nos resultados pretendidos. Ensina Luiz Carlos Lobo10:
"Dados de pacientes podem ser coletados seja diretamente de prontuários médicos eletrônicos, seja por meio da digitação de informações de anamnese, de exame clínico do paciente, exames complementares, evolução da enfermidade e medicamentos prescritos e usando algoritmos definidos e que podem ser atualizados com a análise desses dados e propor diagnósticos diferenciais de enfermidades, com as respectivas probabilidades de ocorrência".
Logo, vê-se que as estatísticas demonstram que a utilização de sistemas de IA na saúde é inevitável, cresce de forma acelerada dada a necessidade de otimização de processos, qualificação da mão-de-obra e melhora do atendimento e no reforço da relação médico-paciente.
Contudo, importante mencionar que o cuidado com o tratamento de número bastante significante de dados sensíveis por empresas de tecnologia é crucial na construção de IAM confiável, eis que se deve levar em consideração a própria finalidade da utilização de referidos dados, de acordo com o ordenamento jurídico em vigor e, especificamente, com os modelos legislativos de proteção de dados pessoais no País e no mundo. O controle da segurança, do sigilo e a garantia de anonimização dos dados coletados serão elementos obrigatórios nessa empreitada.
Nessa toada, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) trouxe em seu bojo previsões específicas sobre o tratamento de dados pessoais sensíveis (artigo 11 e seguintes). Nos dispositivos da lei, podemos destacar com especial interesse às novas tecnologias o que trata da anonimização dos dados. De acordo com a LGPD, uma vez anonimizados de maneira irreversível, os dados deixam de ter natureza de dado pessoal e, portanto, podem ser utilizados com critérios mais flexíveis.
Ademais, se pensarmos que a massa de informações a ser trabalhada pela aplicação de sistemas de IAM poderá resultar em processos decisórios automatizados, importante observar também o que preceitua o artigo 20 da LGPD: caberá ao titular de dados pessoais o direito à revisão de decisão unicamente tomada com base no tratamento desses dados por algoritmos. A previsão visa garantir verdadeira auditoria algorítmica, reforçando-se a preocupação da escolha dos critérios adotados por referidos sistemas e a possibilidade de se produzirem resultados preconceituosos e/ou danosos ao próprio titular e, em maior âmbito, à sociedade.
Notório que a IA está revolucionando o campo da Medicina e da pesquisa. Contudo, dada a velocidade de seu desenvolvimento, há preocupações éticas, legais e sociais quanto à sua aplicação, tendo em vista que os sistemas de IA são alimentados por grandes quantidades de dados – dentre eles, dados pessoais e sensíveis. Assim, uma vez garantida a segurança, confiança e legalidade nos processos atrelados ao tratamento desses dados, os benefícios da utilização da IA no campo da saúde são inúmeros e certamente impactarão o sistema de saúde em âmbito nacional e global.
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1 Impactos da nova Lei de proteção de dados para a tecnologia na Saúde. Acesso em 25/3/2020.
2 Big data and artificial intelligence. Acesso em 26/3/2020.
3 Inteligência artificial e direito: ética, regulação e responsabilidade/ coordenação Ana Frazão e Caitlin Mulholland. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. P. 37.
4 LOBO, Luiz Carlos. Inteligência Artificial e Medicina. Rev. bras. educ. med., Rio de Janeiro , v. 41, n. 2, p. 185-193, jun. 2017. Acessos em 29/3/2020.
5 Surgical robots, new medicines and better care: 32 examples of ai in healthcare. Acesso em 28/3/2020.
6 GONÇALVES, Carol. Inteligência Artificial na saúde: aplicações, benefícios e ameaças. Acesso em 27/3/2020.
7 Idem.
8 AHUJA. A.S. The impact of artificial intelligence in medicine on the future role of the physician. Charles E. Schidt College of Medicine, Florida Atlantic University. Publicado em 4/10/2019.
9 LOBO, Luiz Carlos. Inteligência Artificial e Medicina. Rev. bras. educ. med., Rio de Janeiro , v. 41, n. 2, p. 185-193, jun. 2017. Acessos em 29/3/2020.
10 Idem.
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*Paula Marques Rodrigues é coordenadora da equipe de contencioso do escritório Opice Blum, Bruno, Abrusio e Vainzof Advogados Associados.