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A (in)eficiência do Imposto sobre Grandes Fortunas no combate à covid-19

A problemática reside especificamente na proposição da vinculação direta e integral da receita estatal oriunda da cobrança do Imposto sobre Grandes Fortunas ao custeio de atividades de combate à pandemia.

23/4/2020

Nos últimos meses, muito se tem veiculado a respeito da figura do Imposto sobre Grandes Fortunas e a sua potencial utilização como mecanismo de combate à pandemia causada pelo novo Coronavírus. A intensa movimentação de parlamentares, notadamente aqueles integrantes do Senado Federal, passou a ser destaque em publicações de diversas matérias jornalísticas abordando o assunto1, levando o tema ao conhecimento da população em geral.

É bem verdade que a possibilidade de instituição do referido tributo não se apresenta como uma novidade, por assim dizer, visto a competência constitucional tributária para a sua criação ter sido atribuída à União Federal desde o nascedouro de nossa Magna Carta, em 1988, consoante o texto original do artigo 153, VII2.

No entanto, a crise econômico-humanitária atualmente vivida em razão dos efeitos da propagação do novo Coronavírus pelo mundo acabou por estimular que a matéria fosse revisitada, especialmente, pelo forte apelo voltado a uma teórica justiça social3 e fiscal4, que poderia ser implementada de modo complementar ao necessário aumento da arrecadação tributária em contexto econômico adverso.

Historicamente, pouco seguiram adiante os Projetos de Lei Complementar (PLPs5) tendentes à instituição do mencionado imposto até a mudança ao atual cenário de mobilização, destacando-se como o mais antigo, entre os 04 (quatro) PLPs em tramitação, o Projeto de Lei do Senado nº 315/156. Complementam a lista de PLPs em discussão no que tange à matéria, os Projetos de Lei Complementar nº 183/197, nº 38/208 e nº 50/209.

Insta salientar que, em virtude do propósito do presente artigo se consubstanciar em avaliar a eficiência da criação do Imposto sobre Grandes Fortunas, por meio de Lei Complementar, no intuito de mitigar os efeitos econômicos causados pela pandemia da covid-19, deixaremos de adentrar em maiores reflexões e aprofundamentos atinentes às implicações das conceituações propostas à expressão “grandes fortunas”, bem como à apreciação no que concerne à justiça social e à fiscal, na hipótese de início de cobrança do tributo em questão.

De toda forma, ainda que inexista plena noção acerca da extensão do lapso temporal que será marcado por esta pandemia, em especial por não haver, até o momento, medicamento específico totalmente capaz de garantir a cura dos infectados pelo vírus, nem, tampouco, uma vacina preventiva, é de conhecimento público que temos tido impactos bastante negativos10 e que as projeções futuras apresentam-se pouco animadoras11;, motivo pelo qual, o Estado tem se visto obrigado a agir de imediato12, visando à redução das consequências decorrentes da covid-19.

Exatamente nesta conjuntura que, dentre as diversas medidas defendidas ao combate à pandemia do novo Coronavírus, surgiu o desígnio de determinar a instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas, obviamente vislumbrando a aplicação imediata com o fito de conter ou sanar efeitos econômico-financeiros causados pelo vírus, como defendido no PLP nº 38/20, o qual pretende a criação do denominado “Imposto Extraordinário sobre Grandes Fortunas”13.

Entretanto, cumpre realçar que a visão de que promover, imediatamente, a tributação do Imposto sobre Grandes Fortunas se traduziria em mecanismo eficiente para o enfrentamento de repercussões já sofridas em função da covid-19 é demasiadamente equivocada, mormente por dois pontos que serão melhor explanados adiante, quais sejam, o dever de respeito ao princípio da anterioridade e a impossibilidade de vinculação do produto da arrecadação ao combate da pandemia.

No tocante ao primeiro item, o princípio da anterioridade, nos termos do artigo 150, III, “b)” e “c)”, da Constituição Federal, apresenta duas feições: (I) a anterioridade quanto ao exercício financeiro; e (II) a anterioridade nonagesimal, sendo que ambas se exprimem como garantia constitucional protetiva ao contribuinte.

Melhor explicando, o princípio da anterioridade corresponde ao preceito responsável por impor a postergação da vigência14 de norma jurídica que veicula a instituição ou a majoração de tributo, vedando-se, portanto, sua instantânea aplicação. Desta feita, (I) a anterioridade quanto ao exercício financeiro diz respeito à impossibilidade de instituição ou aumento de tributo no mesmo exercício (financeiro) da publicação da lei que trouxe tal previsão, ao passo que (II) a anterioridade nonagesimal se refere à necessidade de transcorrer o período de, ao menos, 90 (noventa) dias entre a publicação e o início da vigência de legislação, quando houver a implementação das mencionadas situações desvantajosas aos contribuintes.

Naturalmente, é evidente que o próprio Ordenamento Jurídico, que disciplina a matéria e impõe as limitações supracitadas como regra, traz, em outra ordem, exceções à observância do referido princípio a depender da peculiaridade do tributo sob análise, culminando nas hipóteses de aplicabilidade de parte do princípio da anterioridade, logo, somente a atinente ao exercício financeiro ou apenas a nonagesimal, ou, ainda, nas situações em que se determina a desnecessidade de obediência à anterioridade, inteligência do artigo 150, § 1º, da Constituição Federal.  

Ocorre que, no caso em comento, o Imposto sobre Grandes Fortunas deixa de se enquadrar em qualquer das aludidas ressalvas, sequer sendo mencionado no dispositivo constitucional citado no parágrafo imediatamente acima, tornando-se, assim, cediço o dever de cumprimento ao princípio da anterioridade em sua integralidade.

Desta maneira, é patente que eventual aprovação de Lei Complementar instituidora deste imposto, nas próximas semanas ou meses, resultaria na sua vigência – e início de cobrança – tão somente no ano de 2021, afinal, qualquer disposição que impusesse vigência instantânea à tributação pelo Imposto sobre Grandes Fortunas seria inconstitucional, por desrespeitar regra prescrita pelo artigo 150, III, “b)” e “c)”, da Lei Maior.

Em conclusão, é inevitável atestar a ineficácia da imposição imediata da tributação do imposto em questão como meio de combate, única e simplesmente, aos efeitos da pandemia da covid-19, notadamente com o desígnio de incrementar a arrecadação pública para o custeio de medidas de contenção de seus impactos, posto que eventual aprovação em regular processo legislativo tendente à publicação de Lei Complementar somente garantiria a exigência de seu recolhimento a partir de 2021.

Superado este primeiro ponto, partiremos à análise da intenção de se proceder à arrecadação do Imposto sobre Grandes Fortunas para a utilização exclusiva no financiamento das atividades estatais necessárias ante o presente momento pandêmico.

Para tanto, é imprescindível a compreensão do que se entende por imposto. Em apertada síntese, corresponde à espécie de tributo que possui como fato imponível situação desvinculada de qualquer atividade estatal específica e associada diretamente ao seu respectivo contribuinte, tendo por finalidade a viabilização do exercício das atividades gerais do Estado. A conceituação legal é dada pelo artigo 16, do Código Tributário Nacional, conforme teor a seguir:

Art. 16. Imposto é o tributo cuja obrigação tem por fato gerador uma situação independente de qualquer atividade estatal específica, relativa ao contribuinte.

Pois bem, como se pode depreender do supradito, inexiste a necessidade da prática de certos atos singulares pelo Poder Público para justificar a exigência de impostos instituídos em conformidade com os ditames constitucionais e legais. Da mesma forma, a destinação dos recursos obtidos com eventual arrecadação de impostos não deve ser designada a uma única atividade ou a um conjunto específico de atividades, visto que deve se prestar a garantir a espécie de “retribuição” do Estado à sua população, por meio de serviços ligados à saúde, segurança, distribuição de renda, dentre outros essenciais.  

Este, inclusive, é um dos pontos que diferencia os impostos das demais espécies de tributo15, como, por exemplo, da taxa, que não obstante a decorrente do poder de polícia, pode ser instituída com o escopo de assegurar o custeio de uma atividade estatal específica e divisível, sendo que, nessa medida, deve refletir o valor necessário à execução da atividade e a ela destinar o fruto da arrecadação.

Ademais, além de sua questão conceitual, há vedação constitucional no tocante à vinculação da receita estatal oriunda de impostos com determina despesa pública, ex vi a vedação descrita no artigo 167, IV, da Carta Magna.

Posto isto, compete-nos frisar que, ainda que para os fins de argumentações considerássemos como possível a instituição e vigência imediata do Imposto sobre Grandes Fortunas, persistiria o impedimento quanto à vinculação do produto de sua arrecadação exclusivamente para o custeio de despesas com ações tendentes a sanar ou mitigar os impactos da covid-19, pelos motivos já expostos.

Nessa perspectiva, evidencia-se que a problemática reside especificamente na proposição da vinculação direta e integral da receita estatal oriunda da cobrança do Imposto sobre Grandes Fortunas ao custeio de atividades de combate à pandemia. Afinal, nada impediria que, com o recolhimento deste imposto, somado a todos os demais, a União Federal, tendo toda a sua arrecadação correspondente aos impostos consigo, identificasse, seguindo sobretudo as diretrizes da Lei Orçamentária, a melhor destinação aos recursos obtidos para que, se assim visualizasse como adequado, disponibilizasse verba para desempenho das condutas indispensáveis à solução das repercussões resultantes do novo Coronavírus.

Em outras palavras, seria dizer que o cerne da questão se encontra na inconstitucionalidade da vinculação da destinação de impostos, in casu, do Imposto sobre Grandes Fortunas. Contudo, uma vez verificada a arrecadação de todos os impostos, incluindo-se o imposto sob análise, e posteriormente à distribuição da receita estatal entre os entes federativos na forma discriminada pela Constituição Federal16, a União Federal, observando os ditames de leis correspondentes ao orçamento, poderá dispor do montante auferido e destinar parte deste ao combate à pandemia da covid-19.

______________

1 Apenas para ilustrar a atualidade do assunto, insta mencionar duas matérias veiculadas no mês de março de 2020, pelos portais UOL e Época, intituladas, respectivamente, "Senador do PSDB quer taxar grandes fortunas para bancar combate à covid-19" e "Projeto que taxa grandes fortunas destina recursos para a saúde". Últimos acessos em 14/04/20.

2 O artigo 153, VII, da Constituição Federal possui a seguinte redação: “Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre: VII - grandes fortunas, nos termos de lei complementar.”.

3 André Franco Montoro trata da justiça social, dentre outras, na seguinte passagem: “Como vemos, pelo seu estudo, a justiça social abrange, realmente, atos das demais virtudes, mas tem objeto próprio e inconfundível, exatamente como ocorre com a justiça que os antigos denominavam geral ou legal. O objetivo desta, diz S. Tomás, comentando Aristóteles, consiste em ‘ordenar os atos de todas as virtudes para o bem comum’” in MONTORO, André Franco. Introdução à Ciência do Direito. 32ª edição, revisada e atualizada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 260 e 261.

4 Em nossa visão, justiça fiscal pode ser visualizada tanto na implementação de uma maneira justa à divisão do ônus tributário ou fiscal entre os contribuintes de um mesmo Estado, como na previsão e aplicação de tributações de forma mais adequada e justa entre os mais diferentes contribuintes, cumprindo-se, especialmente, com os princípios da capacidade contributiva e da isonomia.

5 Sigla representativa dos Projetos de Lei Complementar após unificação das anteriormente utilizadas (PLS, PLC e PLP), a partir do ano de 2019, vide comunicação do Senado Federal no link: <_https3a_ _www25.senado.leg.br2f_web2f_atividade2f_simplificou2f_o-que-mudou="">. Último acesso em 15/04/20.

6 Tramitação e demais dados do Projeto de Lei Complementar nº 315/2015, disponíveis aquiÚltimo acesso em 16/04/20.

7 Tramitação e demais dados do Projeto de Lei Complementar nº 183/2019, disponíveis aqui. Último acesso em 16/04/20.

8 Tramitação e demais dados do Projeto de Lei Complementar nº 38/2020, disponíveis aqui. Último acesso em 16/04/20.

9 Tramitação e demais dados do Projeto de Lei Complementar nº 50/2020, disponíveis aqui. Último acesso em 16/04/20.

10 O mercado financeiro, por exemplo, visualizou intensas quedas na BOVESPA, chegando-se a 6 (seis) circuit breakers em 8 (oito) dias de pregão, conforme matéria intitulada “Ibovespa cai 10% depois de 6º circuit breaker em oito pregões”, de 18/03/2020. Último acesso em 16/04/20.

11 Projeta-se encolhimento do PIB brasileiro, assim como o aumento dos índices de desemprego, conforme matéria do Portal O Globo. Último acesso em 16/04/20.

12 Exemplificando, o governo (Poder Executivo) tem apresentado suas medidas e as demonstrado em site oficial, veja aqui. Último acesso em 16/04/2020.

13 Vide texto original, disponível no site do Senado Federal. Último acesso em 16/04/2020.

14 Há discussão doutrinária acerca do princípio da anterioridade resultar em recorte da eficácia ou da vigência, contudo, seguimos pensamento do professor Paulo de Barros Carvalho que, ao abordar o assunto, conclui que: “Não se trata de problema de eficácia, mas única e exclusivamente de vigência.” in CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. 5ª edição. São Paulo: Noeses, 2013, p. 307.

15 Inclusive conforme defendido por Luciano Amaro, que entende que a destinação do produto da arrecadação integra o regime jurídico do tributo e pode nos auxiliar na identificação da classificação do tipo do tributo:  “Se classificar é necessário, e se a destinação integra o regime jurídico específico do tributo (ou seja, é um dado juridicizado), não se pode negar que se trata de um critério (jurídico) hábil à especificação do tributo, ou seja, idôneo para particularizar uma espécie tributária, distinta de outras.” in AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 15ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 78.

16 Exemplificando, a União Federal permanece, tão somente, com 51% (cinquenta e um por cento) da arrecadação do Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza e do Imposto sobre Produtos Industrializados, visto que deve distribuir o restante para Fundos de Participação dos Estados e do Distrito Federal, dos Municípios e para aplicação em programas de financiamento ao setor produtivo das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, nos termos do artigo 159, I, da Constituição Federal.

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Guilherme Molina é especialista em Direito Tributário pela PUC/SP, especialista em Regulatory Compliance pela University of Pennsylvania - Law School (Penn Law), membro associado do Instituto Brasileiro de Direito Tributário, e sócio do escritório Molina & Reis Sociedade de Advogados - Top Lawyers - Edição 2019/20.

 

 

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