Na fria noite de 14 de abril 1912, ocorreu o mais famoso naufrágio de todos os tempos, com direito, inclusive, à reprodução em filme datado de 1997, vencedor de 11 oscars. O RMS Titanic afundou no Atlântico Norte, quatro dias após o início de sua viagem inaugural, partindo de Southampton (Inglaterra) com destino à cidade de Nova Iorque.
Lamentavelmente, dos 2201 passageiros e tripulantes que embarcaram na Europa, apenas 711 chegaram com vida aos Estados Unidos, o que revela o tamanho do desastre desse acidente marítimo. Esse capítulo da história já é conhecido por muitos, principalmente depois do sucesso do longa-metragem. Porém, seus desdobramentos vão muito além dos fatos revelados e conhecidos pela maioria.
Naquela época, a Junta Comercial britânica1 era o órgão competente para instauração do inquérito2 de naufrágios. Nesse caso, a investigação ocorreu em Londres no período de 02 de maio a 03 de julho de 1912, sob a presidência do então Juiz do Tribunal Superior Charles Bigham ou Lord Mersey, como era conhecido o jurista e político nascido em Liverpool.
Durante os 36 dias de investigações oficiais, foram realizadas as oitivas de quase 100 testemunhas. O intuito era formular as perguntas que deveriam ser respondidas ao longo do processo, que ao final se mostrou a mais longa e detalhada corte de inquérito da história britânica até aquela época.
O relatório final foi publicado em 30 de julho de 1912, com um total de oito capítulos abordando temas como a descrição do navio, auditoria nos registros de bordo e mensagens recebidas durante a viagem, descrição e impacto dos danos sofridos pelo navio, listagem dos resgatados, as circunstancias com a embarcação S.S. Californian3, conclusões da corte, recomendações, entre outros.
Resumidamente, o inquérito apontou que a razão determinante para o acidente foi a colisão do navio com um iceberg, causada pela velocidade de navegação excessiva imprimida pela tripulação4. Também destacou que o navio Californian poderia ter auxiliado no resgate ao Titanic, o que poderia ter salvado muitas vidas, se não todas.
As autoridades inglesas competentes apontaram que só os navios britânicos já haviam transportado 3,5 milhões de passageiros na década anterior, ao custo de apenas 10 vidas perdidas. Portanto, deduziram que o comandante em exercício do Titanic naquela viagem, Edward Smith, tinha simplesmente feito “apenas aquilo que outros homens habilidosos teriam feito na mesma posição". Traduzindo para o nosso ambiente, com auxílio do direito penal pátrio, uma espécie de inexigibilidade de conduta diversa.
No entanto, a prática em si era falha, dada a enorme proporção do acidente e, assim, concluiu o inquérito: "é de se esperar que tenha sido o último exemplo de práticas de navegação como esta, pois o que foi um erro escusável no caso do Titanic seria sem dúvida negligência em qualquer caso similar no futuro”.
Paralelamente, sem qualquer cooperação ou vinculação com o inquérito em curso na Inglaterra, em 19 de abril daquele mesmo ano, o Senado Americano, sob a presidência do senador William Adden Smith, também iniciou um inquérito5 para investigação desse desastre. Este durou cerca de 18 dias e chegou a conclusões divergentes do inquérito liderado pelos britânicos.
O relatório final emitido pelas autoridades americanas criticava fortemente as práticas marítimas estabelecidas pelos britânicos. Afirmava que a negligência dos construtores, proprietários, oficiais e tripulantes do Titanic havia contribuído diretamente para o desastre. Também enfatizou que a arrogância prevaleceu a bordo do navio naquele fatídico dia e, de maneira genérica, que houve benevolência da Junta Comercial Britânica com a indústria naval e os armadores.
Nota-se, portanto, o latente contraste entre os inquéritos realizados pelo Senado Americano e aquele desenvolvido sob a presidência de Lord Mersey. Este, como visto, deixou de condenar as falhas da Junta Comercial e da White Star Line6, assim como as do capitão do Titanic, Edward Smith. É que, como abordado anteriormente, o laudo inglês constatou que, embora Smith fosse culpado por não mudar o rumo de navegação ou até mesmo desacelerar o enorme navio, ele não havia sido negligente, sob o argumento de que apenas seguiu práticas de longa data que anteriormente não haviam se mostrado inseguras.
No final do dia, os sobreviventes dessa tragédia (e as famílias dos mortos) apresentaram reivindicações de cunho indenizatório no valor total de aproximadamente US$ 16 milhões. No entanto, aproveitando-se da confusa situação que se formou à luz de dois inquéritos distintos e demandas ajuizadas em diferentes Tribunais, o armador do Titanic na época contestou tais pedidos com base no relatório do inquérito britânico – aquele que lhe era mais favorável – alegando que as circunstâncias que levaram ao acidente eram imprevisíveis.
Em meio a essa confusão processual que prejudicou a produção das provas necessárias e sem qualquer acordo de cooperação entre as autoridades competentes para investigar, processar e julgar esse episodio, em 17 de dezembro de 1915, eventualmente, o réu foi condenado a indenizar as vítimas em uma quantia total inferior a US$ 1 milhão. Valor irrisório, tendo em vista que ainda deveria ser compartilhado entre todos os legitimados, o que resultou em indenizações individuais na faixa de apenas 10% do que fora pleiteado no início dos processos.
Traçando um paralelo com os tempos atuais, onde vivemos um desastre de proporções infinitamente maiores – pandêmicas na verdade – tanto em número de fatalidades quanto em pessoas atingidas direta e indiretamente em função da covid-19, é interessante imaginar como todo o processo jurídico se desenrolaria após o naufrágio do Titanic.
Não seria loucura considerar, teoricamente, que diante dos diversos mecanismos e convenções de cooperação entre os Estados em vigor atualmente, possivelmente teríamos um desfecho mais apropriado para as vítimas, que foram desamparadas à época pela incapacidade das nações ali envolvidas em chegar a um acordo. Por óbvio, o fato de terem ocorrido dois procedimentos de inquérito, aliado à própria confusão no tocante à competência de órgãos, Estados e até mesmo a dúvida quanto à adequada Legislação aplicável ao caso, dificultou de maneira fatal a solução que aquelas vítimas esperavam das autoridades.
Voltando em definitivo para a pandemia causada pelo novo vírus, temos acompanhado alguns Atos reativos de cooperação entre países diante do atual desafio da humanidade no cenário Internacional. Essas incitavas residem em exemplos como o dos médicos Chineses atuando nas linhas de frente dos hospitais Italianos; o governo Alemão oferendo vagas em leitos de hospitais para outros países próximos; o compartilhamento de materiais de proteção como luvas, máscaras e até testes entre as Nações; a troca de informações e pesquisas no tocante à procura de remédios, tratamentos e vacinas contra o Vírus; a ajuda e o socorro às nações mais carentes no continente Africano; e demais outras medidas que vêm sendo adotadas pelos governos mundo afora.
E mais, a OMS foi capaz de gerar protocolos e procedimentos de aplicação mundial, que vêm orientando as políticas públicas em todo o globo. Apesar de certas exceções, no final, nota-se uma grande cadeia de cooperação entre os Estados no plano internacional.
Infelizmente, porém, esse clima de cooperação internacional ainda não foi assimilado pelo Brasil, haja vista as diversas controvérsias que têm surgido internamente entre os poderes da Federação, especialmente as divergências instaladas entre órgãos da Administração Pública Federal, Estadual e municipal.
Tais debates, inclusive, foram alvo de várias decisões proferidas dentro do âmbito do Poder Judiciário. Por exemplo, o ministro Marco Aurélio Mello do Supremo Tribunal Federal (STF), por ocasião da ADIn 6.3417, cujo objeto concreto foi a medida provisória 9268, aquela que alterou dispositivos significativos da lei 13.9799 de 6 de fevereiro 2020, bem como, também, por extensão, o decreto 10.28210 de 20 de março de 2020, concedeu parcialmente liminar ad referendum reconhecendo a inconstitucionalidade da interpretação de exclusividade à União para dispor sobre os serviços públicos e atividades essenciais.
Posteriormente, essa decisão foi referendada por maioria do Plenário do Tribunal. Afirmou-se que deve ser preservada a atribuição de cada esfera do governo, nos termos dos incisos I do art. 198 e II do Art. 23, ambos da Constituição Federal de 1988.
Seguindo este mesmo entendimento, o Ministro Alexandre de Moraes (STF), por meio da ADPF 67211, proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, também concedeu parcialmente a medida cautelar ad referendum, determinando a efetiva observância dos incisos II e IX do Art. 23, inciso XII do Art. 24, Art. 30 e Art. 198, todos da Carta Magna.
Tal determinação reconheceu e assegurou o exercício da competência concorrente dos Governos Estaduais e Municipais, no âmbito de seus respectivos territórios, para adoção ou manutenção de medidas restritivas legalmente permitidas durante a pandemia. Também ficou garantida tal prerrogativa independentemente de superveniência de Ato Federal em sentido contrário. Destaque-se que tal decisão foi defendida pelo procurador-geral da República.
Nesse contexto de disputa entre Autoridades, dessa vez entre municípios e Estados, o desembargador Aluísio Gonçalves de Castro Mendes, do TRF da 2ª Região, proferiu três12 decisões no mesmo sentido e em consonância com o entendimento do STF explicitado acima.
Vale mencionar, a título representativo, o agravo de instrumento interposto pelo Estado do Rio de Janeiro contra decisão proferida nos autos de Ação Civil Pública ajuizada pelo MPF, que deferiu a tutela de urgência impedindo o Estado Fluminense de promover a restrição na locomoção/circulação/transporte de quaisquer pessoas e veículos nos Municípios de sua composição.
Com base em robusta argumentação constitucional e respaldado no princípio da cooperação e nas decisões do STF aqui indicadas, entendeu o eminente Desembargador por suspender a decisão agravada, tal como requerido pelo Estado agravante, assegurando a este autonomia para continuar com sua estratégia de enfrentamento ao Covid-19.
Consideradas tais decisões, fica evidente o esforço e o tempo despendido apenas para assegurar o que o Poder Constituinte Originário já garantiu desde 1988, quando atribuiu competência comum para União, Estados e Municípios cuidarem, protegerem e defenderem, juntos, a saúde pública. Na realidade, aquele Poder Originário não imaginava que faltaria tamanha cooperação e alinhamento entre os Entes da Administração Pública, ainda mais em tempos de aguda crise.
Em teor conclusivo, impossível deixar de destacar trecho da decisão supramencionada do ministro Alexandre de Moraes:
“Em momentos de acentuada crise, o fortalecimento da união e a ampliação de cooperação entre os três poderes, no âmbito de todos os entes federativos, são instrumentos essenciais e imprescindíveis a serem utilizados pelas diversas lideranças em defesa do interesse público, sempre com o absoluto respeito aos mecanismos constitucionais de equilíbrio institucional e manutenção da harmonia e independência entre os poderes, que devem ser cada vez mais valorizados, evitando-se o exacerbamento de quaisquer personalismos prejudiciais à condução das políticas públicas essenciais ao combate da pandemia de COVID-19.
Lamentavelmente, contudo, na condução dessa crise sem precedentes recentes no Brasil e no Mundo, mesmo em assuntos técnicos essenciais e de tratamento uniforme em âmbito internacional, é fato notório a grave divergência de posicionamentos entre autoridades de níveis federativos diversos e, inclusive, entre autoridades federais componentes do mesmo nível de Governo, acarretando insegurança, intranquilidade e justificado receio em toda a sociedade.”
Como nos ensinou a história do Titanic, quando as Autoridades perdem o foco no que importa e são incapazes de se alinharem sob uma única bandeira, o elo mais fraco na corrente sai perdendo (naquele caso os sobreviventes e famílias; no episódio do covid-19, o Povo), esquecido por aqueles que deveriam socorrê-los. Com as vias do Executivo bloqueadas pelas próprias divergências internas e diante de um Legislativo inerte, resta um único caminho disponível: o Judiciário, onde busca-se uma espécie de “tutela subsidiária” em lugar daquela que os representantes democraticamente eleitos deveriam prestar, em cooperação, por livre e espontânea iniciativa.
Não é exagero dizer que, nesses tempos de crise, a cooperação transnacional está se revelando muito mais efetiva do que a esperada cooperação em âmbito nacional, já que falta diálogo, entendimento, interação e colaboração. E quem perde é o povo. Afinal, “Na briga entre o mar e o rochedo, é o marisco que apanha”.
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1 “The Board of trade”
2 Todas as peças do inquérito britânico e americano estão disponíveis em meio eletrônico, veja aqui.
3 Navio que supostamente poderia ter auxiliado no resgate do Titanic, uma vez que provavelmente encontrava-se a uma distância de aproximadamente 10 milhas do local do acidente, porém absteve-se de fazê-lo em virtude do alegado risco de navegação na área.
4 British Inquiry Final Report 30th day of July, 1912: “The Court, having carefully inquired into the circumstances of the above mentioned shipping casualty, finds, for the reasons appearing in the annex hereto, that the loss of the said ship was due to collision with an iceberg, brought about by the excessive speed at which the ship was being navigated.”
6 Armador britânico responsável pelo Titanic.
9 Dispõe sobre diversas medidas para o enfrentamento da grave crise que nos assola
10 Regulamenta a referida Lei definindo os serviços públicos e atividades essenciais
11 Clique aqui
12 Agravos de Instrumento: i) 5003436-83.2020.4.02.0000/RJ (Estado do RJ x MPF); ii) 5003393-49.2020.4.02.0000/RJ (Município de Itatiaia x MPF) e iii) 5003426-39.2020.4.02.0000/RJ (MPF x Município de Volta Redonda).
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