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Decretação de calamidade pública em decorrência da pandemia de covid-19 e a Lei de Responsabilidade Fiscal

No caso do coronavírus, há a clara necessidade de contratação de pessoal para a área de saúde, criação de leitos de internação, compras de insumos e equipamentos, bem como a promoção de assistência financeira a famílias, sobretudo àquelas em contexto de maior vulnerabilidade social, e a sociedades empresárias, objetivando a manutenção de empregos, considerando a desaceleração econômica.

23/4/2020

A calamidade pública se dá em situações de manifesta anormalidade institucional, decorrente de fatos alheios à vontade da administração e que podem implicar em risco de danos graves à vida, à saúde popular, à segurança, à economia ou à ordem pública, a exemplo do que está a ocorrer com a pandemia originada pela disseminação do vírus SARS-CoV-2 (novo coronavírus), que ocasiona a doença covid-19.

Os governos, em consequência, precisam elevar os dispêndios públicos para além de sua programação orçamentária, no afã de mitigar os estragos já ocasionados ou que podem vir a acometer a população. No caso do coronavírus, há a clara necessidade de contratação de pessoal para a área de saúde, criação de leitos de internação, compras de insumos e equipamentos, bem como a promoção de assistência financeira a famílias, sobretudo àquelas em contexto de maior vulnerabilidade social, e a sociedades empresárias, objetivando a manutenção de empregos, considerando a desaceleração econômica.

O Governo Federal, apenas para fazer frente a despesas iniciais com o fim de enfrentar a “situação de emergência de saúde pública de importância nacional decorrente do coronavírus”, promoveu a abertura de crédito extraordinário na Lei Orçamentária Anual para os Ministérios da Saúde e da Educação de mais de R$ 5 bilhões, conforme se verifica na medida provisória 924, de 13 de março de 2020, cuja autorização se encontra no art. 167, § 3º, da Constituição Federal de 1988.

Considerando tal quadra fática, é forçoso o abrandamento dos rigores da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), para afastar limites de despesas com pessoal, apuração de dívida consolidada, alcance de metas fiscais e restrições a empenho, desde que com o desígnio último de se retornar ao status quo ante. E o art. 65, da LRF, permite de forma expressa essa atenuação, desde que reconhecida a existência de calamidade pública “pelo Congresso Nacional, no caso da União, oupelas Assembleias Legislativas, na hipótese dos Estados e municípios”, enquanto perdurar a situação.

Acerca do tema, o min. Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, na análise do pedido liminar formulado nos autos da ADI 6.357, esclareceu que há situações em que “o surgimento de condições supervenientes absolutamente imprevisíveis afetam radicalmente a possibilidade de execução do orçamento planejado”.

Em conjunturas como tais, aduziu o ministro, o art. 65, da LRF, permite o reconhecimento de calamidade pública para o fim de que ocorra a “dispensa da recondução de limite da dívida, bem como o cumprimento da meta fiscal; evitando-se, dessa maneira, o contingenciamento de recursos; além do afastamento de eventuais sanções pelo descumprimento de limite de gastos com pessoal do funcionalismo público." Significa dizer, de forma mais clara, que os governos poderão elevar o gasto público para além de sua arrecadação formal, além de permitir um maior nível de endividamento para estancar o contexto que deu lastro à calamidade.

A pandemia ocasionada pelo Sars-CoV-2 implica em fato de natureza absolutamente imprevisível, de efeitos inesperados e gravíssimos nos âmbitos da saúde e economia públicas, de modo que os gestores ficarão impossibilitados de realizarem a execução orçamentária tal qual haviam se programado, o que tornaria dramático o cumprimento de determinadas regras da LRF, que só devem ser exigíveis nos períodos de normalidade, inclusive para que reste atendido um dos fundamentos da República: o Direito fundamental à dignidade humana, prescrito no art. 1o, III, da CRFB/88.

Denotada a gravidade da situação da saúde pública mundial e brasileira diante da nefasta disseminação do SARS-CoV-2, a declaração de calamidade pública é medida salutar, tanto que o Congresso Nacional já a decretou, a pedido da presidência da República, além de várias Assembleias Legislativas, a pedido de Estados e municípios, para os desideratos do art. 65, da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Os Estados e os municípios, contudo, possuem competência para decretação de outro tipo de estado de emergência ou calamidade, que independe de reconhecimento expresso do Poder Legislativo. Esse decreto, de natureza executiva, visa permitir a adoção de medidas visando ao confronto direto da situação excepcional, entre as quais impor quarententa, contratar pessoal, fixar barreiras sanitárias, fechar vias, além de adquirir bens, serviços e insumos com dispensa de licitação (art. 24, IV, lei 8.666/93) etc..

Esses decretos, assim, possuem naturezas jurídicas distintas. Os emitidos pelo Poder Executivo objetivam adotar medidas administrativas dispondo acerca do combate direto à situação de emergência, e necessariamente a ela vinculadas, enquanto os editados pelo Poder Legislativo tão só atenuam os rigores da LRF, para que aquelas possam ser tomadas sem certas amarras fiscais que poderiam redundar na responsabilização dos gestores perante os órgãos de controle.

Os decretos das Casas Legislativas, todavia, não conferem uma carta branca ao executivo para que possam gastar desenfreadamente. É preciso que o dispêndio público seja compatível com o enfrentamento da situação de calamidade decretada e que o gestor atue com o necessário equilíbrio, inclusive contingenciando despesas de áreas que não se mostrem essenciais no período.

A LRF, portanto, permite que o Congresso Nacional, para a União, e as Assembleias Estaduais, para Estados e municípios, reconheçam a existência de calamidade apta a afastar o gestor público do cumprimento de certas regras de responsabilidade fiscal, sem que isso possa implicar em plena liberdade, uma vez que o gasto deve ser devidamente sopesado e dirigido ao afastamento do fato que redundou na situação de emergência.

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*Rodrigo Martiniano Ayres Lins é procurador-Geral da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará. Mestre em Direito Constitucional pela Unifor. É membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político – ABRADEP.

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