Quando a OMS declarou, em março deste ano, que o mundo vivia uma pandemia de coronavírus muitos de nós buscamos a definição desta palavra que não era recorrente em nosso vocabulário. Descobrimos o seu significado e a sua capacidade de virar o mundo de cabeça para baixo. Nos deparamos com um inimigo invisível que vem mexendo com a saúde global, com a economia de todos os países, com as relações de trabalho, com o comportamento social, com a justiça, com a vida.
Há quem arrisque antever que nada será como antes e que viveremos – a partir de agora - um "novo normal". De fato, os impactos da covid-19 têm sido um verdadeiro sacode no mundo e não sairemos ilesos. Nossas fragilidades enquanto sociedade foram escancaradas. Não temos estrutura estabelecida para enfrentar de igual para igual esse tal de coronavírus. Ele arrasou o sistema de saúde do mundo todo e afogou as economias das nações. Mexeu com estruturas consolidadas e vem desenhando trágicos cenários, como um tsunami que chega sem avisar e arrasta casas, carros, barcos e vidas.
Mas, como todos os momentos adversos, este também nos traz ensinamentos e um deles é a nossa capacidade de nos reinventarmos. Tivemos que ir para casa do dia para noite e nos adaptarmos a um novo modelo de trabalho. De repente, deixamos nossas bem-montadas estruturas corporativas e fomos para o home office. E a boa notícia: percebemos que era possível trabalhar a distância e continuar produzindo. Estamos dando conta do recado. Bendita tecnologia!
Essa mudança que nos foi imposta atingiu todos os setores. Até mesmo a inimaginável justiça, com sua estrutura tradicional e secular, se viu obrigada a romper barreiras e deu início a um novo jeito de trabalhar. Das toneladas de papéis que rondavam o Judiciário aos processos eletrônicos dos nossos Tribunais foram anos de projeto e execução. Já o trabalho remoto e as audiências por videoconferência precisaram de poucos dias para serem implementados face às exigências e incertezas do momento. A justiça não pode parar. É bem verdade que alguns Tribunais, especialmente da Justiça Federal, já lançavam mão desses recursos, mas eles não estavam acessíveis à maioria do Judiciário. Agora estão e tudo indica que é um caminho sem volta.
No período de 16/3 a 5/4/2020, o Sistema de Trabalho Remoto no Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, registrou 482.863 despachos, 758.469 decisões interlocutórias e 192.897 sentenças em primeiro grau e 35.707 despachos, 5.552 decisões interlocutórias e 39.831 acórdãos em segundo grau. O estado do Acre também anunciou que começará a julgar os casos da Turma Recursal da mesma forma.
O Supremo Tribunal Federal (STF), que já utilizava a TV Senado para transmitir suas sessões, também aderiu ao universo digital e promoveu, em 13/4/2020, sua primeira sessão por videoconferência, o que estabelece um novo marco em sua trajetória.
O Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT-2) regulamentou, na mesma data, a realização de audiências e sessões de julgamentos em varas, turmas e seções especializadas, por meio de videoconferência, enquanto perdurarem as orientações de isolamento social para prevenção de contágio pela covid-19. As audiências ou sessões telepresenciais poderão ser designadas a partir de 4 de maio, utilizando a Plataforma Emergencial de Videoconferência, instituída pela Portaria do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão que também decidiu estender o trabalho remoto de seus servidores e colaboradores por prazo indeterminado.
A justiça se adequou para não ficar estagnada neste momento que exige decisões rápidas em benefício da sociedade e sabemos que o pós-pandemia trará consigo milhares de demandas decorrentes de revisões contratuais devido ao caso fortuito e outros litígios provocados pela recessão, como os superendividamentos e suas consequências.
O Judiciário está preparado para esta avalanche? Não está, mas a continuidade das atividades remotas talvez seja a solução para evitar os entraves com os quais a justiça já convive. Para isso será preciso adotar um modelo de gestão customizado com as necessidades do Judiciário e implementar mais tecnologia e instrumentos, como audiências por videoconferência em todo país, para que os ganhos obtidos pela justiça durante a pandemia não se percam.
Sabemos que todos tivemos que virar a página do presencial para o digital em um piscar de olhos. O Judiciário respondeu de forma até surpreendente, mas agora não pode ficar para trás. É hora de dar um salto, respeitando as garantias constitucionais das partes, como o contraditório e o devido processo legal.
Daqui a alguns anos talvez avaliemos com mais propriedade este momento em que a pandemia mudou a justiça. Que possamos aproveitá-lo para torná-la mais ágil, acessível e justa para todos. E que a justiça também se permita viver o seu "novo normal".
__________
*Ellen Gonçalves é advogada, sócia-fundadora de Pires & Gonçalves - Advogados Associados e especialista em Direito do Consumidor. Autora do livro O Direito do Consumidor e os Juizados Especiais Cíveis.