É possível uma justiça melhor?
José Renato Nalini*
Os escândalos a envolverem juízes são veiculados com ênfase e nunca deixam o noticiário. Máculas que em outros cidadãos seriam toleradas são inadmissíveis para aqueles que assumiram a tarefa de dizer o que é certo e o que é errado. Para o juiz, as falhas são examinadas com lupa.
O tom do repúdio enfatiza o valor simbólico da Justiça. Critica-se o que tem significado no imaginário coletivo. Funções revestidas de certo misticismo como o sacerdócio, a medicina, o julgamento dos semelhantes, são julgadas com severidade maior. Compreende-se a aspiração por uma justiça mais célere e mais próxima aos anseios da comunidade. E os juízes não são insensíveis a tal sentimento coletivo.
Só que não está nas mãos dos juízes o controle do ritmo das reformas. A Proposta de Emenda à Constituição tramita desde 1992 e está longe de ser consenso. O Estatuto da Magistratura permaneceu onze anos para ser examinado e só depois disso foi retirado para reapreciação pelo STF, cuja composição se alterou de maneira expressiva.
A comunidade critica a justiça, mas não direciona postulações ao Parlamento, para que o Judiciário venha a ser renovado, de acordo com as discussões democráticas ali travadas. A instância de debates para se chegar ao modelo possível de uma Justiça melhor é hoje o Senado Federal. A Câmara já aprovou um substitutivo que, se não é panacéia, nem resolve todos os problemas, contém disposições capazes de transformar o Judiciário.
É importante que todos participem desse grande debate nacional. A Justiça é um bem da vida essencial. Sem uma Justiça respeitada e eficiente, falar em Democracia e em Estado de Direito é proclamação retórica despida de sentido.
A profunda reforma estrutural da Justiça brasileira só pode ser feita pelo Legislativo, pois envolveria alteração das disposições constitucionais vigentes. Todavia, outra sorte de reforma não depende de emenda à Constituição.
O processo é o que atravanca o funcionamento da Justiça. Multiplicam-se as oportunidades de reexames, com um intrincado sistema recursal. Acreditar-se na supremacia do segundo grau de jurisdição é da tradição de nossa cultura jurídica. Todavia, manter um sistema de verdadeiro quádruplo grau de jurisdição, com todos os empecilhos à ultimação da prestação jurisdicional não parece razoável.
O processo de execução precisa ser substituído por algo mais simples. É injustificável para o jejuno aceitar que, após as vicissitudes do processo, ao ver contemplada a sua pretensão, precisará iniciar outra aventura no chamado processo de execução de sentença.
O Judiciário também não pode ser convertido em agência de cobrança, mesmo que os créditos sejam da Fazenda Pública. As execuções fiscais poderiam ser extraídas do Judiciário, para que este viesse a conhecer apenas os embargos, ou a irresignação do devedor. Atulhar a Justiça com milhões de processos de cobrança de dívida é impedir que ela funcione para as questões mais relevantes.
Aliás, o Estado, sob suas múltiplas exteriorizações, é quem mais se beneficia da lentidão judicial. Bastaria uma súmula vinculante para a administração e milhões de processos deixariam de atravancar os tribunais.
Há um campo em que o Judiciário pode atuar de maneira autônoma, sem esperar a colaboração dos demais poderes. Esse é o campo da gestão.
Administrar não é tarefa singela e pode comprometer as melhores intenções. O Judiciário demorou para acordar diante da profunda transformação da sociedade contemporânea. Uma sociedade com urgência, com ritmo incompatível com o tempo judicial, calcado numa única dimensão: o passado.
O exemplo bem sucedido de inúmeras práticas administrativas levadas a efeito em outros poderes, em bancos, em empresas, em instituições não governamentais, pode ser levado a efeito no âmbito da Justiça.
Os Estados-membros precisam enfrentar o desafio de legislar sobre procedimento, de maneira a facilitar o trâmite processual e o fluxo de papéis na justiça convencional. Cada Estado-membro pode inovar e exercer sua criatividade, para fazer uma justiça mais simplificada, mais rápida e mais eficiente.
Os juizados especiais constituem a alternativa ao desalento reinante. Muitas pessoas desistem de litigar diante dos entraves da justiça clássica. Mas vêm reacender sua esperança se as pequenas questões de seu peculiar interesse vierem a ser resolvidas por uma fórmula menos ataviada, mais rápida, mais simples, mais informal. Enfim, mais próxima do povo, que é o principal cliente dessa justiça da singeleza.
Tudo isso pode ser enfrentado pelo próprio Judiciário e há muita gente preparada para isso. Os jovens magistrados dominam a informática e sabem que esse instrumental pode alavancar sua performance. Basta ouvir todas essas vozes e obter o consenso, essencial à vivência democrática, da qual a Justiça não pode estar excluída.
_______________
* Mestre-Doutor em Direito Constitucional pela USP e juiz Presidente do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo.
_________________